O perigo do Superendividamento pandêmico ainda é real

O perigo do Superendividamento pandêmico ainda é real

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Em se tratando de um período excepcionalíssimo de pandemia, marcado, em potencial, pelas restrições de direitos fundamentais, como o de ir e vir, assim como o de livre arbítrio. Chama-se atenção às implicações pelo retrocesso, também, no que tange a defesa do consumidor. Garantia esta, da mesma forma, prevista constitucionalmente nos moldes do inciso XXXII do art.5º da Constituição da República.

A síntese dos estudos de Zygmúnt Bauman relativos à sociedade de consumo nos brinda com um paralelo no sentido de que é imprescindível ao cidadão ter equilíbrio entre a exclusão pela falta do consumo e a adesão ao consumismo irresponsável, capaz de arruiná-lo.

Tal premissa inserida em contexto de larga escala, remete à implicação dos males de uma pandemia para com a economia individual de cada cidadão, vez que vivemos numa sociedade de consumo, isto é, onde o consumo não se sugere, se impõe. Num âmago em que uma sociedade de massas e de classes tem suas relações definidas pelo mercado e sua exposição excessiva, que, simultaneamente, admite interações anônimas e despersonalizadas entre grande número de pessoas (por isso sociedade de massas) e determinadas pela sua posição respectiva no processo produtivo (na apropriação dos benefícios da vida social, por isso sociedade de classes).

Nesse sentido, vê-se no Superendividamento um fenômeno sócio-econômico em que determinado coletivo se depara com a má gestão dos recursos adquiridos pelos seus cidadãos, de modo que uma faixa relevante dos nacionais contraia dívidas que alcancem valores muito superiores aos próprios ganhos, algo muito comum em grupos de menor informação e formação educacional, os quais, infelizmente, possuem, em geral, maiores dificuldades em gerir seus recursos. Seja pela baixa renda ou pela falta de orientação, mas principalmente, pela exposição excessiva, senão abusiva, de produtos e serviços, assim como, de crédito acessível e irresponsável para adquiri-los.

No que toca ao “crédito ao consumo”, primeiramente, é preciso entender que em fases de massificação, democratização do crédito e crise de garantias mundial, quiçá, com a quarentena, possibilita sérios perigos… O problema vai além do endividamento, vez que o Brasil não conhece, até então, a falência do consumidor, como enfatiza Cláudia Lima Marques. Assim, o endividamento excessivo ou, simplesmente, o grande (super)endividamento pode levar a exclusão da pessoa da sociedade de consumo. Esta dificuldade em lidar com o consumo, para Bauman, seria a ruína na busca do indivíduo pela subjetividade, objetivada no consumo direcionado e vanguardista… melhor dizendo… “compro, logo sou”.

Atualmente, é possível enxergar as consequências do recente desastre político-econômico somadas à tendência pelo consumismo. Os brasileiros, mais do que nunca endividados, sentiram de perto os prejuízos trazidos pelas limitações de uma quarentena, isso pela necessidade de lidar com o avanço do coronavírus, que vem afetando diretamente os mercados ao redor do mundo, elevando as preocupações dos investidores sobre os impactos na economia global.

A pesar, por exemplo, que o número de famílias com dívidas em cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, empréstimo pessoal, prestação de carro e seguro chegou a bater recorde em abril de 2020, afirma estudo. Outro fato preocupa: o porcentual de famílias endividadas alcançou no ano passado alarmantes 66,6% – o maior desde o início da realização da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, em janeiro de 2010. Frisa-se que o último levantamento foi feito após o início da pandemia de coronavírus no Brasil.

Somado a isso, a questão toma aspectos ainda mais incertos se observada a projeção do PIB brasileiro: As repercussões atribuídas ao fenômeno do COVID-19 e suas variantes têm pesado nas projeções do crescimento da economia brasileira. Em relatório recente, economistas afirmaram que o Produto Interno Bruto (PIB) terá uma retração de 4,11%.

Vê-se, portanto, uma situação de força maior (art. 393 do Código Civil), agravada ainda pelas medidas de “isolamento social”. Cláudia Lima Marques viu como certa, no início da pandemia que a crise de saúde global teria forte impacto na economia e no mercado de trabalho. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o risco de aumento no número de desempregados no mundo foi para quase 25 milhões. Estimando-se também que a pobreza no trabalho aumentaria significativamente.

A autora, assim como a OIT, compreendeu que era indispensável a adoção de medidas em larga escala e coordenadas, baseadas em três pilares: proteger os trabalhadores no local de trabalho; estimular a economia e o emprego; e apoiar os postos de trabalho e a renda.

Certo é que a crise atingiu mais fortemente os grupos ditos “supervulneráveis” da população, a exemplo dos trabalhadores informais, idosos e pessoas de baixa renda. Aqueles que já se encontravam inadimplentes – mais de 60 milhões de brasileiros – algo em torno de 40% da população adulta (número superior ao da população total da Itália) enfrentarão mais um grande obstáculo para a reestruturação das suas dívidas.

Neste sentido e em vista do combate a tal preocupação, merecem destaque alguns dos instrumentos da Nova Lei de Superendividamento, responsável por promover atualizações no CDC, que podem ser usados neste momento mesmo antes de sua aprovação, de forma a evitar uma crise de superendividamento em massa dos consumidores.

No momento, o que se exige é uma resposta política coordenada que proporcione, além da manutenção do emprego, uma recuperação sustentável e equitativa, o impacto da crise financeira e de saúde no Brasil poderá ser menor. Nesse contexto, o inadimplemento ocasionado pelos efeitos da pandemia em comento impõe a interpretação conjunta do requisito previsto no direito positivado atinente à imputabilidade do devedor (consubstanciada na expressão “der causa”, do artigo 395 supra) com a causa excludente de responsabilidade da força maior, assim disposta no art. 393. Frisa-se que a força maior não significa o fim da obrigação de remuneração, mas somente sua dilação, razoável até o final da crise e restabelecimento da normalidade, e deve ser considerada para todos os consumidores, no caso da pandemia de COVID-19.

O Código Civil vigente, para contratos entre iguais, bem esclarece que, em matéria de serviços, os realizados devem ser remunerados, mesmo que limitados por questões de força maior, uma interessante forma de não observar culpados, mas manter o foco nos prejudicados.

Além de força maior, a pandemia caracteriza um evento incontrolável e imprevisível. Atento a isto, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) frisa que é direito do consumidor a modificação das cláusulas contratuais ou sua revisão “em razão de fatos supervenientes”, segundo o art. 6º, V, do CDC. Assim como a vedação expressa a cláusulas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade, vide seu art. 51.

Fatores que reiteram a Boa-fé objetiva, lembrada na Lei 14.181, e que se atenta à necessidade de uma moratória para consumidores durante a Pandemia. O referido Projeto representa um reforço da dimensão ético-inclusiva e solidarista do Direito do Consumidor, na medida em que cria instrumentos e novas normas para prevenir o superendividamento da pessoa física de boa-fé, seja no sentido de promover o acesso ao crédito responsável e à educação financeira do consumidor, seja no sentido de reforçar as iniciativas pioneiras de tratamento global das audiências conciliatórias com todos os credores para elaborar e aprovar planos de pagamento das dívidas dos consumidores superendividados.

Apesar do desenvolvimento avassalador da tecnologia, o Projeto visou o acesso contínuo ao consumo e ao crédito, mediante contratos cada vez mais leais e transparentes, evitando a exclusão de grande parte da população dos meios eletrônicos mais eficientes e sofisticados de contratação e também combatendo a exclusão social causada pelo superendividamento. E, ainda que ocorra, assegurando o retorno do consumidor à sociedade de consumo, com a elaboração do devido plano de pagamento, preservando o mínimo existencial, logo, mantido o equilíbrio dos contratos realizados.

Portanto, se em seu aspecto social o superendividamento demanda a superação da arcaica ideia de mero desequilíbrio financeiro individual para ratificar a conjectura macroeconômica adstrita ao fenômeno, o aspecto jurídico do superendividamento demarca a urgência em reconhecer o consumidor superendividado enquanto sujeito de diretos e destinatário de tutela jurídica consumerista específica no âmbito da sociedade de consumo. Dito de outra forma, o trato ao superendividamento se revela uma medida voltada ao social sem se deixar de reconhecer a relevância da manutenção da economia, de modo que não hajam vítimas da crise, apenas sobreviventes que ascendem para a retomada de um consumo saudável e benéfico a todo o contingente nacional.

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Túlio Coelho Alves

 

Referências

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ABDO, Natan Della Valle; FARIA, Gentil de; LUCCA, Marcelo de. Dever de mitigar o prejuízo e o superendividamento bancário. Leme: JH Mizuno, 2020.

BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz. Mínimo existencial instrumental e o papel dos CEJUSCs na restauração do vínculo da família superendividada. In: CAVALLAZZI, Rosângela Luanrdelli (org.); LIMA, Clarissa Costa de (org.); MARQUES, Claudia Lima (Org.). Direito do consumidor endividado II: vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Editora RT, 2016.

BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz. Superendividamento: mínimo existencial: casos concretos. São Paulo: RT, 2015.

BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2021.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: https://bit.ly/3cr9MqH. Acesso em: 12 abr. 2020.

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: https://bit.ly/3oCfThi. Acesso em: 01 abr. 2020.

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: https://bit.ly/3r047jA. Acesso em: 13 ago. 2018.

BRASIL. LEI Nº 14.181, DE 1º DE JULHO DE 2021. Disponível em: https://bit.ly/3FLRxcf. Acesso em: 18 nov. 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial: 1555722/SP 2015/0226898-9, Rel. Min. LÁZARO GUIMARÃES (Des. Convocado do TRF 5ª REGIÃo), 2ª Seção, julg: 22 ago. 2018; pub: 25 set. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3FzZ6CF. Acesso em: 01 nov. 2021.

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