Finalizando o giro sobre os patres do Processo Civil Moderno, hoje tenho o desafio de falar sobre aquele que na minha opinião é o mais complexo de ser rememorado: Francesco Carnelutti. Jurista de excelência, assíduo pensador e pesquisador, cuja complexidade em estabelecer algumas linhas sobre ele está no sentido da dificuldade de sistematizar toda a dimensão da sua contribuição no Direito (prática e teórica), afinal, sua vida foi dedicada ao estudo jurídico, resultando em um vasto repertório de contribuições teóricas e de teses que ainda são utilizadas diariamente na prática e em pesquisas.
Francesco Carnelutti nasceu em Udine, nordeste da Itália, na região Friuli-Venezia Giulia, próximo à Eslovênia, no dia 15 de maio de 1879. Cursou Direito na Universidade de Pádua, obtendo o grau de bacharel no final de 1900. Foi advogado, defensor público e professor de Direito em algumas Universidades, como a Universidade de Pádua, a Universidade de Milão e, em 1946, com o fim da Segunda Guerra Mundial, assumiu a cátedra de Direito Processual Penal na Universidade de Roma, permanecendo nela até a sua aposentadoria, aos 70 anos, e, no entanto, continuou contribuindo ativamente até pouco antes do seu falecimento. Como adiantado no prólogo da matéria, a sua produção científica é incomensurável, tendo não apenas contribuído para o direito italiano mas também desenvolvido pensamentos que alteraram paradigmas jurídicos, inclusive, sendo exportados, traduzidos e recepcionados em outros países, como é o caso do Brasil.1
Não existe consenso acerca da precisão de quantas contribuições foram escritas por Carnelutti durante a sua vida. O acordo entre os pesquisadores que revisitaram a sua trajetória aponta para o número que supera 1000 ensaios2, abordando a maioria das áreas do Direito (além do direito e processo civil, contribuiu em temas relacionados à teoria geral3, filosofia e sociologia jurídicas, direito comercial e falimentar, direito e processo penal etc.). Esse resultado é um reflexo direto de sua própria personalidade inquieta e vigilante, atenta à interlocução prática do Direito na sociedade.4
Sua aproximação com o Processo Civil ocorre a partir de 1914, quando começa a escrever a obra “La prova civile”, notavelmente finalizada em três meses para concorrer à vaga de professor extraordinário de Direito Processual Civil e Organização Judiciária da Universidade de Pádua. A dedicação, além de lhe render a publicação do livro no ano seguinte5, também contribuiu para a sua aprovação em primeiro lugar no concurso, assumindo a cadeira e passando a contribuir principalmente com escritos sobre Processo Civil, área que indubitavelmente o fez ter reconhecimento internacional.6
É importante destacar que essa é a sua primeira fase dentro do Processo Civil, melhor dizendo, assim como ocorre com a maioria dos juristas que dedicam uma vida ao Direito, a sua linha de pensamento não é estável, mas sim passível de revisão e crescimento exponencial, de acordo com a sua expertise ou projetos (pessoais, profissionais e acadêmicos) que está inserido. O destaque é feito porque, neste “preâmbulo” da sua caminhada, as preocupações de Carnelutti estão voltadas à metodologia do Processo Civil, rascunhando as primeiras bases da sua teoria geral do processo civil, posteriormente condensadas e revistas em todos os seus volumes do “Sistema del Diritto Processuale Civile”, projeto de décadas.7
Seu espírito genioso e postura pouco amigável, como amplamente descritos por aqueles que tiveram contato com ele em vida8, eram sentidos na forma como construiu a sua teoria, colocando-se quase sempre como um antagonista jurídico. Isso não significa algo ruim, mas que Carnelutti apostava em outra forma de observar a dogmática processual, resultando na sua originalidade que o fez ter o seu grande reconhecimento. Um exemplo dessa afirmação é a sua grande contribuição sobre a teoria da lide no centro do processo, isso é, a ideia de justa composição da lide.
De forma pragmática e concisa, o que fez Francesco Carnelutti foi pegar a concepção de lide, na perspectiva romanística, inseri-la no bojo da teoria do processo, aperfeiçoando-a, então, com a sua realocação em posição central; aí a sua conclusão de que “o processo consiste, fundamentalmente, em levar o litígio perante o juiz, ou também, em desenvolvê-lo na sua presença”9.
Entre o seu vastíssimo repertório teórico, iniciado em 1908, ouso, exemplificativamente, pontuar algumas de maior expressão no Processo Civil, como: (1) “La prova civile”, publicada em 1915, pela Athenaeum; (2) “Lezioni di Diritto Processuale Civile”, publicada pela La Litotipo, sendo o primeiro volume em 1919 (reeditado em 1920 e 1921), o segundo em 1922 (reeditado em 1929), o terceiro em 1924, o quarto em 1925, o quinto (Cedam) em 1929, o sexto (Cedam) e sétimo (Cedam) em 1931 (reeditado em 1937); (3) “Studi di Diritto Processuale Civile”, publicado em 1925 (v. 1), em 1928 (v. 2) e em 1929 (v. 3 e v. 4, reeditados em 1939), pela Cedam; (4) “Progetto del Codice di Procedura Civile”, parte 1 e 2, publicadas em 1926, pela Cedam; (5) “Sistema del Diritto Processuale Civile”, pela Cedam, em 1936 (v. 1), em 1938 (v. 2) e em 1939 (v. 3); (6) “Intorno al progetto preliminare del Codice di Procedura Civile”, em 1937, pela Giuffrè; (7) “Lineamenti del Nuovo Processo Civile”, pela Università di Macerata, em 1940, (8) “Istituzioni del Nuovo Processo Civile Italiano”, pelo Foro italiano, em 1941 (v. 1, reeditado em 1956) e em 1943 (v. 2); e, para fechar a indicação de alguns livros (fora as centenas de artigos e ensaios não listados), (9) “Diritto e Processo”, pela Morano, em 1958.
O fato de Francesco Carnelutti não ter nutrido maior proximidade, tampouco amizade, com os outros patres do Processo Civil Moderno, Piero Calamandrei, Enrico Redenti e, principalmente, Giuseppe Chiovenda10, em nada afeta a sua justa e merecida marca como grande processualista, cravado no DNA da história jurídica como um dos maiores juristas de todos os tempos. Devo mencionar, a título conclusivo, que Carnelutti também foi componente vital para catapultar o cenário intelectual-processual da Itália com a cofundação ao lado de Giuseppe Chiovenda, da “Rivista di Diritto Processuale Civile”, em 1926 (renomeada para “Rivista di Diritto Processuale” a partir de 1946).
Também é importante mencionar o “Progetto Carnelutti”, reconhecimento originado da iniciativa de modernização do Codice di Procedura Civile italiano – sem esquecer, posteriormente, sua assídua participação na elaboração do Codice di Procedura Civile 1940 – após a Primeira Guerra Mundial, na qual a sua contribuição no projeto foi tamanha que ficou assim reconhecido pelo próprio Ministro da Justiça Alfredo Rocco, sem prejuízo da participação de outros processualistas renomados como Calamandrei, Mortara, Chiovenda, Cammeo e Redenti.11 Se a frase “uma vida em Direito” pertence a alguém, certamente essa pessoa é Carnelutti: inquieto e disposto a contribuir ativamente com o Direito até pouco tempo antes do seu falecimento, em Milão, no dia 8 de março de 1965, aos 86 anos.
Deixo um abraço e aguardo vocês nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) para discorrermos um pouco mais sobre o conteúdo da matéria deste mês e sugestões para as próximas. Vejo vocês no próximo mês.
Referências
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1. TUCCI, José Rogério Cruz e. Francesco Carnelutti: vida e obra; contribuição para o estudo do processo civil. São Paulo: Migalhas, 2017.
2. TARELLO, Giovanni. Profili di giuristi italiani contemporanei: Francesco Carnelutti ed il progetto del 1926. In: ______. Materiali per uma storia della cultura giuridica. Bologna: Il Mulino, 1974. v. 4. p. 497-598.
3. Cf. AVITABILE, Luisa. I principi del diritto: Uma riflessione com Francesco Carnelutti. L’Ircocervo, v. 22, n. 1, p. 41-49, 2022.
4. FAZZALARI, Elio. L’opera scientifica di Francesco Carnelutti. Rivista di Diritto Processuale, v. 22, p. 197-202, 1967.
5. Cf. CARNELUTTI, Francesco. La prova civile: Parte Generale: Il concetto giuridico della prova. Roma: Athenaeum, 1915.
6. CASTILLO, Niceto Alcalá-Zamora e. Francesco Carnelutti. In: CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil. 2. ed. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo: Lemos e Cruz, 2004. v. 1: Introdução e função do Processo Civil, apêndice Código de Processo Civil Italiano 1940. p. 5-19.
7.É curioso observar o quão meticuloso era Francesco Carnelutti ao trabalhar e refletir sobre os seus próprios conceitos. As reedições do “Sistema”, ampliando e atualizando o conteúdo, mais tende a ser uma revisão de sua própria formulação, inclusive, esse espírito crítico da sua “primeira fase” é uma marca que o acompanhou até o final da sua vida, como podemos ver em outras produções, como no seu “Teoria Geral do Direito”, em que logo no prefácio, ele retrata a importância dessa obra para revisar alguns pontos estabelecidos na sua sistematização. CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito. Tradução de A. Rodrigues Queiró e Artur Anselmo de Casto. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 2006. p. 19-23.
8. DINAMARCO, Cândido Rangel. Polêmicas do Processo Civil. Doutrinas Essenciais de Processo Civil, v. 1, p. 523-542, 2011.
9. CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil. 2. ed. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo: Lemos e Cruz, 2004. v. 2: Composição do processo. p. 25. “Isso explica o estreitíssimo contato entre as noções de processo e litígio, e a facilidade e o costume de confundi-las entre si. A distinção consiste em que o processo não é o litígio, e sim que o reproduz ou o representa perante o juiz ou, em geral, perante o órgão judicial. O litígio não é o processo, mas está no processo; tem de estar no processo se o processo tem de servir para compô-lo. Daí que entre processo e litígio se interponha a mesma relação que entre continente e conteúdo”.
10. Retratação: Na minha nova obra, afirmei que Francesco Carnelutti foi aluno/discípulo de Giuseppe Chiovenda. O ponto está incorreto e será objeto de correção na próxima edição. Diferentemente de Calamandrei e Redenti, que de fato foram discípulos de Chiovenda, Carnelutti não possuía uma ligação acadêmica direta com Chiovenda. A origem da minha confusão está na leitura desatenta aos primeiros ensaios de Carnelutti, no início da sua trajetória, os quais partem de inegáveis fontes chiovendianas, todavia, progressivamente, os patres acabam se distanciando pelas suas divergências (teóricas e de personalidade), todavia, mantendo o respeito mútuo, sobretudo de Carnelutti a Chiovenda, inclusive, tendo o reconhecido como grande nome do período sistemático do Processo Civil italiano e o homenageou mais de uma vez em seus ensaios, como no capítulo “Diritto e processo nela teoria delle obbligazioni”, escrito para a obra “Studi di diritto processuale in onore di Giuseppe Chiovenda” (1927), e no “artigo” “Giuseppe Chiovenda (necrologico)”, publicado na “Rivista di Diritto Processuale Civile” (1937). O ponto de retratação a que me referido está localizado em: MÖLLER, Guilherme Christen. Processo, jurisdição e sistema de justiça multiportas: Entre o Brasil e a Itália. Londrina: Thoth, 2025. p. 90/91.
11. TUCCI, José Rogério Cruz e. Francesco Carnelutti: vida e obra; contribuição para o estudo do processo civil. São Paulo: Migalhas, 2017. p. 67-76.