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Will Smith Vs. Chris Rock: um olhar civilista sobre o incidente no Oscar

chris slap

A 94.ª cerimônia de entrega dos Oscar ficará marcada na história televisiva como a noite em que o ator Will Smith desferiu um tapa no comediante Chris Rock, durante a apresentação de uma categoria cinematográfica. Não por menos, os jornais e as redes sociais debruçaram sobre o assunto imediatamente, dividindo opiniões em que apoiadores, de ambos os lados, defendiam seus pontos de vista.

Independentemente de discussões de âmbito ético-moral, em que é possível tomar partido com base em convicções próprias, no campo jurídico, em especial na seara cível, os fatos e fundamentos devem nortear a análise de caso, sendo possível auferir um julgamento de valor de forma imparcial para um correto estudo do ocorrido.

Inicialmente, reputa-se imperioso destacar que as piadas de Chris Rock, ainda que possam ter tom ofensivo, estão amplamente abarcadas no direito norte-americano pela liberdade de expressão (freedom of speech), assegurada pela First Amendment, sendo esse um conceito jurídico de extrema força nos Estados Unidos, garantido pela própria população, que defende seu “direito de expressar o que quiser por ser um país livre”.

Nesse sentido, o combate à censura é muito forte, o que explica a razão pela qual grande parte dos americanos saiu em defesa ao comediante. Entende-se, por óbvio, com o perdão do truísmo, que uma expressão humorística, ainda que de mal gosto, não pode ser respondida com uma agressão desmedida.

Nos Estados Unidos da América, a freedom of speech, ainda que não seja ilimitada, ocupa posição de evidente primazia, sendo admitida a sua restrição apenas em casos excepcionais. Fora dessas hipóteses de absoluta exceção, prevalece a liberdade de discurso. Essa liberdade, na construção jurisprudencial norte-americana, se estende, inclusive, a discursos ofensivos ou, mesmo, aqueles francamente inseridos no conceito de discursos de ódio.1 

Larry Flynt, idealizador da revista Hustler, travou longa batalha judicial na década de 1980, defendendo a liberdade de expressão, mesmo que ofensiva, com intuito de satirizar personalidades públicas, garantindo interpretação ampla da Primeira Emenda. O caso Hustler Magazine v. Falwell (1988) é tratado como verdadeiro paradigma, demonstrando a força cognitiva da liberdade de expressão no sistema norte-americano.

To be sure, in other areas of the law, the specific intent to inflict emotional harm enjoys no protection. But with respect to speech concerning public figures, penalizing the intent to inflict emotional harm, without also requiring that the speech that inflicts that harm to be false, would subject political cartoonists and other satirists to large damage awards.2

Portanto, a reação do ator Will Smith foi além do esperado, uma vez que ele se utilizou de resposta desmedida às provocações do humorista, que estava amparado constitucionalmente para realizar suas manifestações humorísticas, mesmo que de mal gosto. Em outros termos, é dizer que a piada estava amparada de forma constitucional e não poderia ser combatida com uma agressão.

Na experiência brasileira, as manifestações humorísticas passam por sinuoso entendimento jurisprudencial, uma vez que, ainda que legalmente amparadas pela liberdade de expressão (como nos Estados Unidos), entende-se que esse direito não é absoluto, sendo que, caracterizado o tom ofensivo, poderá render ação de indenização por danos morais.3 Contudo, imperioso salientar, a jurisprudência não é uníssona, sendo que os aspectos subjetivos deverão ser analisados no caso concreto.

Em sentido, caso Jada Pinkett-Smith (ofendida no caso e única com legitimidade ad causam) afirme que a piada lhe causou danos morais – emotional damages –, poderia ela ajuizar ação de indenização por danos morais em face do comediante, ainda que a jurisprudência norte-americana tenha um padrão analítico de preponderar os conceitos constitucionais como a liberdade de expressão em maior amplitude, garantindo, ao menos de forma inicial, hierarquia ao princípio.

Sob o olhar exclusivamente jurídico, entende-se que o ator Will Smith se excedeu quando desferiu um tapa em Chris Rock, verdadeiro abuso de direito. Isto pois, ainda que a piada do comediante tenha sida ofensiva, não é lícito – tanto no ordenamento jurídico brasileiro quanto no norte-americano – que alguém faça “justiça com as próprias mãos” e resolva utilizar de meios desproporcionais para combater o que é de direito.

Afinal, conforme o ator Jim Carrey destacou, após o episódio, Will “poderia gritar algo da plateia ou mostrar que não gostou no Twitter”,4 sendo esses meios legítimos para demonstrar sua insatisfação com a piada. Jada Pinkett-Smith, como destacado, detém legitimidade para ajuizar uma ação civil contra as piadas proferidas pelo comediante, sendo outro meio amparado legalmente para resolução do mencionado conflito.

Contudo, a escolha pela violência constitui abuso de direito – estampado, no ordenamento jurídico brasileiro, no artigo 187 do Código Civil –, tendo o ator cometido, portanto, ato ilícito passível de reparação. Ora, uma vez que o episódio marcou a cerimônia e obteve grande repercussão internacional, com fotos, vídeos e memes que ficarão lembrados na internet para sempre, seria legítima eventual pretensão de Chris Rock objetivando uma compensação pelos danos causados (nesse sentido, seria possível ainda uma análise sob o espectro do direito ao esquecimento).

No caso, os danos sofridos pelo comediante seriam exclusivamente de ordem moral (emotional distress), pois dificilmente a carreira dos dois envolvidos será prejudicada pelo acontecimento, uma vez que são duas personalidades extremamente famosas, principalmente nos Estados Unidos, de modo em que não seria possível, ao menos em primeiro momento, pensar em reparação de danos materiais, posto que até então inexistentes. Eventual pretensão por dano estético, nessa mesma linha, também não seria amparada, uma vez que o tapa desferido não lhe causou nenhuma deformidade, no máximo levíssima escoriação/eritema.

Os danos morais, em seu turno, encontram pretensão legítima. O simples fato do tapa ser deferido diante um público, em uma cerimônia televisionada no mundo inteiro (a mais importante da indústria cinematográfica) já é apto para ensejar vexame e humilhação, danos esses passíveis de reparação.

Na experiência brasileira, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais há muito entende que um tapa no rosto, na presença de outras pessoas, sem uma agressão injusta que o justifique já é, por si, suficiente para gerar dano moral reparável.5

No sistema da common law, não apenas o dano de caráter moral ganha enfoque pela compensação financeira, mas também poderia servir de pretexto para aplicação de uma figura legitimamente amparada e utilizada no direito norte-americano, os punitive damages.

Ora, a comunidade artística, em sua imensa maioria, criticou o ator Will Smith pela agressão cometida, em parte pelo possível precedente criado. Uma vez que a atitude poderia ser entendida por apoiadores como uma carta aberta/convite para usar de meios desproporcionais quando alguém se manifesta em público, criando o precedente da violência como resposta fácil, seria possível uma indenização a níveis milionários, com objetivo não apenas de compensação pelo episódio, mas com intuito de desestimular condutas congêneres e punir, financeiramente, o ator, por ter cometido abuso de direito.

No Brasil, o artigo 944 do Código Civil designa que a aferição de responsabilidade civil do agente é baseada na extensão do dano sofrido pela vítima, sendo omisso quanto ao reconhecimento e possibilidade de aplicação da função pedagógico-punitiva.

Contudo, o Conselho da Justiça Federal editou o enunciado 379 da IV Jornada de Direito Civil, estabelecendo que: “o art. 944, caput, do Código Civil não afasta a possibilidade de se reconhecer a função punitiva ou pedagógica da responsabilidade civil”. Assim, defende-se a possibilidade de aplicação da função desestimuladora também na experiência brasileira, coibindo condutas que ensejem novos danos, funcionando também como uma medida de prevenção.

Assim, necessário pontuar que a função punitiva da responsabilidade civil assume um caráter moralizador, concorrendo, de forma indireta, para a função preventiva.

Pelo exposto, percebe-se que o incidente envolvendo duas das mais notórias celebridades de Hollywood permite amplo espaço para debates jurídicos, independentemente de juízo de valor. Ainda que o caso não vá parar nos tribunais, é interessante destacar as possibilidades férteis propiciadas pelo acontecimento, norteadas, no caso, pelo Direito Civil.

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Caio César do Nascimento Barbosa

 

Referências

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1. RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Liberdade de expressão, responsabilidade civil e discurso de ódio. Portal Migalhas. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3L2audI. Acesso em: 15 fev. 2022.

2. US SUPREME COURT. “Hustler Magazine, Inc. v. Falwell.” Oyez, Disponível em: https://bit.ly/3LaQbuk. Acesso em: 30 mar. 2022.

3. PORTAL MIGALHAS. Danilo Gentili deve excluir posts gordofóbicos sobre modelo plus size. Disponível em:https://bit.ly/37yLEU1. Acesso em: 18 abr.  2022.

4. ISTOÉ. ‘Deveria ter sido preso’, dispara Jim Carrey sobre agressão de Will Smith no Oscar. Disponível em: https://bit.ly/3xF0qU4. Acesso em: 30 mar. 2022.

5. CONJUR. Tapa no rosto gera indenização de R$ 10 mil em Minas Gerais. Disponível em: https://bit.ly/3rCkH8M. Acesso em: 30 mar. 2022.

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