Um novo capítulo para o compliance: a regulamentação do compartilhamento de informações fiscais trazida pela Portaria RFB n. 393/2024

Um novo capítulo para o compliance: a regulamentação do compartilhamento de informações fiscais trazida pela Portaria RFB n. 393/2024

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A Receita Federal na metade do mês passado, mais especificamente no dia 17 de janeiro de 2024, publicou a Portaria n. 393/20241 que alterou as regras do compartilhamento de informação entre o órgão governamental e o Ministério Público Federal, em caso de suspeita de crimes.

O uso da Receita Federal como uma instituição integrante da força de combate a crimes financeiro é uma questão controversa há alguns anos. Com efeito, a Receita Federal é um órgão público responsável pela arrecadação fiscal do país. No exercício dessa atribuição, a instituição acaba tendo acesso a muitas informações financeiras tanto de cidadão, quanto de empresas, que podem ser muito úteis na apuração de crimes denominados como financeiros ou contra a ordem econômica.

A polêmica que gira em torno do compartilhamento de informações fiscais entre Receita Federal e Ministério Público Federal vem de uma discussão antiga, que começou com a Lei Complementar n. 105/2001,2 em que se autorizava a Receita Federal, acaso constatasse a ocorrência de crimes nas declarações fiscais, a compartilhar as informações diretamente com o Ministério Público Federal, quebrando-se o sigilo dos dados sem intervenção judicial.

Esse debate foi parar no Supremo Tribunal Federal, que declarou constitucional o compartilhamento dos dados fiscais, previsto na LC n. 105/2021, no julgamento do tema 990, de repercussão geral:

I – É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional; II – O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.

Dessa forma, a Receita Federal passou a integrar o aparato de inteligência financeira do país, e a Portaria n. 393/2024 veio para regulamentar essa interpretação constitucional da Lei Complementar n. 105/2021. No caso, pela nova redação do artigo 17, da Portaria RFB n. 1.750/2018, o fisco federal deverá encaminhar ao Ministério Público Federal, as informações fiscais de contribuintes, em caso de constatação de crimes de falsidade documental, lavagem de capitais e crimes contra a Administração Pública Federal, em detrimento da Fazenda Nacional e contra administração pública estrangeira:

Art. 17. Observadas as atribuições dos respectivos cargos dos servidores responsáveis pela comunicação de que trata o art. 51 do Decreto nº 7.574, de 29 de setembro de 2011, deverá ser formalizada e protocolizada, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data em que o servidor tiver ciência do fato, a representação para fins penais referente a fatos que configuram, em tese, crimes: swap_horiz

I – de falsidade de títulos, papéis e documentos públicos, previstos nos arts. 293, 294 e 297 do Decreto-Lei nº 2.848, de 1940 (Código Penal); swap_horiz

II – de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores definidos no art. 1º da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998; e swap_horiz

III – contra a Administração Pública Federal, em detrimento da Fazenda Nacional e contra administração pública estrangeira. swap_horiz […]

4º Não poderão ser incluídas na representação para fins penais de que trata este artigo informações tributárias obtidas pela RFB com base em tratados, acordos ou convênios internacionais para o intercâmbio de informações tributárias, exceto se houver anuência e estiver autorizado na legislação interna do país informante.

Importante considerar que a recíproca não é verdadeira. Inobstante a Receita Federal possa enviar dados fiscais diretamente ao Ministério Público, sem a violação do sigilo constitucional, o Ministério Público Federal não pode requerer informações resguardadas pelo sigilo constitucional, diretamente ao “leão” e sem intervenção judicial, conforme decidiu o Superior Tribunal de Justiça.3

O compartilhamento direto de dados protegidos pelo direito à intimidade, previsto no artigo 5º, X, da Constituição da República, é um tema que vem passando por uma revisão tanto jurisprudencial, quanto legal, decorrente do fenômeno chamado de administrativização do direito penal, consequência da expansão do poder de punir do Estado, já adiantado por Jesus María Silva-Sánchez.

Nesse sentido, em nome da celeridade e da eficiência do direito penal, vem se expandindo o uso de medidas administrativas, para a produção de provas e punição de cidadãos ou pessoas jurídicas. Dessa forma, um órgão vinculado ao Executivo, com atribuições puramente fiscais, recebe a permissão legal de, em caso de constatação de alguns crimes, munir a autoridade acusadora dessas informações para a deflagração da competente investigação e consequente Ação Penal.

Embora o Supremo Tribunal Federal já tenha declarado a constitucionalidade dessa medida, ela mantém-se como duvidosa. Isso porque a Receita Federal obriga que o cidadão e as empresas apresentem as declarações fiscais, levando a um cenário em que o contribuinte acaba produzindo provas contra si mesmo. Além disso, a violação à intimidade é inegável, sendo que o Ministério Público Federal receberá, voluntariamente, informações que podem levar a uma condenação criminal do sujeito.

Considerando que o compliance tem como função principal a prevenção de lavagem de dinheiro, essa inovação da Receita Federal abre um novo capítulo para os programas de integridade. Pois agora, não bastará garantir que o compliance empresarial esteja em dia, mais isso terá que estar exposto nas declarações fornecidas ao fisco, para que sequer haja a suspeita da ocorrência de crime.

Na prática, funciona da seguinte maneira: acaso a Receita Federal, durante a análise das declarações fiscais de cidadãos e empresas, constatar a ocorrência de algum dos crimes elencados na portaria, o órgão está autorizado a fazer uma Representação Fiscal para Fins Penais, diretamente ao Ministério Público Federal, que terá acesso a informações resguardadas por sigilo fiscal e bancário, sem a intervenção judicial. Dessa maneira, o sujeito poderá ser investigado sem nem mesmo imaginar que há um inquérito ministerial tramitando contra si.

Importante mencionar, no campo do Imposto de Renda de Pessoa Física, que o crime de falsidade documental está incluído no rol da Portaria publicada. Isso alcança os recibos “frios” de médicos (que simulam despesas de saúde), utilizados para o abatimento de descontos na declaração de imposto de renda. Assim, não somente as empresas devem se preocupar com essa nova Portaria, mas pessoas físicas e contadores devem estar atentos para esse tipo de fraude, que se revela bem comum no Brasil.

Diante disso, as informações fiscais das pessoas físicas e jurídicas ganham uma especial relevância nos mecanismos de controle de integridade dentro das empresas. A Receita Federal possui, agora, autorização administrativa e jurisprudencial para usar do Poder Penal do Estado como forma de coação ao contribuinte, que será obrigado a ser mais zeloso com as suas obrigações fiscais.

Essa inovação reflete diretamente no ESG, principalmente no campo da governança, e nas ferramentas de compliance, visto que o foco principal desse é o combate à lavagem de capitais. E, ao que parece, de nada adiantará tentar levar às instâncias extraordinárias o debate acerca da constitucionalidade da potencial violação ao sigilo fiscal, tendo em vista que a jurisprudência já está madura no sentido da constitucionalidade desse tipo de medida investigativa.

Então, a Portaria n. 393/2024, da Receita Federal Brasileira, soma-se a outros muitos exemplos da importância de as empresas terem um programa de compliance íntegro e funcional, e estar cada vez mais atentas às práticas de boa-governança corporativa.

 

Referências

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