Um direito penal sem ideologia

Um direito penal sem ideologia

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O primeiro artigo da coluna Simplesmente Direito Penal não poderia deixar de tratar de uma problemática especialmente brasileira: a influência da ideologia no direito penal.

Antes de apontar críticas, bodes expiatórios e culpados, é necessário entender o que significa o termo ideologia. Inicialmente, não parece equivocado afirmar que se trata de uma lente a partir da qual se tenta entender a realidade por meio de princípios, conceitos e postulados pré-fixados.

De toda forma, parece prudente consultar o prestigiado dicionário de filosofia do Nicola Abbagnamo.1 Segundo o qual a origem do conceito remete-se a Destut de Tracy, em sua obra Idéologie de 1801, no qual a ideologia é descrita como uma análise de sensações e ideias.

Posteriormente, o termo foi utilizado no cenário político por ninguém menos do que Napoleão Bonaparte. Em tom depreciativo, o francês rotulou de ideólogos seus opositores mais tradicionais e hostis, no sentido de que não tinham nenhuma noção de política nem contato com a realidade.

Em síntese, esse foi o cenário histórico responsável pelo significado moderno do termo, a partir do qual ideologia foi definida como uma doutrina, em alguma medida, destituída de validade objetiva, mas hábil para manter intocáveis determinados interesses.

Marx, nesse sentido, bem articulou a noção de ideologia com a luta contra a cultura “burguesa”. É dizer, são as relações de produção e de trabalho, inerentes a cada período histórico, as responsáveis por sustentar crenças religiosas, filosóficas, políticas e morais.

Um passo importante foi dado por Vilfredo Pareto. Segundo o qual ideologia corresponde a uma teoria não científica. A razão disso é o fato de que a cientificidade de um postulado teórico não deve ser avaliada subjetivamente, senão objetivamente, em confronto com a experiência. A ideologia, por outro lado, só pode demonstrar seu valor no campo da persuasão.

Então, Pareto conclui que ciência e ideologia pertencem a dois campos separados. É dizer, enquanto a primeira é pautada pela observação, pelo raciocínio, pela experiência; a segunda só aufere relevância em razão do sentimento, da crença e da fé.

No geral, segundo Abbagnano, ideologia é toda crença utilizada para controlar o comportamento coletivo, independentemente de ter ou não validade objetiva, ou seja, corresponder ou não às estruturas da realidade.

A questão é: se a ideologia não é sinônimo de validade objetiva, senão só crença e fé em determinados postulados, por quais motivos ela continua a influenciar o direito penal e processual penal?

É verdade que alguns podem negar esta influência, mas será que esses já não estão enxergando o direito penal a partir de suas próprias ideologias? Uma prova irrefutável da presença da ideologia no direito penal é o fato de que, no Brasil, amiúde a escolha de um curso ou manual de direito penal ou processo penal é condicionada à carreira jurídica exercida pelo autor. No cenário jurídico brasileiro é comum ouvir que: “determinado jurista é advogado, por isso tende para um lado, enquanto outro é juiz ou promotor, por isso seus posicionamentos são neste ou naquele sentido”. Definitivamente, um direito penal nesses moldes não parece ser saudável nem científico, pois não só se ampara em argumentos de autoridade como também confere às razões um papel secundário.

Sem dúvidas, o remédio para esse diagnostico passa pelo que o professor Luís Greco defende em um pequeno e essencial texto escrito em homenagem ao professor Bernd Schünemann.2 Isto é, a solução é ofertar aos estudiosos, aos pesquisadores, sobretudo, aos professores um suporte institucional no qual se fomente a produção e o desenvolvimento de uma verdadeira e pura ciência jurídica. Principalmente, considerando que

A ciência jurídica não oferece poder, senão razões; o poder não se interessa por razões enquanto razões, mas pelo seu suporte de legitimação. Onde existe ciência jurídica, mas lhe falta proteção institucional por meio de uma universidade independente, com obrigações apenas em relação ao próprio direito, a ciência jurídica se torna corruptível; ela ameaça se degenerar em um discurso de legitimação, ou seja, em ideologia. O cientista que é, em primeiro lugar, advogado ou juiz pensará duas vezes antes de tecer críticas ao legislador e, sobretudo, aos julgamentos de juízes superiores. O fato de isso ser menos perceptível na Alemanha já é consequência dessa proteção institucional; consequência de haver, aqui, um intercâmbio científico, em grande parte, mais livre dessas preocupações. Essa proteção institucional conduziu a uma nítida distinção entre ciência desinteressada e ideologia orientada por interesses. Na Alemanha, até mesmo o advogado ou o juiz que publica cientificamente não o faz, idealmente, enquanto advogado ou juiz, senão enquanto professor.3 

As palavras do professor Luís Greco são mais do que suficientes para expor a ideia central dessa breve exposição. De qualquer modo, parece ser razoável acrescentar o fato de que não é papel da ciência oferecer uma resposta final, definitiva e inquestionável, sob o risco dela mesma se corromper a ponto de se consolidar, no final das contas, como uma ideologia.

Finalmente, em razão de tudo isso é que essa coluna – parafraseando o prestigiado escritor alemão Thomas Mann em “A Montanha Mágica” – prefere desvairar um pouquinho, dizer tolices, mas exprimir, com maior ou menor clareza, uma ideia complicada a proferir tão só lugares comuns, formulados de forma perfeita.

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Mathias Oliveira Campos Santos

 

Referências

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1. ABBAGNANO, Nicola Dicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bossi. 5ª ed. Martins Fontes, 2007. P. 531/533.

2. GRECO, Luís. Dogmática e ciência do direito penal. In: As razões do direito penal. Quatro estudos/ Luís Greco; tradução e organização: Eduardo Viana; Lucas Montenegro; Orlandino Gleizer. -1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2009.

3. GRECO, Luís. Dogmática e ciência do direito penal. In: As razões do direito penal. Quatro estudos/ Luís Greco; tradução e organização: Eduardo Viana; Lucas Montenegro; Orlandino Gleizer. -1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2009, p. 28.

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