Com desígnio de se discutir o tema, é necessário como pressuposto do diálogo uma noção sobre os regimes de juros, o composto e o simples. Os juros simples consistem em uma taxa fixa aplicada sobre o valor principal. Já os juros compostos (capitalização de juros, juros sobre juros ou juros frugíferos) referem-se àqueles que incidem sobre o montante acumulado, resultando em uma progressão ao longo do tempo1. Salienta-se que o método Price trata-se de capitalização de juros.
O Decreto 22.626/1933, comumente denominado como Lei da usura, dispõe sobre a capitalização de juros no artigo 4º “É proibido contar juros dos juros: esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano.”2.
A Súmula 121, STF dispõe que “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”3 .
Insta salientar que a Súmula 596, STF4 dispõe que “As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional”. Depreende-se que a Lei como um todo é inaplicável ao instituições financeiras e entes equiparados, todavia no site do Supremo Tribunal Federal na parte de referência legislativa percebe-se somente o artigo 1º não seria aplicável as instituições financeiras, por conseguinte o artigo 4º seria aplicável. Desse modo, fica evidente que a Súmula 596, STF não revoga a Súmula 121, STF.
A Constituição de 1988 abordou o sistema financeiro nacional nos seguintes termos: ” Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram”.5.
Em decorrência do art. 192, CF, discutia-se a inconstitucionalidade formal de leis que tratavam de matéria bancária, mas não consistiam em Leis Complementares (tal como a Lei do Sistema de Financiamento Imobiliário; e as mudanças promovidas pela Lei 11.977/2009 na Lei do Sistema Financeiro de Habitação, que fora originalmente foi recepcionada pela Constituição; Medida Provisória (MP) 2170-36/01; e a Lei 14.905). Todavia, no julgamento da ADI 2316 trouxe interpretação de que o art. 192, CF quando diz que reserva à Lei Complementar a atividade do sistema financeiro, essa reserva é para questões estruturais do desenvolvimento da atividade bancária, e não questões de fluxo da atividade, ou de fomento da atividade, como a relacionada a taxas, tarifas, juros, operações de crédito.
Há um rompimento de um paradigma com a Lei do Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI)6 que prevê no art. 5º, III: “Art. 5º As operações de financiamento imobiliário em geral, no âmbito do SFI, serão livremente pactuadas pelas partes, observadas as seguintes condições essenciais: III – capitalização dos juros”7.
Complementarmente, a Lei do Sistema Financeiro de Habitação (SFH)8, pois alterações promovidas pela Lei 11.977/2009 prevê em seu art. 15-A: “É permitida a pactuação de capitalização de juros com periodicidade mensal nas operações realizadas pelas entidades integrantes do Sistema Financeiro da Habitação – SFH”.9. Depreende-se da referida norma, que é ilegal a cobrança de juros compostos nos contratos de SFH celebrados até antes da entrada em vigor Lei 11.977/200910, e em se considerando que a última parcela que gera a extinção do contrato, há 5 anos para discutir anteriormente a prescrição, embora há quem entenda que o prazo seja de 10 anos porque é um direito pessoa, não obstante há um contrato, que não traz o débito líquido e certo.
As normas autorizadoras da capitalização de juros no SFI e SFH atentam materialmente contra o disposto no art. 192 da Constituição Federal, pois a capitalização dos juros gera desequilíbrio, na medida que gera um enriquecimento do credor em detrimento do empobrecimento do devedor, como também não se atende o vetor do interesse coletivo.
Entre as referidas leis do Sistema Financeiro de Habitação e Imobiliário, tem-se a Medida Provisória (MP) 2170-36/01 dispõe no art. 5º que “Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano”.11 Nesse mesmo sentido a Súmula 539, STJ12, que ainda exige que a capitalização seja expressamente pactuada, ainda que o próprio tribunal a princípio entenda que por expressamente pactuada basta a previsão no contrato de taxa de juros anuais superiores a 12%, conforme extrai-se da Súmula 541, STJ13, esse entendimento do termo expressamente pactuado foi reformulado pelo Resp. Repetitivo 1.388.972/SC, que exige que se conste expressões como Capitalização de juros, Juros Compostos, Juros sobre Juros ou Anatocismo.
A referida Medida Provisória ainda está eficaz, pois o art. 2º da EC/32 estabeleceu que “As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional”.14 Desse modo somente MP’s posteriores a EC/32 submetem-se ao prazo de eficácia estabelecido na nova redação do art. 62, CF.
A Medida Provisória (MP) 2170-36/01 apresenta vício de inconstitucionalidade material por não atender os vetores do equilíbrio15.
A Lei 14.905 promove uma flexibilização da Lei de Usura:
Art. 3º Não se aplica o disposto no Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933, às obrigações:
I – contratadas entre pessoas jurídicas;
II – representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários;
III – contraídas perante:
a) instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil;
b) fundos ou clubes de investimento;
c) sociedades de arrendamento mercantil e empresas simples de crédito;
d) organizações da sociedade civil de interesse público de que trata a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, que se dedicam à concessão de crédito; ou
IV – realizadas nos mercados financeiro, de capitais ou de valores mobiliários.17
Ainda, que a partir da Lei 14.905 passa-se a não aplicar a Lei da Usura (que veiculava uma proibição da capitalização dos juros) dentre outra matérias às instituições financeiras, indo ao encontro ao Súmula 596, STF. Todavia, a capitalização dos juros é flagrantemente inconstitucional por violar os vetores do art. 192, materiais, equilíbrio e interesse da coletividade.
Notas e Referências
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1. InvestNews. Disponível em: site. Acesso em: 18 set. 2024.
2. BRASIL. Decreto 22.626. Lei da Usura. 1933. Disponível em: site. Acesso em: 28 ago. 2024.
3. BRASIL. Súmula 121. STF. Disponível em: site. Acesso em: 28 ago. 2024.
4. BRASIL. Súmula 596. STF. Disponível em: site. Acesso em: 28 ago. 2024.
5. BRASIL. Constituição Federal. 1988. Disponível em: site. Acesso em: 28 ago. 2024.
6. O SFI atende público que busca crédito imobiliário para casas fora do perfil popular, ter uma norma que permita a capitalização dos juros.
7. BRASIL. Lei 9.514. Lei do Sistema de Financiamento Imobiliário. 1997. Disponível em: site. Acesso em: 28 ago. 2024.
8. O SFH fomenta a possibilidade da aquisição da casa popular própria pela população menos abastada.
9. BRASIL. Lei 4.380. Lei do Sistema Financeiro da Habitação. 1964. Disponível em: site. Acesso em: 28 ago. 2024.
10. “Recurso especial repetitivo. Sistema financeiro da habitação. Capitalização de juros vedada em qualquer periodicidade. Tabela price. Anatocismo. Incidência das Súmulas 5 e 7. Art. 6.º, alínea e, da Lei 4.380/1964. Juros remuneratórios. Ausência de limitação. 1. Para efeito do art. 543-C: 1.1. Nos contratos celebrados no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, é vedada a capitalização de juros em qualquer periodicidade. Não cabe ao STJ, todavia, aferir se há capitalização de juros com a utilização da Tabela Price, por força das Súmulas 5 e 7. 1.2. O art. 6.º, alínea e , da Lei 4.380/1964, não estabelece limitação dos juros remuneratórios. 2. Aplicação ao caso concreto: 2.1. Recurso especial parcialmente conhecido e, na extensão, provido, para afastar a limitação imposta pelo acórdão recorrido no tocante aos juros remuneratórios. (REsp 1.070.297/PR, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2.ª Seção, j. 09.09.2009, DJe 18.09.2009)” (grifos nossos)
11. BRASIL. Medida Provisória 2170-36/01. Disponível em: site. Acesso em: 28 ago. 2024.
12. BRASIL. Súmula 539. STJ. Disponível em: site. Acesso em: 28 ago. 2024.
13. BRASIL. Súmula 541. STJ. Disponível em: site. Acesso em: 28 ago. 2024.
14. BRASIL. Emeda Constitucional 32/01. Disponível em: site. Acesso em: 28 ago. 2024.
15. Essa discussão é alvo da ADI nº 2316 que alega a inconstitucionalidade material da Medida Provisória nº 2170-36/01
16. A inconstitucionalidade formal no que toca a falta de relevância e urgência da Medida Provisória nº 2170-36/01 foi objeto de discussão no RE 592.377/RS, na ocasião o STF entendeu que não havia inconstitucionalidade formal por motivo aventado, em razão de não poder o judiciário avaliar relevância e urgência. Nada obsta a discussão quanto a inobservância de reserva a Lei Complementar.
17. BRASIL. Lei 14.905. 2024. Disponível em: site. Acesso em: 28 ago. 2024.