Durante a minha passagem por Florença, na Itália, além de outras finalidades, no campo acadêmico, com vistas para a elaboração da minha tese, busquei me aproximar das teorizações de três juristas que merecem (no mínimo) o tratamento de maestros: (1) Piero Calamandrei; (2) Mauro Cappelletti; e, (3) Remo Caponi. Enquanto “navegava” por aquele oceano de obras (raríssimas) da biblioteca da Università degli Studi di Firenze (da qual, orgulhosamente, posso afirmar que sou Doutorando), fiquei fascinado pelo repertório teórico (desconhecido, por mim) das obras e ensaios escritos pelo Prof. Piero Calamandrei (catedrático e Reitor da “UniFi” em meados do século passado).
Ainda estou absorvendo toda a experiência que foram esses meses morando lá. Cada vez mais, concateno com as minhas experiências prévias e futuros passos que deverei tomar. Parte fundamental desse “amadurecimento”, nesse período de introspecção, decorre das horas investidas investigando os maestros que anteriormente sinalizei. Tratarei de todos em momentos diversos.
Para a matéria deste mês, embalado no espírito que está nas entrelinhas das divagações até então escritas, resolvi, depois de finalizar a leitura o livro “Elogio dei giudici scrito da um avvocato” (exemplar que eu trouxe na mala de mão, por precaução), traduzida e adaptada no Brasil como “Eles, os juízes, vistos por um advogado”, prestar uma homenagem ao Prof. Piero Calamandrei, um dos quatro Patres da ciência processual italiana moderna (ao lado de Giuseppe Chiovenda, Francesco Carnelutti e Enrico Redenti) e escrever algumas notas sobre a vida e a obra desse grande processualista que foi.
Esta matéria é uma síntese biográfica para apresentar o grande processualista fiorentino aos que não o conhecem. Para imersão e melhor conhecimento da grande pessoa e jurista que foi Piero Calamandrei, recomendo a aquisição da obra do Prof. José Rogério Cruz e Tucci “Piero Calamandrei: vida e obra: contribuição para o estudo do processo civil”, publicada pela Editora Migalhas, em 2012, sendo a principal referência para este texto – ademais, ressalto o admirável trabalho do Prof. Cruz e Tucci em resgatar, com maestria, em livros individuais, as trajetórias completas de todos os pais da ciência processual italiana moderna.
Piero Calamandrei nasceu em Florença, no dia 21 de abril de 1889. Filho de Rodolfo Calamandrei (advogado, político e professor livre-docente de direito comercial da Università degli Studi di Siena) e Laudomia Pimpinelli. Calamandrei obteve o grau de bacharel em Direito pela Università di Pisa, em julho de 1912, com a “tese de láurea” – para nós, brasileiros, corresponderia (grosseiramente falando) ao Trabalho de Conclusão de Curso – intitulada “Chiamata in garantia e giurisdizione”.
Embora seja difícil sinalizar o principal motivador do tamanho apreço de Calamandrei pelo Direito – a meu entender, o zelo do maestro fiorentino, diante da sua sensibilidade nos temas que abordou em vida, estava muito mais ligada com a (ideia de) Justiça (e a sua função no e com o Direito) –, visto a complexidade teórica entrelaçada com narrativas humanísticas (muito à frente do seu tempo) em seus ensaios, não há como negar a influência das atividades do seu pai e, também, do seu mentor, Prof. Carlo Lessona (posteriormente, veremos que alguns fatos ocorridos durante a sua vida foram catalizadores para a construção dessa pessoa ímpar que foi Piero Calamandrei).
Cronologicamente, de Pisa, Calamandrei se mudou para Roma a fim de aperfeiçoar os seus conhecimentos, ocasião em que foi aluno de outro grande processualista italiano conhecido: Giuseppe Chiovenda.
Neste momento da narrativa sobre a vida e a obra do processualista fiorentino, não podemos deixar à limiar que, na história, entre 1914 e 1918, houve a Primeira Guerra Mundial, da qual fez parte a Itália (no bloco dos “Aliados”).
Calamandrei se alistou, voluntariamente, no 218º Regimento de Infantaria, ascendendo, posteriormente, ao posto de tenente-coronel (sendo um dos primeiros soldados do exército italianos que adentrou na então reconquistada cidade de Trento, localizada, hoje, na região norte da Itália).
Durante o período da Primeira Guerra Mundial, inclusive, participou de seu primeiro concurso universitário – o ano era 1915, aos seus 26 anos), concorrendo para a cátedra de Processo Civil da Università degli Studi di Padova (e entre os seus concorrentes, vale mencionar, estava Francesco Carnelutti).
Além de ter exercido a advocacia durante toda a sua vida, foi, também, professor em diversas Universidade italianas. Entre 1915 e 1918, foi professor de Processo Civil da Universidade de Messina, sendo chamado, sequencialmente, para lecionar na Universidade de Modena e Reggio Emilia, entre os anos de 1918 e 1920. Também, foi processor da Universidade de Siena (1920 e 1924) até ingressar como docente de Processo Civil e Direito Constitucional na Università degli Studi di Firenze, exercendo a cátedra da Facoltà di Giurisprudenza até o seu óbito (em 1956).
A partir de 1924, foi redator-chefe da (à época, recém fundada) Rivista di Diritto Processuale Civile (a convite dos seus diretores: Francesco Carnelutti e Giuseppe Chiovenda), onde foi, em 1927, promovido ao cargo de codiretor.
Ao lado de Francesco Carnelutti e Enrico Redenti, integrou a subcomissão de reforma do Código de Processo Civil italiano, sendo destacado como o grande revisor e defensor do Codice di Procedura Civile (italiano), de 1940 (o qual vigora, não embora os movimentos de consolidação e reforma legislativa operadas nas últimas décadas, vale a menção, até a atualidade), inclusive, responsável pela redação da mensagem, dirigida ao Rei da Itália, que acompanhou a codificação.
Exerceu o cargo de Reitor da Università degli Studi di Firenze entre os anos de 1944 e 1947. Durante esse mesmo período em que foi Reitor da Universidade de Florença, Calamandrei foi representante do Partito d’Azione na Assembleia Constituinte para (e até) a aprovação da primeira Constituição Democrática da Itália (o que lhe rendeu o respeitável apelido, entre os seus alunos, de “a Constituição que caminha”). Em 1945, fundou e foi diretor do periódico (político-literário) “Il Ponte”. De 1947 até o seu falecimento, Calamandrei foi presidente do Conselho Nacional Forense. Também, foi membro da prestigiada Accademia dei Lincei e vice-presidente da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile.
Algumas outras atividades de Calamandrei na política que merecem destaque foram a sua eleição para deputado na primeira legislatura republicada, em 1948, pela Unione Socialista (1948 e 1953) e, em 1953, foi um dos fundadores do partido Unità Popolare.
Proferiu incontáveis palestras e conferências e escreveu inúmeros (e primorosos) artigos, livros (muitos traduzidos para diversos idiomas – inclusive, para o português), contos. Vale (honrosamente e merecidamente), exemplificativamente, citar alguns de seus relevantes trabalhos, como: (1) “La chiamata in garantia” (1913); (2) “Limiti fra giurisdizione e amministrazione nella sentenza civile” (1917); (3) “L’avvocatura e la reforma del processo civile” (1920); (4) “Governo e magistratura” (1921); (5) “Sulla struttura del procedimento monitorio nel diritto italiano” (1923); (6) “Il processo come situazione giuridica” (1927); (7) “Studi sul processo civile” (1930 e 1934); (8) “Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari” (1936); (8) “Istituzioni di diritto processuale civile secondo il nuovo codice” (1941, 1943 e 1944); (9) “Processo e giustizia” (1950); (10) “Processo e democrazia” (1954); (11) “Elogio dei giudici scritto da un avvocato” (1959).
Em sede de fechamento, algumas curiosidades sobre o maestro fiorentino que merecem espaço nesta matéria. Nas horas vagas, para passar o tempo, apreciava a pintura e registrava alguns cenários da encantadora região da toscana. Trabalhou gratuitamente e exaustivamente no auxílio aos perseguidos políticos (da legislação racial fascista – e, neste ponto, lembrar do período ditatorial (1922 e 1943) comandado por Benito Mussolini, na Itália –, fruto da intolerância e do autoritarismo. Detalhe: Piero Calamandrei realizava essa (e outras) boa ação (arriscando a sua vida, a vida da sua família e de seus conhecidos, trocando cartas com outro grande processualista que em breve será homenageado em matéria própria, Eduardo J. Couture, buscando realocar os profissionais que eram alvos de perseguição política na Itália na América do Sul) sem pretensão de visibilidade; vale a reflexão.
Faleceu em Florença, no dia 27 de setembro de 1956, aos 67 anos. Embora fosse considerado um homem virtuoso de poucos amigos íntimos, possuía uma excepcional capacidade de indignação, especialmente se alguém que ele admirava fosse envolvido em algo que considerava injusto. Piero Calamandrei, além de merecer o seu espaço no rol de “grandes processualistas”, merece, de igual forma, espaço no rol de “grandes pessoas da história”.
Sua vida foi marcada por muito trabalho e luta pela construção de um contexto democrático e menos “injusto” (entre aspas para não adentrarmos no conceito do que é “justiça”, visto não ser o momento e nem o espaço para essa discussão). Deixa, além de saudade, o legado de alguém que realmente merece ser considerado como um maestro, um farol para guiar as atuais e futuras gerações de pessoas e, especialmente, de juristas. Quiçá, a vida e a obra de Calamandrei nos ensine um pouco mais sobre como “levamos” as nossas vidas, quais são as nossas prioridades, quais são as nossas causas e qual é o nosso propósito nesse finito e breve tempo que chamamos de vida.
Esta é a primeira matéria que escrevo, para o Magis, desde o meu retorno ao Brasil, já estabelecido (e tentando dar conta das atividades profissionais, acadêmicas e pessoais atrasada – e como) na região do litoral norte da minha amada Santa Catarina. Deixo um abraço e aguardo vocês nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) para discorrermos um pouco mais sobre o conteúdo da matéria deste mês e sugestões para as próximas. Vejo vocês em maio.