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Neoconstitucionalismo andino, direitos da natureza e o “buen vivir”

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Segundo o entendimento sobre o qual se constrói essa coluna, foi em razão da implementação progressiva do modelo civilizatório hegemônico que alcançou-se o atual nível de degradação ambiental e que transformou a relação, antes íntima, entre os seres humanos e seu habitat natural.

Portanto, alternativas para o momento de crise ambiental e humanitária que vivenciamos não se encontram em discursos que promovam a manutenção ou intensificação do referido modelo, como já se quis fazer com a ideia de “desenvolvimento sustentável” (o que será discutido em momento oportuno), mas o contrário: as possíveis alternativas encontram-se fora do padrão de dominação e exploração tipicamente moderno e colonial, de origem ocidental/europeia.

É de se dizer que nas últimas décadas, a América Latina passou por grandes transformações políticas que influenciaram, indubitavelmente, sua dinâmica constitucional. Sua história é marcada por diversas ambiguidades, evoluções positivas e retrocessos significativos inegáveis. As transformações mais recentes, ocorridas principalmente com a Constituição da Venezuela (1999), e mais ainda com a do Equador (2008) e Bolívia (2009), permitem conceber o nascimento de um novo constitucionalismo no continente, preocupado, ainda que inicialmente restrito ao seu texto, com a sustentabilidade, a democracia, e reconhecendo realidades plurais no mesmo território, com profundas inovações para o constitucionalismo democrático.1

Cabe assinalar que os processos neoconstitucionais desses países é orientado por uma tentativa de “refundação” dos Estados, de modo que os mesmos sejam ressignificados, distanciando-se da sociedade de opulência nascida na Europa contemporânea, fomentada nos Estados Unidos, e comprada por todo o mundo. Caracterizam-se tais processos, portanto, como verdadeiros movimentos contra hegemônicos, ainda que esbarrem em fatores externos que os refreiam.

Como fundamento desses Estados, elegeu-se o Pluralismo, intimamente ligado à ideia de diversidade cultural, o que implica no esboço de uma nova institucionalidade, mais inclusiva e participativa, de forma a romper com diversos padrões estabelecidos na modernidade.

Tal rompimento ocorre em decorrência do aprofundamento de um questionamentos sobre as visões de conceitos centrais de diversas áreas da ciência que foram pensados tendo como parâmetro os projetos de Estados Nacionais, que desconsideravam os povos indígenas e os não-europeus, seja ignorando-os ou pretendendo integrá-los a uma cultura nacional homogênea,2 reduzindo a possibilidade de expressões genuínas e que poderiam contribuir para o avanço da humanidade em seu aspecto ambiental e social.

O Neoconstitucionalismo andino, nesse passo, foi originado de uma amplo movimento popular constituinte legítimo, com um “resgate ao poder constituinte originário e uma tentativa de aproximação do constitucionalismo com a democracia”.3 Afirma-se, nessa nova conjuntura, o paradigma principiológico do “bem viver” (“buen vivir”, ou “sumak “kawsay”/ “Suma Qamaña” a depender da região andina), defendido pelos indígenas e fundamento do modelo comunitário, como oportunidade de uma construção de uma nova forma de organização social e visão de mundo, que supera inclusive a noção tradicional de Estado Social nascido no pós-guerra.

De acordo com Acosta (2016),4 um dos grandes responsáveis pelas rupturas no texto constitucional equatoriano, a filosofia do “Buen Vivir” é um caminho em construção, fundamentado na solidariedade entre os seres humanos e a natureza, o qual já é uma realidade em determinadas culturas ao redor do mundo. Sintetiza visões e práticas ancestrais andinas, debates e propostas atuais, pensamentos críticos e lutas sociais que representam a busca por alternativas em resposta ao modelo de desenvolvimento contemporâneo.5

Para alguns estudiosos, o processo neoconstitucional andino pode ser entendido como influência do conjunto de práticas jurídicas dos povos indígenas e dos movimentos sociais que possuem como objetivo a transformação de uma sociedade que se mostra inequivocamente excludente, não equitativa e depredadora da natureza. Para tanto, é necessário concentrar a atenção na cultura indígenas e no direito crítico ocidental, o que requer profunda imersão em interdisciplinaridade e interculturalidade, perspectiva essa que não é bem familiarizada pelos juristas tradicionais e pela academia latino americana, em geral.6

Em outras palavras, explica-se que para “libertar” a natureza da condição de mero objeto de propriedade dos seres humanos, é imperativo o esforço político que seja capaz de reconhecê-la como sujeito de direitos,7 o que é verificado principalmente na Constituição equatoriana e, posteriormente, na regulação infraconstitucional boliviana. Neste sentido, Direitos Humanos e Direitos da Natureza devem ser tidos como complementares, e essa concepção permite a construção democrática e sustentável de organização da sociedade.

Além da adoção de um modelo de “buen vivir” baseado na percepção indígena de que o ser humano é parte integrante de um cosmos, outras características notáveis do neoconstitucionalismo latinoamericamo é a ênfase na participação popular; reconstrução da relação entre Estado e mercado, de forma a reestruturar o modelo produtivista capitalista; rejeição do monoculturalismo; adoção do paradigma comunitário; dentre tantos outros.

Isto posto, as Constituições da Venezuela, Equador e Bolívia, ao buscarem romper com o colonialismo europeu e o imperialismo estadunidense em seus territórios, se mostram originais em razão do emprego de institutos participativos não considerados pelo constitucionalismo anterior.

Percebe-se, então, um abandono dos padrões epistemológicos até então naturalizados, com uma pretensão de reconfigurar a relação entre seres humanos e natureza, de forma que reconhece-se uma cosmovisão onde aquele integra um todo, com uma tentativa de afastamento do paradigma antropocêntrico, consumista e desenvolvimentista consagrado pelas constituições liberais, institucionalizando ainda a importância da Pachamama/Madre Tierra e da busca por outros modelos de bem-viver. Portanto, tendo isso em vista, supera-se a perspectiva limitada e utilitarista de que a natureza é bem de uso comum do povo, como faz a constituição brasileira.8

Não significa dizer, entretanto, que os objetivos decoloniais dos referidos textos constitucionais foram integralmente cumpridos, considerando as grandes dificuldades políticas e as naturalmente encontradas no processo de superação epistêmica, vez que o processo histórico de dominação política, econômica e ideológica do território latino americano se encontra intimamente consolidado na mentalidade coletiva.

Em outras palavras, reconhece-se que o rompimento com o monopólio de produção de conhecimento e política não se resume à elaboração de textos constitucionais: é necessária uma verdadeira práxis transformadora, ou seja, a adoção e fortalecimento de práticas institucionais e sociais que estejam aptas a concretizar os direitos garantidos na Constituição.

Por fim, não obstante as dificuldades originadas na forma com que a sociedade e as instituições políticas dos países dão vida às novas Constituições tratadas nessa matéria, não pode-se negar seu caráter vanguardista em termos epistêmicos, sendo verdadeiras fontes de inspiração para outros Estados que se limitam a uma visão monocular e desconsideram a busca pelo resgate da harmonia entre seres humanos e natureza.

Trata-se o neoconstitucionalismo andino de uma experiência alternativa à proposta moderna estabelecida no plano da racionalidade e individualismo, com aproximação de modelos de compreensão da realidade caracterizados pela multiplicidade e pelo pluralismo,9 o que poderia contribuir profundamente na contenção do iminente colapso ambiental e na atual crise humanitária que vivenciamos.

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Marcela Gregório Barreto

 

Referências

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1. MELO, Milena Petters; BURCKHART, Thiago. A Constituição equatoriana de 2008: uma nova concepção de Estado e pluralismo. Trajetórias Humanas Transcontinentais. Limoges, n. 3, 2018.

2. GRIJALVA, Agustin. O Estado Plurinacional e Intercultural na Constituição Equatoriana de 2008. In: VERDUM, Ricardo (org.). Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2009, p. 113-134.

3. BARBOSA, Maria Lúcia; TEIXEIRA, João Paulo Allain. Neoconstitucionalismo e Novo Constitucionalismo Latino Americano: dois olhares sobre igualdade, diferença e participação. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro, vol. 08, n. 2, p. 1113-1142, 2017.

4. ACOSTA, A. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Editora Elefante, 2016.

5. JACQUES, Flávia Verônica Silva. O “buen vivir” e a construção de uma nova sociedade. Novos Cadernos NAEA. v. 23, n. 3, p. 105-119, 2020, p. 105.

6. SANTAMARÍA, Ramiro Avila. Los derechos de la naturaleza en el neoconstitucionalismo andino hacia un necesario y urgente cambio de paradigma. In: WOLKMER, Antonio Carlos; VIEIRA Reginaldo de Souza. Direito humanos e sociedade: Volume II. Criciúma: UNESC, p. 17-45, 2020, p. 19.

7. ACOSTA, A. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Editora Elefante, 2016, p. 123.

8. BARBOSA, Maria Lúcia; TEIXEIRA, João Paulo Allain. Neoconstitucionalismo e Novo Constitucionalismo Latino Americano: dois olhares sobre igualdade, diferença e participação. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro, vol. 08, n. 2, p. 1113-1142, 2017, p. 1131.

9. BARBOSA, Maria Lúcia; TEIXEIRA, João Paulo Allain. Neoconstitucionalismo e Novo Constitucionalismo Latino Americano: dois olhares sobre igualdade, diferença e participação. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro, vol. 08, n. 2, p. 1113-1142, 2017, p. 1131.

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