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A Importância da Autodeterminação Informativa para a Proteção de Dados

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Nos capítulos iniciais das leis comumente são elencados artigos de caráter mais principiológico, genérico, inaugurando os valores interpretativos para todo o texto normativo. A título de exemplo cite-se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária do art.3º, I da Constituição da República Federativa do Brasil; dos arts. 2º e 3º do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), prevendo, respectivamente, seus fundamentos e princípios; e o art. 2º da Lei da Mediação (Lei 13.140/2015) que estabelece os princípios orientadores desse método de resolução de conflitos.

A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) possui formação semelhante no art.2º:

Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:

I – o respeito à privacidade;

II – a autodeterminação informativa;

III – a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;

IV – a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;

V – o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;

VI – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e

VII – os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

A qualquer leitor(a) são familiares alguns termos como os incisos I, IV e VI, contudo um deles acaba se destacando, o inciso II, trazendo a chamada autodeterminação informativa. Sua inserção enquanto fundamento da lei é de suma importância para os titulares1 dos dados pessoais. Mas qual o seu conteúdo e porque ele é importante?

Para responder a essa pergunta é necessário retornar à Alemanha da década de 80, em especial à Corte Constitucional Alemã. Em 1982 foi aprovada lei que organizava o censo e nela havia a determinação de que os cidadãos responderiam cerca de 160 perguntas, submetidas a posterior processamento informatizado. As respostas poderiam ser confrontadas com dados do registro civil, bem como poderiam ser aplicadas multas a quem se recusasse a responder ao questionário.2 A Lei foi objeto de muitas críticas e, após ser analisada pelo Tribunal, o recurso recebeu parcial procedência, permanecendo as disposições de dados anonimizados para fins científicos.3

As razões da declaração de inconstitucionalidade dos demais dispositivos da lei, segundo o Tribunal, foram a preocupação de meios informatizados retirarem o poder do indivíduo de decidir por si mesmo e a forma de compartilhamento desses dados a terceiros, “considerando que o processamento de dados possibilitaria a elaboração de um ‘perfil completo da personalidade’ por meio de ‘sistemas automatizados integrados sem que o interessado pudesse controlar de forma suficiente sua correção e utilização’”.4

Um ponto crucial na decisão foi a relevância do dado pessoal ligado à personalidade, de forma que independente da natureza da informação, por ser ligada à pessoa, deveria receber proteção, ou seja, todos os dados importam. Mas essa interpretação só foi possível, segundo Laura Schertel Mendes, graças à evolução jurisprudencial do Tribunal a qual pavimentou a importância do direito geral da personalidade. A construção desse direito pela prática jurisdicional deu-se pela constatação que a personalidade não deveria ficar adstrita a um discurso eminentemente privado, pois ela é matéria também ligada à esfera pública do indivíduo, da sua relação com a sociedade e vice-versa.5 Caberia à pessoa escolher o que é relevante para ser tornado público e o que permaneceria em seu espaço íntimo.

A chave interpretativa da autodeterminação informativa reside, assim, na possibilidade do indivíduo escolher quais informações serão cedidas e como serão utilizadas para a construção da sua personalidade. Além do poder de exclusão, conforme Stefano Rodotá, agora tem-se a ideia de controle, não mais a ideia “pessoa-informação-sigilo”, mas “pessoa-informação-circulação-controle”.6

Essa interpretação da autodeterminação informativa, ligada à personalidade do indivíduo, encontra base interpretativa no Brasil,7 cuja doutrina se alinha à noção da realização da pessoa humana mediante o controle das próprias informações.8

Compreender esse fundamento da LGPD é de suma importância, pois a partir dele vários dos direitos garantidos aos titulares ganham novos contornos para além da lógica mercadológica, tão presente quando se fala em dados pessoais.

Os art.18 e 20, a título de exemplo, elencam vários dos direitos dos titulares frente aos agentes de tratamento,9 como o acesso aos dados (art.18, I); a correção dos dados incompletos, inexatos ou desatualizados (art.18, III); a anonimização, o bloqueio ou a eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em contrariedade à Lei (art.18, IV) ou o direito à explicação dos critérios utilizados para decisões tomadas com base em tratamento automatizados (art.20, §1º).

Ao entender que as postagens mais comuns no feed da rede social não correspondem às suas preferências, o titular pode requerer ao provedor de aplicação quais dados foram levados em consideração para a construção do seu perfil, podendo solicitar a atualização dos dados, bem como a eliminação de determinada categoria destes que não mais o representam na atualidade.

Esse é apenas um dos vários exemplos ilustrativos do maior protagonismo da pessoa na sociedade da informação, garantido pela Lei Geral de Proteção de Dados, permitindo que o indivíduo não fique à mercê da nítida assimetria existente entre ele e os agentes de tratamento, relembrando-os que os dados ainda dizem respeito a uma pessoa, não a um objeto.

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André Felipe Krepke

 

Referências

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1. Titular, conforme o art.5º, V da LGPD, é a “pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento”.

2. DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. 2. Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p.165-172.

3. MENDES, Laura Schertel Ferreira. Autodeterminação informativa: a história de um conceito. Revista Pensar. v. 25, n. 4, p. 1-18. 2020. p. 12.

4. MENDES, Laura Schertel Ferreira. Autodeterminação informativa: a história de um conceito. Revista Pensar. v. 25, n. 4, p. 1-18. 2020. p. 11.

5. Em texto específico a autora trata dos julgados antecedentes, importantes para a construção da autodeterminação informativa na Alemanha.  MENDES, Laura Schertel Ferreira. Autodeterminação informativa: a história de um conceito. Revista Pensar. v. 25, n. 4, p. 1-18. 2020.

6. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.93.

7. Para uma análise mais precisa da tutela da personalidade no direito brasileiro confira-se: TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 23-58

8. Nesse sentido confira-se MORAES, Maria Celina Bodin de. Ampliando os direitos da personalidade. In: VIEIRA, José Ribas. (Org.). 20 anos da Constituição cidadã de 1988: efetivação ou impasse institucional? Rio de Janeiro: Forense, 2008.

9. Sobre os demais direitos dos titulares confira-se SILVA, Priscilla Regina. Os direitos dos titulares de dados. In: MULHOLLAND, Caitlin (Org.). A LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago, p.195-215.

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