A liberdade de expressão1 é um pilar essencial em qualquer sociedade democrática, permitindo que ideias, opiniões e informações fluam livremente.2 Contudo, a interseção entre a liberdade de expressão,3 a cultura do cancelamento4 e a disseminação de fake news5 pode ter consequências devastadoras, como ilustra um trágico caso ocorrido no Brasil.
A cultura do cancelamento, um fenômeno contemporâneo em que indivíduos são alvo de boicotes e ostracismo social devido a opiniões controversas, atingiu um novo patamar com a ascensão das redes sociais. A velocidade com que informações se espalham e a polarização exacerbada contribuem para um ambiente propício ao cancelamento, muitas vezes desencadeado por notícias falsas.
Recentemente, uma jovem de 22 anos se tornou vítima desse complexo cenário. O início da tragédia foi marcado pela divulgação de uma fake news por páginas de fofocas, que, ávidas por cliques e audiência, espalharam uma narrativa falsa sobre a vida pessoal da jovem. Essa notícia, distante da verdade, desencadeou uma onda de ódio virtual direcionada à vítima, alimentando a cultura do cancelamento.
Segundo reportagem da Revista Forum:
“Na semana passada, algumas páginas de fofoca, incluindo a Choquei – que conta com mais de 30 milhões de seguidores -, publicaram prints de uma suposta conversa entre a jovem de 22 anos de idade e o humorista Whindersson Nunes.
A informação foi desmentida por Whindersson, mas circulou o suficiente para causar dano moral a Jéssica. Ao longo de cinco stories feitos na última segunda-feira (18), ela desabafou sobre os problemas que enfrentou no último ano com sua saúde mental, afirmando que 2023 foi o ano mais difícil da sua vida.”6
Na noite de sexta-feira, 22 de dezembro de 2023, por meio da plataforma do Instagram, a família da jovem informou que ela tirou sua própria vida.
Esse trágico desfecho destaca a necessidade urgente de reflexão sobre a responsabilidade que acompanha a liberdade de expressão, especialmente nas plataformas digitais. Os disseminadores de fake news e as páginas de fofocas que contribuíram para a tragédia devem ser chamados à responsabilidade, evidenciando a importância de se distinguir entre liberdade de expressão legítima e a disseminação irresponsável de informações falsas.
O caso também sublinha a necessidade de promover uma cultura digital mais empática e tolerante. A cultura do cancelamento, quando levada ao extremo, não apenas prejudica indivíduos, mas também cria um ambiente tóxico que pode ter consequências fatais. É imperativo que a sociedade como um todo trabalhe para construir uma internet mais inclusiva, onde o diálogo prevaleça sobre o linchamento virtual.
Em última análise, a liberdade de expressão é uma ferramenta poderosa que deve ser utilizada com responsabilidade e consciência do impacto que pode gerar. A tragédia da jovem brasileira serve como um alerta para a importância de repensar nossas interações online, promovendo um ambiente digital saudável e respeitoso.
Panorama jurídico da Liberdade de Expressão
No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso IV, consagra a liberdade de manifestação do pensamento, vedando o anonimato e assegurando o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de resguardar a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. No entanto, a própria Constituição estabelece limites a essa liberdade, como a proibição de manifestações discriminatórias e a incitação à prática de crimes.
O Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965/2014, é uma legislação que regula o uso da internet no Brasil, e traz dispositivos relevantes sobre a liberdade de expressão. Em seu artigo 19, estabelece que provedores de aplicações de internet não serão responsabilizados por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, a menos que não cumpram decisões judiciais que determinem a remoção do conteúdo. No entanto, essa imunidade não se estende a casos de descumprimento de ordens judiciais.
Além disso, o Código Penal brasileiro tipifica diversos crimes que podem incidir sobre a liberdade de expressão na internet, como calúnia, difamação, injúria, racismo, entre outros. A responsabilização por esses crimes não se restringe apenas aos autores diretos, podendo incluir também aqueles que propagam, reproduzem ou colaboram na disseminação do conteúdo ofensivo.
A jurisprudência brasileira tem reforçado a ideia de que a liberdade de expressão não é ilimitada, sendo necessário ponderar esse direito com outros princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana e o direito à intimidade. Decisões judiciais têm buscado encontrar um equilíbrio entre o direito à liberdade de expressão e a proteção de outros direitos fundamentais, considerando o contexto específico de cada caso.
Em síntese, embora a internet proporcione um espaço amplo para o exercício da liberdade de expressão, é crucial reconhecer que essa liberdade não é absoluta. O direito brasileiro estabelece limites legais, buscando conciliar a proteção da liberdade de expressão com a preservação de outros valores fundamentais em uma sociedade democrática. A aplicação desses limites demanda uma análise cuidadosa, levando em consideração o contexto, a gravidade do conteúdo e a proteção dos direitos.
Referências
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1. GUIMARÃES, Clayton Douglas Pereira; SILVA, Michael César. Repercussões do exercício da liberdade de expressão e da disseminação de fake news no contexto da sociedade da informação. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coords.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 201-216.
2. BARBOSA, Caio César do Nascimento. Podcasters on the Media: Sobre Liberdade de Expressão e Hate Speech. 2022. Magis: Portal Jurídico. Disponível em: link. Acesso em: 23 dez. 2023.
3. GUIMARÃES, Clayton Douglas Pereira ; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira. Fake News e Eleições Presidenciais 2022. 2022. Magis: Portal Jurídico. Disponível em: link. Acesso em: 23 dez. 2023.
4. BARBOSA, Caio César do Nascimento. Quem cancela os canceladores? A cultura do cancelamento na “idade mídia” e o “hate speech”. 2021. Magis: Portal Jurídico. Disponível em: link. Acesso em: 23 dez. 2023.
5. GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; SILVA, Michael César. Fake news à luz da responsabilidade civil digital: o surgimento de um novo dano social. Revista Jurídica da FA7, v. 16, n. 2, p. 99-114, 2019. Disponível em: link. Acesso em: 16 set. 2022.
6. FERREIRA, Yuri. Caso Choquei: entenda a notícia falsa apontada como causa de morte de Jéssica Canedo. 2023. Revista Fórum. Disponível em: link. Acesso em 23, dez. 2023.
7. BARBOSA, Caio César do Nascimento. Afinal, a liberdade de expressão é um direito absoluto? Magis: Portal Jurídico. Disponível em: link. Acesso em: 23 dez. 2023.