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A Elasticidade do Nexo Causal: Uma Visão Do Fortuito Interno À Luz Da Jurisprudência Do STJ  (Parte I)

Direito Penal

O presente artigo aborda o posicionamento da jurisprudência, em especial do Superior Tribunal de Justiça, a partir de uma análise doutrinária e jurisprudencial, acerca do recrudescimento das causas de exclusão de responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços frente ao consumidor, ou alargamento das hipóteses que permitem a condenação dos fornecedores pelos danos causados ao consumidor, mediante uma interpretação cada vez mais ampla acerca do conceito de fortuito interno.

Tomemos por exemplo o RESP 287.849/SP, no qual o Autor, propôs ação indenizatória em face do Hotel no qual se hospedou e da agência de turismo que lhe vendeu o pacote de viagens, buscando reparação por danos morais, materiais e estéticos que entendeu ter sofrido por conta de acidente que o vitimou na piscina do referido hotel, lhe causando tetraplegia.

A ação foi julgada improcedente em primeira instância.

Em sede de apelação, foi dado provimento parcial ao recurso (exceção feita ao pedido de juros compostos) para reconhecer a integral responsabilidade dos prestadores de serviços, desconsiderando, por completo, a conduta do consumidor que poderia ser levada em conta para mitigação da responsabilidade, fundamentando assim sua decisão:

  • Estabelecimento de relação de consumo entre o Autor e as Rés, nos termos do Código de Defesa do Consumidor;
  • São direitos básicos do consumidor a proteção à vida, saúde e segurança contra riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços perigosos ou nocivos (artigo 6º, I, do CDC);
  • Tendo em vista a existência de crianças e hóspedes que não sabem nadar, a piscina deve ser considerada como prestação de serviços perigosos;
  • Não existia obstáculo ao uso da piscina no horário do acidente, não obstante seu horário de funcionamento ter se encerrado às 19h30, havia ainda, precariedade de iluminação, impedindo a percepção pelo hóspede da quantidade de água que abastecia a piscina e a colocação do escorregador que usualmente “convidava” o usuário a dele se utilizar escorregando de barriga para baixo;
  • O hotel estava ciente da chegada de dois ônibus de excursão, transportando jovens e deveria ter se cercado de providências que provessem maior segurança aos usuários, redobrando a vigilância;
  • De acordo com os termos do artigo 14, do CDC, o prestador dos serviços responde pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre a fruição e riscos;
  • Não houve culpa exclusiva do consumidor (hóspede) a afastar a culpa do prestador de serviços nos termos do inciso II, do parágrafo 3º, do artigo 14, do CDC.
  • Não se poderia falar, igualmente, em culpa concorrente diante da total ausência de comunicação sobre a profundidade da piscina, que tinha seu acesso livre e iluminação precária;
  • A agência de turismo é legítima para responder aos termos da demanda tendo em vista seu objeto social que é a exploração do turismo;
  • A agência teria agido com culpa in eligendo, escolhendo mal o hotel para o pacote, notadamente em se tratando de excursão de jovens;

Assim, o TJSP condenou solidariamente a empresa de turismo e o hotel a pagar indenização por danos morais. Neste aspecto, ficou ressaltado que cada ré arcaria com o pagamento de metade da condenação.

Foi determinado, ainda às Rés, a constituição de capital para a satisfação do pagamento mensal dos salários percebidos pelo Autor, incluindo décimo-terceiro e férias, vitaliciamente, devendo pagar as prestações atrasadas de uma só vez.

Por último, houve condenação na restituição dos danos estéticos, no valor de R$ 31.371,32 (trinta e um mil, trezentos e setenta e um reais e setenta e dois centavos).

Desafiada a decisão estadual, foi interposto Recurso Especial ao qual foi dado parcial provimento.

O STJ reconheceu a ocorrência de culpa concorrente da vítima por ter agido de forma imprudente, adotando comportamento fora do que seria usualmente esperado, reduzindo pela metade a condenação fixada pelo Tribunal estadual.

Os fundamentos do v. acórdão podem assim ser resumidos:

Houve relação de consumo entre o Autor e as Rés, havendo a incidência, no caso, da responsabilidade objetiva, com algumas hipóteses de exclusão e se utilizou do conceito de periculosidade inerente.

Diante disso, o STJ concluiu que a piscina, do modo como instalado (com água na profundidade de 1,10 metros, assim como o escorregador, poderia ser utilizada sem causar dano ao banhista. Assim fez incidir, sobre a hipótese, o parágrafo 1º do artigo 14, do CDC, que determina seja levado em consideração o risco que razoavelmente se espera do serviço, no caso, do equipamento de uma piscina.

Assim o hotel foi considerado responsável em igual proporção ao Autor, relativamente ao evento danoso, por isso, a redução pela metade da condenação fixada em sede de apelação.

Curiosa, no entanto, e objeto central do estudo proposto no presente artigo, é a condenação da agência de turismo porque:

  • O contrato firmado entre as partes corresponde a um “pacote turístico”, compreendendo três dias, com transporte, hospedagem e alimentação.
  • Nos termos do artigo 14, do CDC, o fornecedor responde pela segurança dos serviços prestados.
  • O pacote de viagem era destinado a um grupo de pessoas, que viajou sob a direção de um guia de turismo.
  • Diante da legislação comparada (Leis do Conselho das Comunidades Europeias, leis italiana, suíça, francesa e argentina) nas quais os operadores e ou agências devem ser responsáveis perante o consumidor pela boa execução das obrigações decorrentes do contrato; que, além disso, os operadores e ou as agências devem ser responsáveis pelos danos causados ao consumidor pela não execução ou pela incorreta execução do contrato, salvo se as falhas registradas na execução do contrato não forem imputáveis nem a falta do operador e ou agência nem a falta de outro prestador de serviços, fixou-se a responsabilidade da agência de turismo por ter sido ela a agente de viagem contratante de um pacote turístico, com terceiros prestadores de serviço, mas sendo ela a organizadora da viagem e garantidora do bom êxito da sua programação, inclusive no que diz com a incolumidade física dos seus contratantes.
  • Pelo princípio da reparação total do dano adotado no direito brasileiro, ao colocar seu cliente em situação de perigo acima do que seria normalmente esperado (elegendo hotel que não teria adotado condições de segurança adequadas para receber os hóspedes), a operadora de turismo é atingida pela extensão da responsabilidade em reparar o dano causado ao consumidor.

Na segunda parte de artigo, serão abordados os aspectos dogmáticos que vêm sendo utilizados pelo STJ para ampliar as hipóteses de responsabilização civil das empresas nas relações de consumo.

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Fabiano Cardoso Zakhour

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