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Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH): breve histórico crítico sobre globalização, nacionalidade e fronteiras

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Como mencionado no texto “Diálogo harmonioso, soft law e normas programáticas: a construção do Direito Internacional Privado diante de pessoas e circunstâncias de vulnerabilidade”, o Direito Internacional Privado tem encontrado novas metodologias para lidar com os desafios contemporâneos. Dentre estes confrontos, destacam-se as questões de violação de direitos humanos frente à globalização e ao enrijecimento de fronteiras.

Em 1789, a comunidade internacional adotou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (DDHC) como instrumento de igualdade, fraternidade e liberdade.1 Contudo, o que não foi observado naquela época, é o fato de que o próprio documento apresentava uma brecha para a distinção entre o conceito de homem e de cidadão.2 Nele, o termo cidadão se refere aos nacionais que cumpram os requisitos ali elencados e, por outro lado, o vocábulo homem identifica as pessoas marginalizadas.3 Essa questão ficou mais evidente entre os anos de 1914-1918 e 1939-1945, quando a Europa foi palco dos maiores confrontos armados, que reuniu grande parte das nações terrestres,4 quais sejam a Primeira Grande Guerra e a Segunda Grande Guerra, respectivamente. E, além disso, promoveu não só a diáspora, mas também maus tratos físicos e psicológicos de inúmeras etnias5  equivocadamente  julgadas como inferiores.

Ao final desses acontecimentos, as mesmas grandes potências causadoras das guerras se reuniram para criar mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos, por exemplo organismos internacionais e normas jurídicas. Embora esses atos sejam contraditórios,6 é verdade que o Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos cresceu ao longo da última década. Ainda que não tenha esgotado todas as formas de violência contra os direitos humanos,7 atualmente, existem instrumentos eficazes de redução das desigualdades, das violências e da promoção da liberdade e da fraternidade aplicadas não só aos cidadãos, mas também àqueles que transitam entre Estados sem nacionalidade (apátridas).8

Apesar dos avanços internacionais e domésticos9 referentes à mobilidade, as fronteiras continuam a ter a mesma função de barreira física imposta aos migrantes em situação de vulnerabilidade. Lamentavelmente, elas continuam a ser utilizadas como demonstração de poder e superioridade perante o outro,10 de maneira que operam como exclusão na fronteira. Este comportamento estatal, apesar de imoral e ilegal, legitima a possibilidade de escolher – sem a utilização de critérios pré-definidos legal e moralmente – quem é bem-vindo no país de destino e quem é retido em suas fronteiras.11 De modo semelhante, o controle de fronteiras também é um mecanismo autorizado legalmente, mas que representa uma conduta imoral, já que se baseia exclusivamente em poder de decisão unilateral.

Vale lembrar que, em um mundo interconectado por conta da globalização,12 a expectativa é de rompimento de barreiras (econômica, social, política, digital e física). Porém, a realidade contemporânea expõe uma estruturação e um fortalecimento de muros, que violam não só o conceito de aproximação por redes como também os direitos humanos. Em razão da ausência de verossimilhança entre o mundo ideal e o mundo real, surge uma nova ideia de sociedade, a cosmopolita, ainda fundada em um processo de integração global, mas baseada em princípios como hospitalidade,13 empatia e livre trânsito. Nela, todos os homens seriam considerados cidadãos, independentemente de fatores como etnia, nacionalidade, cor, religião, gênero e orientação sexual, por exemplo. E, além disso, a fonte de identificação para o livre trânsito do indivíduo seria apenas um simples registro de dados.

A construção do Direito Internacional dos Direitos Humanos não segue uma trajetória linear. É sabido que muitas das sinuosidades tem como causa a imaturidade sobre alguns aspectos, bem como o jogo de poderes entre os Estados. No quesito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, é possível identificar uma evolução ao longo dos anos, o que tem culminado no desenvolvimento de novas diretrizes em áreas como mobilidade e fronteiras.14 Por outro lado, ainda há uma longa jornada quanto a assuntos correlatos, como nacionalidade e hospitalidade. Reconhecer o que já foi realizado até o momento e o que ainda precisa de atenção é essencial para alcançar os objetivos futuros.

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Márcia Carolina Santos Trivellato

 

Referências

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1. A DDHC foi fruto da Revolução Francesa e, por conta disso, possui, em tese, os mesmos lemas adotados pela França.

2. MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Centauro Editora, 2000, p. 37. TRIVELLATO, Márcia Carolina Santos. Complexo de Refugiados em Dadaab: estado de exceção em caráter permanente?. Belo Horizonte: Editora Dialética 2020, 50-51, 63-64.

3. Entende-se como marginalizado não só os sem nacionalidade (atualmente, classificados como apátridas), mas também todas as outras pessoas excluídas e julgadas como inferiores em dada sociedade, como mulheres, negros e grupos LGBTQIA+.

4. Até mesmo Estados que não estavam diretamente ligados aos confrontos, foram arrastados para a disputa de território e de poder, como é o caso dos países africanos e do Brasil.

5. Por exemplo, judeus e ciganos.

6. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

7. Pensar em um esgotamento de todas as violações aos direitos humanos é utópico, principalmente por dois motivos. Primeiro, porque atingir a perfeição é algo impossível. Depois, porque, ainda que a perfeição existisse, em algum momento, surgiriam novos desafios (p. ex. os desafios contemporâneos sobre os quais o texto “Novos desafios do Direito Internacional Privado” tratou). Para entender melhor, é possível identificar a inexistência de normas jurídicas e programáticas que tratem diretamente sobre a promoção de igualdade para pessoas LGBTQIA+.

8. Esse é um dos pontos-chave da contemporaneidade: a ruptura do termo “Estado-nação” utilizado pela sociedade internacional. Ver em: ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

9. Principalmente no que diz respeito às leis de migração latino-americanas (p. ex. Argentina, Brasil, Chile).

10. O termo “outro” representa pessoas não nacionais e que, portanto, causam estranheza e medo nos nacionais devido às políticas discriminatórias (tratamento de forma desigual em razão de etnia, cor, religião, orientação sexual e outros fatores) e xenofóbicas (atitudes de hostilidade, aversão e antipatia) contra os migrantes. Ver em: ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES (OIM). Direito Internacional da Migração: Glossário sobre Migrações. Genebra: Organização Internacional para as Migrações, 2010, p. 22 e 80.

11. Para Bauman, há uma divisão evidente entre quem é turista (bem-vindo) e quem é vagabundo (retido nas fronteiras) no mundo contemporâneo. Ver mais em: BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.

12. Processo de expansão político, econômico, social a nível internacional. Porém, na prática, é uma ordem que acontece com mais intensidade na esfera política e com certa segregação nos aspectos político e social.

13. DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.

14. Para tanto, o universo jurídico internacional tem utilizado estratégias metodológicas como o diálogo harmonioso, a soft law e normas programáticas para reduzir o distanciamento entre os seus atores e sujeitos. Este é o caso da iniciativa de uma construção de uma sociedade cosmopolita, da aplicação do princípio hospitalidade, da edição de tratados e convenções, bem como do planejamento e execução de Agendas e Fóruns de Debates.

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