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Ética: compromisso político de crise e o desprezo ao racismo

congresso nacional

Ao enfrentarmos as bases morais que sustentam as relações sociais, os parâmetros políticos e a gestão institucional do poder, nos deparamos com uma herança técnica e profundamente comprometida com a execução de sujeitos negros: o racismo. O racismo é artefato, uma vez que articula métodos diversos, simbólicos e materiais, para retroalimentar imperativos supremacistas que se interessam pela destruição radical de sujeitos designados como “os outros”.

A racialização opera na construção sistemática do inimigo. Assim, racializar significa criar uma relação fadada ao fracasso, uma vez que se ancora na diminuição necessária do “outro”, a fim de que se mantenha acessa a chama sórdida da hierarquização. Essa chama é a lógica que fundamenta, de forma multidimensional, as nossas relações e que opera, na gestão material, estética, econômica e política, desfazendo a humanidade, inclusive, de sujeitos negros.

Denunciar o racismo antinegro é, ao mesmo tempo, delatar um complexo moral reiteradamente articulado à memória colonial, pois esta não só grifa a dessubjetivação de corpos à distância do que é fabricado como uma existência legítima, mas amplia a possibilidade da violação desses sujeitos.

A violência, nesse caso, desempenha um papel normalizador, moralizante e cioso da perpetuação de sistemas excludentes. Essa “moralidade restritiva”,1 isto é, o sistema ideológico e prático que se compromete com a perpetuação de limites políticos, gerencia a vida e se ocupa de impor, por meio da circulação dos corpos enunciados como descartáveis, a morte.

Segundo Fanon,2 o projeto colonial de destruição dos sujeitos negros é forjado numa lógica de comparação. Assim, é possível considerar que o processo de colonização produz uma imagem de humanidade, elevação e legitimidade associada à brancura e, ao mesmo tempo, significa, posiciona e compõe de forma subalternizada os sujeitos negros como “os outros”. Ocorre que esse posicionamento destrutivo não é apenas uma intenção. Ele se materializa nas narrativas, nas assimetrias econômicas e políticas, na manutenção de sistemas institucionais que se blindam da presença insubmissa de sujeitos negros.

A violência e a letalidade são forças que se integram para a manutenção do racismo, enquanto sistema historicamente produzido para brutalizar os sujeitos lidos como dissidentes. As técnicas coloniais, da exploração econômica ao genocídio da população negra — a exemplo da cena execrável de tortura (“numa câmara de gás” improvisada pela PF) e execução de Genivaldo de Jesus Santos, no último dia 25, em Sergipe — se intensificam num arranjo contemporâneo que controla, desautoriza e mata aos moldes de valores e de momentos radicalmente repulsivos da nossa história: a colonização e o nazismo. É importante grifar que esses sistemas de dominação se beneficiaram da tecnização da violência e inumanidade produzidas e circuladas na presença dos outros.

Para Achille Mbembe, as políticas de extermínio se articulam na manifestação de poderes que se interessam, sobretudo, pela morte dos que são significados à distância da humanidade. Esses poderes, ao designarem identidade e oposição, isto é, ao indicarem reiteradamente o outro, como aquele que rompe com o pacto entre semelhantes, circunscrevem quais corpos devem ser rasgados “em mil pedaços”3 ou asfixiados numa atualização das práticas genocidas.

Ademais, o interesse pela morte do “outro”, repito, se materializa nas ações e nas instituições, por meio dos dispositivos de poder: mídia, direito, discurso médico-científico, moral etc. Assim, segundo a lógica colonial que ecoa na contemporaneidade, é preciso, ao mesmo tempo: criar o inimigo, retirar de si mesmo as manchas de sangue oriundas da perpetuação de sistemas políticos que suprimem o direito à vida e naturalizar o ódio contra esse inimigo. É crucial para uma política de extermínio que “o outro” seja odiado por todos/as, a fim de que a crueldade seja naturalizada como uma etiqueta social.

A necropolítica, portanto, instaura-se como uma organização necessária do poder em um mundo em que a morte avança implacavelmente sobre a vida. A justificação da morte e em nome dos riscos à economia e à segurança torna-se o fundamento ético dessa realidade […] a descrição de sujeitos que vivem “normalmente” sob a mira de um fuzil, que têm a casa invadida durante a noite, que têm de pular corpos para se locomover, que convivem com o desaparecimento inexplicável de amigos e/ou parentes é compatível com diversos lugares do mundo e atesta a universalização da necropolítica do Estado, inclusive no Brasil.4 

É inadmissível que compactuemos com a implementação do terror, da tortura e com a supressão da vida de sujeitos negros, pois essa supressão é a rememoração de uma soberania colonial. Essa soberania, da modernidade até aqui, se ocupa em construir lugares sociais nos quais sujeitos subalternizados não são alcançados pelo direito, inclusive da proteção à vida.

Não é possível que nos descrevamos como éticos/as, democráticos/as ou cidadãos se, em alguma medida, justificamos a execução de sujeitos orquestrada por um tribunal ilegítimo, marcado pelos valores estruturalmente racistas, supremacistas e herdeiros de uma truculência colonial. Assim, consideramos que a ética, como compromisso político de crise, também se alinha ao desprezo de qualquer vestígio supremacista, pois a eticidade não coabita com a destruição intencional e torpe do outro. Logo, ser ético, um sujeito antidiscriminatório, significa, sobretudo, não se convencer de que pessoas negras e demais corpos subalternizados pela norma — branca, ciseteronormativa, classista, capacitista e territorialista, por exemplo — podem ser, a partir dos valores estruturalmente violentos, comumente massacrados.

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Thiago Teixeira

 

Referências

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1. TEIXEIRA, Thiago. Inflexões éticas. Belo Horizonte: Editora Senso, 2019, p. 35.

2. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento. Prefácio de Grada Kilomba. Posfácio de Deivison Faustino. São Paulo: Ubu Editora, 2020, p. 221.

3. MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, estado de exceção e políticas de morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 43.

4. ALMEIDA, Sílvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019, p. 125.

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