Atualmente o processo eleitoral brasileiro é considerado um dos que garante a maior universalização, encontrando-se à frente de inúmeros países. O voto é um dever e um direito constitucional de todos os cidadãos com mais de 18 (dezoito) e menos de 70 (setenta) anos de idade e garante que as pessoas incluídas nesse grupo possam escolher seus representantes independentemente de sua raça, cor, gênero, classe social, grau de escolaridade e da existência de determinada deficiência física, motora ou psicológica.
Todavia, há de se atentar que a situação nem sempre foi essa, a análise da legislação histórica do Brasil revela que a universalização do voto é uma realidade muito recente. Em se tratando do voto dos analfabetos, o direito ao voto foi garantido a essa parcela da população durante o período colonial e o Império, entretanto, foi abolido em 1881 por intermédio da Lei nº 3.029, de 09 de janeiro de 1881, conhecida como “Lei Saraiva”.1
A referida exclusão do direito ao voto aos analfabetos permaneceu sedimentada nas leis brasileiras por 104 (cento e quatro) anos, sendo que somente após a promulgação da Emenda Constitucional nº 25 à Constituição da República de 1967 os analfabetos obtiveram seu direito de exercer sua cidadania mediante o voto em 1985.2
A primeira mudança que o voto do analfabeto trouxe para o sistema eleitoral foi o advento do uso de números para identificar os candidatos, no lugar do nome por extenso que devia ser escrito na cédula eleitoral. Isso se deve ao fato de que é mais fácil para uma pessoa iletrada decorar uma sequência de números do que letras, o que preserva a integridade e autonomia do seu voto. A identificação de candidatos e partidos por numerais acabou por servir de base para o advento do sistema da urna eletrônica, que é utilizada no Brasil desde 1996.3
Há se de ressaltar, contudo, que a referida alteração legislativa pouco mudou em matéria de “acessibilidade” para pessoas analfabetas, sendo, em verdade, uma medida simbólica que somente obtive maior eficácia com a criação e implementação da urna eletrônica em 1996.
Outra evidência da influência dos erros de preenchimento nos votos nulos é a evolução ocorrida com Constituição de 1988, que deu o direito de voto aos analfabetos: a taxa de votos nulos para a Câmara, que foi de 6,2% em 1986, subiu para 13,7% em 1990 e 25,2% em 1994. A de votos brancos também subiu, de 21,9% para 30,0%.
Com a introdução da urna eletrônica, a taxa de votos nulos caiu de 25,2% em 1994 para 9,8% em 1998 (na qual 57,6% do eleitorado usou voto eletrônico), atingindo apenas 2,9% em 2002 (na qual 100% do eleitorado usou o voto eletrônico).
O número de votos em branco também despencou, de 16,5% em 1994 para 10,2% em 1998 e apenas 4,7% em 2002.
Nota-se, portanto, que a implementação das urnas eletrônicas trouxe significativas alterações para o cenário eleitoral brasileiro vez que diminuiu de modo significativo a porcentagem de votos nulos. Isto é, votos nos quais o eleitor propositalmente, ou não, digita um número inexistente na urna como forma de protesto ou em razão da inabilidade para operar a urna eletrônica.
A urna eletrônica simplificou o ato de votar para as pessoas analfabetas, isto pois somente dependem da digitação de números, não mais sendo necessária a escrita, tornando, desse modo o processo do voto mais universal e participativo a esse grupo de pessoas.
Todavia, a despeito dos avanços supramencionados, a urna eletrônica brasileira está longe de ser perfeita de modo que se fazem necessários numerosos avanços para que possa garantir ao maior número de pessoas possível o direito ao voto.
Em uma rápida busca pela internet é possível encontrar uma série de comentários e relatos acerca da dificuldade de pessoas para votar por meio da urna eletrônica, especialmente pessoas analfabetas, semianalfabetas e as de maior idade que possuem pouca ou nenhuma familiaridade com equipamentos eletrônicos. De modo que existe um percentual de pessoas ignorado pela Justiça eleitoral que não estão absolutamente aptas para votar em razão da falta de conhecimento técnico a respeito das urnas e, assim, acabam por anular seus votos após tentativas frustradas de tentar votar em seus candidatos.
Historicamente no Brasil pouco valor se deu a campanhas de educação em relação ao ato de votar, de modo que os valores empregados para essa finalidade são irrisórios, especialmente se comparados aos valores do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), também conhecido como Fundo Eleitoral, e o Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, o Fundo Partidário, ambos direcionados para que partidos políticos realizem suas campanhas eleitorais e custear as atividades dos partidos políticos.
É notório que de modo geral a sociedade brasileira não compreende como funciona a urna eletrônica, qual a ordem de votação ou mesmo como operar a urna eletrônica e pouco ou nada se faz a esse respeito.
Outro fator que exclui a parcela analfabeta da população refere-se ao design e funcionamento da própria urna que apesar de “objetiva” não é “simples”.
A título de exemplo pode-se pensar na recente implementação de um sintetizador de voz na urna eletrônica, o qual passa a informar a eleitores a tecla pressionada, o nome dos candidatos, vice, suplente, partido, a funcionalidade ainda auxilia no processo de votação ao ditar os passos. A Justiça Eleitoral fica responsável por fornecer fones de ouvido para que os eleitores possam utilizar essa funcionalidade da urna, todavia poucas pessoas conhecem essa nova funcionalidade criada com o intuito de prestar acessibilidade a pessoas com deficiências visuais.
Um aprimoramento louvável e que amplia a universalização do voto, mas implementado de forma inadequada uma vez que inexistem na urna eletrônica botões específicos para aumentar e diminuir o volume do áudio ou para aumentar e diminuir a velocidade de reprodução do áudio, de modo que a tecla de número 3 (três) é utilizada para aumentar o volume, a de número 9 (nove) para aumentar, a de número 6 (seis) para acelerar a velocidade do áudio e a de número 4 (quatro) para reduzir a velocidade, tornando assim o processo de votar com o sintetizador de voz uma tarefa mais complexa do que o necessário e de difícil entendimento para algumas pessoas.
Por fim, pode-se ainda citar o fato de que a interface da urna eletrônica é inteiramente baseada em textos não possuindo cores ou ícones, de modo que pessoas analfabetas ou semianalfabetas são parcialmente ou completamente incapazes de compreender os elementos apresentados na tela da urna. A implementação de cores, símbolos, ícones, ou mesmo da reprodução das teclas da urna em seu display são fatores que potencialmente maximizariam a facilidade de uso para pessoas analfabetas ou semianalfabetas.
O tema da acessibilidade para pessoas analfabetas ou semianalfabetas é obscuro de modo que em grande medida a sociedade ignora essa problemática jogando-a para debaixo do tapete. Entretanto, cada vez mais, faz-se necessário repensar nosso cotidiano, os instrumentos, objetos e facilidades ao nosso redor e analisá-las de modo crítico para que possamos compreender se promovem, ou não, a acessibilidade.
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Clayton Douglas Pereira Guimarães
Glayder Daywerth Pereira Guimarães
Referências
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1. A respeito do tema recomenda-se a leitura de: LEÃO, Michele de. Lei Saraiva (1881): se o analfabetismo é um problema, exclui-se o problema. Revista Aedos, [S. l.], v. 4, n. 11, 2012. Disponível em: https://bit.ly/3TrrIFy. Acesso em: 23 out. 2022.
2. BRASIL. Emenda Constitucional nº 25. 1985. Disponível em: https://bit.ly/3TRFj8Z. Acesso em: 23 out. 2022.
3. BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Emenda Constitucional de 1985 garantiu o direito ao voto aos eleitores analfabetos. Notícias TSE. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3TryZ81. Acesso em: 23 out. 2022.
4. FOLHA DE SÃO PAULO. Urna eletrônica reduz votos nulos de analfabetos. Folha de São Paulo. 2006. Disponível em: https://bit.ly/3sotCuK. Acesso em: 23 out. 2022.