Para a matéria deste mês, optei por dar continuidade a nossa saga dos «grandes processualistas» e escolhi apresentar algumas notas sobre o saudoso jurista italiano «Nicola Picardi». O presente conteúdo é uma amostra de um estudo elaborado em formato de capítulo de livro (no prelo), desenvolvido em coautoria com o Prof. Dierle Nunes, querido amigo que gentilmente formulou esse honroso e irrecusável convite de estar ao seu lado nesse ensaio. Meus agradecimentos ao mestre pela amizade, carinho, atenção e oportunidade. Agradeço, também, ao Prof. Andrea Panzarola, cujo estudo,1 quiçá pela proximidade com o Prof. Picardi por muitos anos, facilitou o desenvolvimento do conteúdo aqui exposto.
Nascia, em 21 de fevereiro do ano de 1934, em Sarnano,2 Nicola Picardi. Jurista internacionalmente reconhecido pelas suas teorizações, que merece ser rememorado – em tom comemorativo –, por todos, constantemente. Doutor «in utroque iure»,3 em 1956, obteve o título de Doutor em Direito (com honrarias) pela Sapienza Università di Roma (Universidade de Roma «La Sapienza») e, em 1960, Doutor em Direito Canônico, «magna cum laude» (com grandes honrarias), pela Pontificia Università Lateranense di Roma (Pontifícia Universidade Lateranense). Obteve o título de livre-docência, em 1965, pela Università di Pisa (Universidade de Pisa), aprovado no concurso da cátedra de Direito Processual Civil em 1969.
No âmbito profissional, Picardi teve vasta atuação no meio jurídico. Entre os anos de 1959 e 1969, foi «magistrato ordinario»4 da Corte de Cassação de Roma, atuando, posteriormente, como advogado (1970 a 2016, ano do seu falecimento). Foi professor de Direito Processual Civil e de direito falimentar em diversas instituições de ensino, das quais se destaca a Università di Perugia (Universidade de Perúgia), Università degli Studi di Roma «Tor Vergata» (Universidade de Roma «Tor Vergata») e Sapienza Università di Roma (Universidade de Roma «La Sapienza»). Entre 1982 e 2013, foi, também, professor de Direito Processual Civil da Libera Università Internazionale degli Studi Sociali (Luiss Guido Carli) de Roma. Entre 1997 e 2013, foi Promotor de Justiça do Tribunale dello Stato della Città del Vaticano (Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano).
Nicola Picardi foi, também, sócio correspondente da Accademia Nazionale dei Lincei5 (Academia Nacional dos Linces), acadêmico honorário da Real Academia de Jurisprudencia y Legislación6 (Academia Real de Jurisprudência e Legislação) de Madrid, da Polska Akademia Nauk7 (Academia Polonesa de Ciências), na sua filial de Lublin, e da Wissenschafliche Vereinigung für Internationales Verfahrensrecht8 (Associação Acadêmica Internacional de Direito Processual Civil). Teve participação assídua na Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile9 (Associação Italiana de Pesquisadores de Processo Civil), fazendo parte, inclusive, do seu conselho.
Em 2005, foi condecorado com o prêmio internacional «Justice in the World» (Justiça no Mundo). Em 2010, foi condecorado, também, pelo Cardinale Presidente del Governatorato dello Stato della Città del Vaticano (Presidente-Cardeal do Governo do Estado da Cidade do Vaticano) com a medalha pela sua colaboração na adaptação legislativa do Vaticano aos padrões legislativos europeus de temas variados.
Sobre as suas produções teóricas, o começo da vastidão de contribuições tem como o seu marco o ano de 1959, quando Nicola Picardi, com vinte e cinco anos, na qualidade de «assistente ordinario» (professor adjunto) da Università di Perugia, faz a sua estreia teórica no Processo Civil com a publicação de um artigo intitulado por «La domanda di sostituzione nel processo executivo»,10 na segunda edição da Rivista di Diritto Processuale daquele ano, 1959 (anno XIV do periódico), ao lado de outros juristas como Andrioli, Candian, Cappelletti, Carnelutti, Denti, Gasparri, Goldschmidt, Liebman etc.
Durante esse período inicial de seu desenvolvimento científico no Processo Civil, Picardi desenvolveu alguns outros artigos científicos e capítulos de livro, como, exemplificativamente, o capítulo de livro «Irretroattività degli effetti nell’ipotesi di rinnovazione dell’atto processuale nullo»,11 publicado na obra desenvolvida em homenagem a Emilio Betti (1890-1968), em 1962, assim como o novel artigo científico «Per una sistemazione dei termini processual»,12 em 1963, na Rivista di Scienze Giuridiche (JUS).
Outro marco notável na trajetória de Nicola Picardi foi a publicação do seu primeiro livro «La successione processuale»,13 em 1964. As balizas teóricas dessa sua primeira publicação foram de extrema relevância para a continuidade das suas reflexões sobre o Processo Civil, inclusive, delimitaram algumas ideias acerca do seu livro subsequente, «La trascrizione delle domande giudiziali»,14 publicação oficial da Facoltà di Giurisprudenza della Università di Pisa, em 1968, pela editora Giuffrè.
Como sustentado anteriormente, Nicola Picardi também era entusiasta pelo estudo e ensino do direito falimentar, sendo esse o objeto do seu próximo livro, «La dichiarazione di fallimento: dal procedimento al processo»,15 publicado no ano de 1974.
Em 1987, em coautoria com Alessandro Giuliani, Picardi publica a obra «La responsabilità del giudice»,16 reimpressa, no ano de 1995,17 na coleção «Dialettica, diritto e processo» (organizada por eles), também pela editora Giuffrè. Tanto essa, quanto a «La giurisdizione all’alba del terzo millennio»,18 em 2007, expressam uma dimensão mais avançada do pensamento de Nicola Picardi; nas entrelinhas de ambas as teorizações, é possível perceber que a bagagem teórica contida nelas retratam o ápice da sua erudição enquanto jurista e pesquisador (assíduo) de Processo Civil. Entre os resultados advindos com a sua larga experiência nas atividades jurídicas no Vaticano está o livro «Lo Stato Vaticano e la sua giustizia»,19 publicado em 2009.
Para o fechamento desta exposição exemplificativa de contributos teóricos, entre artigos científicos, capítulos de livro e livros, está o seu «Manuale del Processo Civile»,20 publicação ocorrida ao final da sua vida, com o resultado de todas as suas reflexões colhidas ao longo da sua trajetória jurídica, transcendendo, em alguns momentos dessa obra, a mera análise dogmática do Processo Civil.
Nicola Picardi falece, aos oitenta e dois anos de idade, em Roma, no dia 16 de dezembro de 2016, deixando-nos saudade e vasto legado na ciência jurídica.
Referências
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1. PANZAROLA, Andrea. Nicola Picardi: processualista e storico. Historia et ius – Rivista di storia giuridica dell’età medievale e moderna, Roma, paper 20, n. 11, 2017. p. 4.
2. Sarnano é uma comuna italiana (uma unidade básica de organização territorial; equivale, para nós, no Brasil, à uma cidade), localizada na região dos Maches, província de Macerata (região da Itália central), com, atualmente (2022), pouco mais de 3.000 (três mil) habitantes, fazendo fronteira com comunas como Bolognola, Fiastra, Gualdo, entre outras.
3. «In utroque iure» ou «in utroque jure» é uma locução da língua latina. Sua tradução literal é «num e noutro Direito» (dois direitos). Seu emprego ocorre para indicar doutores formados em direito civil e em direito canônico, embora a expressão esteja em desuso na atualidade.
4. A Corte di Cassazione italiana equivale, grosso modo, para o Brasil, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Essa comparação (assim como um compilado de informações relevantes sobre esse sistema) já foi realizada, entre outros, por Marcelo Galli: «a Corte de Cassação da Itália equivale, em linhas gerais, ao Superior Tribunal de Justiça brasileiro: é a última instância de análise de direito infraconstitucional. No entanto, como diz o nome, a Corte italiana apenas cassa ou mantém as decisões das instâncias inferiores e as devolve para rejulgamento. Outra diferença é que a Corte de Cassação, embora não seja um tribunal constitucional, é a mais alta instância do Judiciário italiano. O Tribunal Constitucional não faz parte do Poder Judiciário na Itália. É o maior tribunal do mundo em número de juízes: são 302 julgadores, sem quinto constitucional. E também é o maior em número de casos. Recebe, por ano, 30 mil casos civis e 60 mil casos penais, aproximadamente». GALLI, Marcelo. Grande número de processos desqualifica trabalho da Corte de Cassação. Revista Consultor Jurídico (ConJur), 27 de setembro de 2015. Disponível em: <https://bit.ly/3hV3jdS>. Acesso em: 13 out. 2022.
5. Sediada no Palazzo Corsini alla Lungara, em Roma, desenvolvido entre os anos de 1730 e 1740, pela Família Corsini (com base nos projetos de Ferdinando Fuga), a Accademia Nazionale dei Lincei (Academia Nacional dos Linces) foi fundada em 1603, por iniciativa de Federico Cesi (1586-1630), com o objetivo de contemplar um loco de encontro para o desenvolvimento científico. Entre os seus membros notórios estão, exemplificativamente, Galileu Galilei (ingressando a partir do ano de 1611) e o cientista Quintino Sella. Conforme o seu Estatuto (Statuto dell’accademia nazionale dei Lincei), logo em seus prolegômenos (art. 1º), institui-se que: «a Academia Nacional dos Linces, instituição de alta cultura, com sede em Roma, nos termos do art. 33 da Constituição, dá seus sistemas e cumpre as tarefas institucionais no cumprimento das leis do Estado e dentro dos limites por elas estabelecidas […]. Destina-se a promover, coordenar, integrar e difundir o conhecimento científico nas suas mais elevadas expressões no âmbito da unidade e universalidade da cultura […]». (tradução nossa). ACCADEMIA Nazionale dei Lincei. Statuto dell’accademia nazionale dei Lincei. Approvato con Decreto del Ministro per i Beni e le Attività Culturali del 2 agosto 2001. Disponível em: <https://bit.ly/3hV1eP3>. Acesso em: 13 out. 2022.
6. A Real Academia de Jurisprudencia y Legislación de España é uma instituição jurídica a âmbito estatal, sediada em Madrid, na Espanha. Sua origem se dá, principalmente, pela junção de um grupo seleto de juristas, aproximadamente em 1730, que pretendiam desenvolver reflexões de seus conhecimentos em um viés iluminista-acadêmico. Entre os seus fins está: «a investigação e cultivo do Direito e ciências afins e a contribuição para o aperfeiçoamento da legislação» (art. 5º do Estatuto da Instituição). (tradução nossa). ESPAÑA. Real Academia de Jurisprudencia y Legislación de España. Fines y objetivos. Disponível em: <https://bit.ly/3GngCxh>. Acesso em: 13 out. 2022.
7. Polska Akademia Nauk (Academia de Ciências da Polônia) é uma instituição acadêmica científica estatal polonesa sediada em Varsóvia. Sua fundação ocorreu em 1952, por meio de um processo de fusão de diversas sociedades acadêmica preexistes, como, por exemplo, a Polska Akademia Umiejętności (Academia de Aprendizado da Polônia) e a Sociedade dos Amigos da Ciência de Varsóvia (Towarzystwo Przyjaciół Nauk), também conhecida como Sociedade Real dos Amigos da Aprendizagem de Varsóvia (Warszawskie Królewskie Towarzystwo Przyjaciół Nauk).
8. Pinçado de seu Estatuto (Satzung der Wissenschaftlichen Vereinigung für Internationales Verfahrensrecht e. V.), a Wissenschafliche Vereinigung für Internationales Verfahrensrecht (Associação Acadêmica Internacional de Direito Processual Civil), tem, entre os seus objetivos: «(1) O objetivo da associação é promover a ciência e a pesquisa no campo do direito processual internacional, incluindo o direito processual comparado e o Tribunal Arbitral Internacional. Para este objetivo, doutrinadores e profissionais, bem como representantes das áreas de conhecimento que são consideráveis como ‘ciências auxiliares’ de outras áreas (não-jurídicas), serão reunidos para trabalho conjunto de estudos em grupos de trabalho e conferências científicas. Particularmente, a associação busca promover a cooperação internacional nas suas áreas de conhecimento [direito processual]. A organização, ainda, objetiva participar na elaboração de projetos legislativos. (2) O objetivo do estatuto se realiza através da implementação de eventos científicos e projetos de pesquisa. (3) A associação não possui fins econômicos». (tradução nossa). WISSENSCHAFLICHE Vereinigung für Internationales Verfahrensrecht. Satzung der Wissenschaftlichen Vereinigung für Internationales Verfahrensrecht e. V. Disponível em: <https://bit.ly/3vkJIqE>. Acesso em: 13 out. 2022.
9. A clássica Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile foi constituída, em Florença, na Toscana, em 12 de janeiro de 1947 por Enrico Redenti, Piero Calamandrei e Francesco Carnelutti. A associação objetiva unir os pesquisadores da área de Direito Processual Civil, assim como as suas pesquisas, a fim de fomentar o debate dessa área e aperfeiçoar as instituições processuais, seja no âmbito acadêmico, no legislativo e no aperfeiçoamento da justiça civil italiana.
10. PICARDI, Nicola. La domanda di sostituzione nel processo executivo. Rivista di Diritto Processuale, Padova, Cedam, p. 577ss, anno XIV (seconda serie), 1959.
11. PICARDI, Nicola. Irretroattività degli effetti nell’ipotesi di rinnovazione dell’atto processuale nullo. In: BETTI, Emilio. (Org.). Studi in onore di Emilio Betti. Milano: Giuffrè, 1962. v. 5. p. 443ss.
12. PICARDI, Nicola. Per una sistemazione dei termini processuali. Rivista di Scienze Giuridiche (JUS), Milano, Vita e Pensiero, p. 209ss, anno XIV, gennaio-giugno, 1963. Esse artigo científico também foi objeto de tradução, posteriormente, em 1965, para a língua espanhola, republicado com o título «Para una sistematizacion de los terminos procesales», na «Revista del Colegio de Abogados de Costa Rica» (p. 71ss.).
13. PICARDI, Nicola. La successione processuale. Milano: Giuffrè, 1964. Trata-se de uma teorização atemporal, especialmente para a compreensão da relação entre o direito e o processo. A análise de Picardi foi embasada nas teorias envolvendo a natureza do processo. Sua teorização remonta o cenário do que se tinha por «processo» entre os séculos XIX e XX.
14. PICARDI, Nicola. La trascrizione delle domande giudiziali. Milano: Giuffrè, 1968.
15. PICARDI, Nicola. La dichiarazione di fallimento: dal procedimento al processo. Milano: Giuffrè, 1974.
16. GIULIANI, Alessandro; PICARDI, Nicola. La responsabilità del giudice. Milano: Giuffrè, 1987.
17. GIULIANI, Alessandro; PICARDI, Nicola. La responsabilità del giudice. Milano: Giuffrè, 1995.
18. PICARDI, Nicola. La giurisdizione all’alba del terzo millennio. Milano: Giuffrè, 2007. Essa obra foi traduzida para o espanhol, «La jurisdicción en el alba del tercer milênio», e, parte de seu conteúdo, consta na obra «Jurisdição e Processo», em português, publicada no Brasil, organizada e traduzida pelo saudoso professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Respectivamente: PICARDI, Nicola. La jurisdicción en el alba del tercer milenio. Lima: Communitas, 2009. PICARDI, Nicola. Jurisdição e Processo. Organização e tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Rio de Janeiro: Forense, 2008. Sobre essa última, a obra «Jurisdição e Processo», com maior precisão de informações para o presente escrito, trata-se de compilado de ensaios seminais de Picardi que foram selecionados pelo mesmo para essa obra.
19. PICARDI, Nicola. Lo Stato Vaticano e la sua giustizia. Bari: Cacucci, 2009. PANZAROLA, Andrea. Nicola Picardi: processualista e storico. Historia et ius – Rivista di storia giuridica dell’età medievale e moderna, Roma, paper 20, n. 11, 2017. p. 8. «Publicado por ocasião do octogésimo aniversário do Estado do Vaticano, o livro de Picardi refaz em detalhes as fases que levaram à extinção do Estado Pontifício e à cessação de sua justiça até a criação do Estado do Vaticano e sua jurisdição, de 1929 a atualidade. O livro parte da premissa de que, se história e direito se complementam, a própria história ‘não pode ser cortada em fatias: história política, história das instituições, história religiosa e história social, um ao outro de perto’. E o volume de Picardi é uma tentativa notável – como sempre realizada com sua prosa cristalina e fluida – de cruzar e fundir (sem confundir) as diferentes histórias relativas à justiça vaticana (e, antes, pontifícia), na implementação de uma singular sinergia metodológica, que visa elucidar a evolução dos eventos e propor soluções para problemas». (tradução nossa).
20. PICARDI, Nicola. Manuale del Processo Civile. 4. ed. Milano: Giuffrè, 2019.