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Como o caso Johnny vs. Amber contribui para a descredibilização das mulheres

Depp Heard

Não, este não é um texto para defender Johnny Depp ou Amber Heard

Inicialmente cabe fazer um resumo do caso em questão, para, após analisar os fatos, abordar seus reflexos no movimento feminista e na validação do discurso das mulheres.

Amber Heard e Johnny Depp se conheceram em 2009, no set de filmagens de Diário de um Jornalista Bêbado. Na vida real, o relacionamento começou por volta de 2012, e casaram-se no ano de 2014. Apesar de estarem no relacionamento por alguns anos, o casamento durou apenas 15 meses.

Os confrontos judiciais tiveram início no ano de 2016, quando a atriz pediu o divórcio e uma ordem de restrição contra o ator, acusando-o de abusos psicológicos e físicos. Johnny negou todas as acusações, afirmando que Heard estava alegando abuso para assegurar uma resolução financeira no divórcio.1

Um dia antes do julgamento que concederia a medida protetiva para Amber, ela retirou as acusações.2 O processo foi finalizado em 2017, e Amber Heard recebeu o total de US$ 7 milhões do acordo de divórcio, que seriam doados para as organizações: American Civil Liberties Union (ACLU), especificamente para prevenir a violência contra as mulheres, e o Hospital de Crianças de Los Angeles.3 Recentemente a atriz confessou que não doou a quantia prometida para a ACLU (US$ 3,5 milhões).4

Entretanto, o que parecia ter chegado ao fim tomou folego no ano de 2018, com um artigo publicado pelo “The Sun”, famoso jornal no Reino Unido, questionando como a escritora J.K. Rowling poderia estar feliz com um “espancador de mulheres” em Animais Fantásticos (franquia derivada do universo de Harry Potter).5 Na época a equipe tinha optado por manter Depp como o Vilão Gerardo Grindewald, mesmo após as acusações.

Assim, o ator processou o “News Group Newspaper”, grupo responsável pela publicação do “The Sun”, por difamação. O julgamento terminou em 2021, e Depp acabou perdendo a ação após o juiz constatar que 12 das 14 acusações de violência doméstica, apresentadas pelo jornal, eram verdadeiras.6

Em dezembro de 2018, Amber Heard publicou um artigo de opinião no jornal “The Washington Post”, relatando sua experiência como “uma figura pública alvo de violência doméstica”, apontando a forma como as mulheres são tratadas quando denunciam casos desse tipo.7

Apesar de não mencionar o nome do ex-marido ou de qualquer outro possível agressor, o artigo resultou em mais um processo por difamação de Johnny Depp contra a atriz, em 2019, no valor de US$ 50 milhões.  Por outro lado, Amber Heard também processou Depp em US$ 100 milhões, dizendo que o advogado do ator a difamou quando chamou suas acusações de “farsa”.

Em 01 de junho de 2022, o júri (composto por cinco homens e duas mulheres) considerou que Heard difamou Depp no artigo publicado no “The Washington Post”, em 2018,8 condenando a atriz a pagar uma indenização de US$ 15 milhões, valor que foi reduzido para US$ 10,35 milhões, em razão do limite máximo para indenizações de caráter punitivo no estado da Virgínia.9 Também por difamação, o júri condenou Depp a pagar U$ 2 milhões10 por difamá-la por meio de seu advogado, Adam Waldman.11 Até o presente momento, Amber e sua equipe pretendem recorrer da decisão.12

Durante o tramite processual, Depp fez várias declarações, dentre as quais: que as falsas acusações fizeram com que ele perdesse oportunidades de trabalho; que ele teve o dedo decepado depois de uma briga com Amber; que ela teria sido a pessoa violenta da relação. Por sua vez, Heard se defendeu relembrando o histórico do ator com o excesso de drogas, álcool e ciúmes, que culminou em diversos ataques violentos e explosões de raiva enquanto estavam juntos, relatando, ainda, uma briga ocorrida em 2015, na Austrália, em que acusa Depp de a ter violentado sexualmente usando uma garrafa de vodka.13

Várias outras circunstâncias e fatos foram levantados pelas partes em suas defesas, mas, no tocante a temática ora desenvolvida, o que realmente importa é a inocência de Depp, até então reconhecida judicialmente, e o demérito que Amber vem sofrendo nas mídias sociais.

Trata-se de um caso midiático, e aparentemente, no tribunal da opinião pública e das redes sociais, Amber já havia perdido mesmo antes do resultado final. Durante as seis semanas de julgamento, uma espécie de consenso se formou na internet de que a atriz estava mentindo.

Para Heard, a decisão foi uma rejeição quase que total de seu testemunho. O veredicto também surpreendeu por ser este processo uma “continuidade” da derrota de Depp nos tribunais no caso do Reino Unido há quase dois anos.

Seu testemunho foi amplamente ridicularizado, sátiras foram feitas das cenas narradas por ela, no Twitter subiram várias hashtags chamando-a de psicopata, mentirosa, louca, manipuladora, havendo, ainda, uma petição para removê-la da próxima sequência do filme Aquaman.

Vários áudios, gravados em 2016, foram exibidos pela defesa de Depp na tentativa de invalidar as acusações de Amber, dentre as quais:  “Diga ao mundo, Johnny. Diga a eles: ‘Eu, Johnny Depp, um homem, também sou vítima de violência doméstica'” e “Sinto muito por não ter batido no seu rosto com um tapa apropriado, mas eu estava batendo em você, não socando você”.14 De outro lado, também em áudio gravado, o júri ouviu Depp gritando insultos e obscenidades para Heard, e viu mensagens dizendo que desejava que sua ex-mulher morresse.15

No caso em tela, é nítido que há um duplo padrão de comportamento, ambos eram abusivos e tóxicos, cada qual em sua medida, o que não isenta a culpa de nenhum deles. Entretanto, durante as últimas semanas do julgamento era comum ver nas mídias sociais trechos do julgamento contendo relatos e depoimentos das partes e de testemunhas, que em sua grande maioria visavam especialmente descreditar Heard.

No artigo de opinião publicado por Heard no “The Washington Post”, em 2018, que deu origem ao processo por difamação ajuizado por Depp, a então embaixadora dos direitos das mulheres na American Civil Liberties Union, afirmou que foi exposta a abusos ainda muito jovem, tendo sido assediada e agredida sexualmente na época da faculdade, mas optou por não denunciar, pois não esperava que isso trouxesse justiça. Ela sabia que os homens têm poder – físico, social e financeiro – e que muitas instituições apoiam esse arranjo. Aparentemente prevendo o que aconteceria, Heard diz que tornando-se uma figura pública que relatou ser vítima de abuso doméstico sentiu toda a força da ira de nossa cultura pelas mulheres que se manifestam.16

A invalidação e a chacota que vem sendo feita da posição ocupada pela atriz pode ter um efeito devastador na vida de mulheres vítimas de violência doméstica, fomentando o descredito a palavra da vítima. Sempre que fica comprovado, principalmente em casos midiáticos, que as acusações de agressões são falsas, as mulheres em geral são invalidadas, o discurso é invalidado, e o próprio movimento feminista é invalidado.

A exemplo, podemos citar o caso ocorrido em 2019, em que a modelo Najila Trindade acusou o jogador Neymar de estupro e agressão, ficando posteriormente provado que se tratava de acusação falsa.17 Na época um dos principais assuntos na internet era “como não se pode confiar na palavra de uma mulher”.

Nos últimos anos, o movimento #MeToo, que tem o objetivo de ajudar as vítimas a romper o silêncio, nos ensinou sobre como o poder de dominação patriarcal e machista funciona, não apenas em Hollywood, mas em todos os tipos de instituições e locais de trabalho. Em todas as esferas as mulheres estão enfrentando esses homens que são sustentados pelo poder social, econômico e cultural.

Os números evidenciam os altos índices de violência de gênero no Brasil e no mundo. No entanto, a misoginia imperante se utiliza de casos como os de Depp e Neymar como argumento para estimular a já existente desconfiança na palavra da mulher que denuncia algum tipo de violência, além de desestimular a realização de denúncias motivado pelo temor de após tanto sofrimento, ainda “saírem como mentirosas”. Há uma razão pela qual a maioria das pessoas mantém seus abusos privados, e o caso Heard é um exemplo disso, e mesmo que ela tivesse vencido, todo o ocorrido já teria um efeito assustador nas vítimas, ninguém quer ser desacreditado com ela foi.

Frequentemente casos de violência doméstica tendem a ser resolvidos sem denúncias. De acordo com a última pesquisa do Departamento de Justiça dos EUA, nos Estados Unidos, apenas dois em casa cinco casos são reportados à polícia.18

Denúncias falsas existem, mulheres que buscam o judiciário apenas para destruir a vida de seus ex parceiros existem, homens vítimas de violência doméstica também existem… mas, sobremaneira, acima de qualquer desses índices, existem mulheres vítimas de violência doméstica, e é disso que precisamos nos lembrar.

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Sarah Batista Santos Pereira

 

Referências

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1. SINHA-ROY, Piya. Amber Heard relata acusação de violência doméstica de Depp à polícia, dizem advogados. REUTERS. 2016. Disponível em: https://reut.rs/3bvcGNG. Acesso em: 25 jun. 2022.

2 McCARTNEY, Anthony. Johnny Depp e Amber Heard resolvem divórcio. Ap News. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3ymC0P9. Acesso em: 25 jun. 2022.

3. G1 CINEMA. Amber Heard vai doar US$ 7 milhões do divórcio com Johnny Depp. 2016. Disponível em: http://glo.bo/3OJUhva. Acesso em: 25 jun. 2022.

4 VOGUE.GLOBO. Amber Heard admite que não fez doação de US$ 3,5 milhões à caridade após divórcio milionário de Johnny Depp. 2022. Disponível em: http://glo.bo/3xQFSGy. Acesso em: 25 jun. 2022.

5 WOOTTON, Dan. Como JK Rowling pode estar ‘genuinamente feliz’ escalando Johnny Depp no ​​novo filme de Animais Fantásticos após alegação de agressão? The Sun. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3xQFPdQ. Acesso em: 25 jun. 2022.

6. BBC NEWS. Johnny Depp perde processo por difamação por acusação de ‘espancador de esposa’ The Sun. 2020. Disponível em: https://bbc.in/3A66RAv. Acesso em: 25 jun. 2022.

7. HEARD, Amber. Amber Heard: Falei contra a violência sexual – e enfrentei a ira de nossa cultura. Isso tem que mudar. The Washington Post. 2018. Disponível em: https://wapo.st/2A84kpT. Acesso em: 25 jun. 2022.

8. HONDERICH, Holly. Johnny Depp x Amber Heard: resultado do julgamento pode desestimular denúncias de violência doméstica? BBC NEWS – Brasil. 2022. Disponível em: https://bbc.in/39QgXuV. Acesso em: 25 jun. 2022.

9. HONDERICH, Holly. Johnny Depp x Amber Heard: resultado do julgamento pode desestimular denúncias de violência doméstica? BBC NEWS – Brasil. 2022.Disponível em: https://bbc.in/3OqvFrn. Acesso em: 25 jun. 2022.

10. PANCINI, Laura. Amber Heard e Johnny Depp: júri chega a um veredicto em julgamento; saiba os valores e detalhes. EXAME. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3HXvt0j. Acesso em: 25 jun. 2022.

11.  HONDERICH, Holly. Johnny Depp x Amber Heard: resultado do julgamento pode desestimular denúncias de violência doméstica? BBC NEWS – Brasil. 2022. Disponível em: https://bbc.in/3OKPbOW. Acesso em: 25 jun. 2022.

12.  RICHWINE, Lisa. Amber Heard planeja recorrer de decisão que favoreceu Johnny Depp. CNN BRASIL. Disponível em: https://bit.ly/3urtITR. Acesso em: 25 jun. 2022.

13. G1.GLOBO. Psicóloga diz em julgamento que Amber Heard foi estuprada com garrafa por Johnny Depp; ele nega. 2022. Disponível em: http://glo.bo/3OHwwUh. Acesso em: 25 jun. 2022.

14. ROLLINGSTONE.UOL. Amber Heard admite que bateu em Johnny Depp: ‘Estava tão brava que me descontrolei’. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3bnA8fL. Acesso em: 25 jun. 2022.

15. HONDERICH, Holly. Johnny Depp x Amber Heard: resultado do julgamento pode desestimular denúncias de violência doméstica? BBC NEWS – Brasil. 2022. Disponível em: https://bbc.in/3a05BEt. Acesso em: 25 jun. 2022.

16. HEARD, Amber. Amber Heard: Falei contra a violência sexual – e enfrentei a ira de nossa cultura. Isso tem que mudar. The Washington Post. 2018. Disponível em: https://wapo.st/2A84kpT. Acesso em: 25 jun. 2022.

17. EL PAÍS. Najila Trindade é indiciada por denúncia caluniosa de estupro contra Neymar. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3A9Wj3s. Acesso em: 25 jun. 2022.

18. HONDERICH, Holly. Johnny Depp x Amber Heard: resultado do julgamento pode desestimular denúncias de violência doméstica? BBC NEWS – Brasil. 2022. Disponível em: https://bbc.in/39S09Um. Acesso em: 25 jun. 2022.

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