RESUMO
A prática incessante dos pais em compartilhar a vida dos filhos nas redes sociais, o fenômeno do “sharenting”, emerge como um campo de tensão sociocibernética, desafiando a estrutura clássica do Poder Familiar no Direito contemporâneo. Este artigo, à luz da Sociologia Jurídica Crítica e do Direito de Família, lança uma provocativa e polêmica proposta: a jurisdição civil deve relativizar o conteúdo do Poder Familiar, reconhecendo a não autorização e a excessiva publicação da imagem da criança como abuso de direito, passível de intervenção estatal protetiva, inclusive com a restrição da guarda ou a imposição de uma “censura prévia” judicial (tutela inibitória) à exposição parental. A análise transcende a mera violação da privacidade, abrangendo a constituição de um “patrimônio digital” não consentido e a exposição da criança a riscos psicológicos e de segurança, configurando uma violência simbólica e material. A investigação é de caráter qualitativo e exploratório, empregando a abordagem críticaconstrutiva para analisar a jurisprudência e a doutrina especializada brasileiras, argumentando que o melhor interesse da criança (art. 227, CF/88) atua como cláusula restritiva da autonomia parental no ambiente digital.
Palavras-Chave: Sharenting; Poder Familiar; Direito à Imagem; Abuso de Direito; Melhor Interesse da Criança.
1. INTRODUÇÃO
O século XXI obrigou o Direito de Família a repensar algumas de suas bases mais tradicionais. Dentre esses aspectos, destaca-se o Poder Familiar, uma instituição historicamente baseada na tutela protetiva, que agora se depara com o advento onipresente das redes sociais e do que se convencionou denominar “sharenting” (neologismo oriundo da fusão de share – compartilhar – e parenting – parentalidade). Este costume de compartilhar rotinas, detalhes do dia a dia, da intimidade e da imagem da criança e do adolescente, frequentemente e de maneira minuciosa, por parte de seus responsáveis legais, transfere o domicílio da intimidade familiar para o espaço público virtual.
Em que medida a prática do “sharenting” configura um abuso do direito de personalidade da criança, justificando a relativização ou mesmo a restrição judicial do Poder Familiar, em face do princípio constitucional do melhor interesse?
A relevância social e jurídica do tema é inegável. Sob a perspectiva social, o “sharenting” expõe a criança a riscos de stalking, pedofilia, bullying futuro (o chamado cyberbullying retrospectivo) e a construção compulsória de uma identidade digital que ela jamais consentiu. Juridicamente, o fenômeno põe em xeque a blindagem secular do Poder Familiar (art. 1.630 e ss., CC/02) e a primazia da autonomia familiar, forçando a intervenção protetiva do Estado (via Judiciário e Ministério Público) para salvaguardar os direitos de personalidade da criança e do adolescente (art. 17, ECA; art. 21, CC/02).
O “sharenting” excessivo, não consentido e potencialmente vexatório constitui um ato ilícito de abuso de direito, na modalidade de desvio de finalidade do Poder Familiar, que o coloca em colisão com a dignidade da pessoa humana da criança. Impõe-se, portanto, ao Judiciário, o poder/dever de relativizar o exercício do Poder Familiar in casu, aplicando medidas protetivas que podem culminar, em casos extremos e reiterados, na restrição do poder de guarda, ou, de forma mais vanguardista, na concessão de tutelas inibitórias que estabeleçam uma ‘censura prévia’ judicial para o uso da imagem da criança pelos pais.
Aqui é proposta a mitigação de um dos institutos mais sagrados do Direito de Família, a autonomia e plenitude do Poder Familiar, em um contexto de “afetividade algorítmica”, onde a motivação parental (muitas vezes, a busca por validação social ou mesmo por lucro) se sobrepõe ao direito fundamental da prole.
2. O PODER FAMILIAR EM TRANSIÇÃO: DO PATER FAMILIAS À PARENTALIDADE CONECTADA
Historicamente, o Poder Familiar foi concebido como um feixe de direitos e deveres em que a autoridade do pater familias era quase absoluta, garantindo a subsistência e a educação moral dos filhos. Contudo, a evolução do Direito Civil, marcada pela constitucionalização do Direito de Família (CF/88), transmutou esse poder em uma função, um múnus público exercido em favor do filho e sob a égide do princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF/88; art. 4º, ECA). A autoridade, antes vertical e quase discricionária, torna-se horizontal e com um propósito vinculado à proteção integral.
O advento das mídias sociais insere uma nova dimensão de dificuldade. O lar, antes o núcleo da intimidade, é invadido pela lógica da sociedade do espetáculo (Debord, 1967) e da vigilância líquida (Bauman, 2013). A criança, que deveria ser o sujeito de direitos a ser protegido pelo Poder Familiar, torna-se, ironicamente, o objeto de exibição e peça de exibição na economia da atenção.
A doutrina civilista clássica, ao tratar do Poder Familiar, não dimensionou a possibilidade de o próprio titular desse poder ser a fonte da ameaça aos direitos da personalidade do filho. A imagem, a vida privada e a honra da criança são direitos autônomos e irrenunciáveis (art. 17, ECA; art. 21, CC/02). O Poder Familiar outorga aos pais o direito de administrar os bens do filho (art. 1.689, II, CC/02), mas esse poder jamais se estendeu à capacidade de dispor ou explorar economicamente (ou socialmente, no campo da validação) os direitos existenciais do filho sem o seu discernimento e consentimento, mesmo que assistido.
O “sharenting”, no limite da irresponsabilidade, representa a negação do ‘direito ao futuro’ da criança, pois constrói um passado digital indelével, imposto por terceiros, que pode ser reativado a qualquer tempo para fins vexatórios ou discriminatórios.
3. O ABUSO DE DIREITO NO EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR: A TEORIA DO DESVIO DE FINALIDADE PROTETIVA
O núcleo da tese controversa reside na aplicação da teoria do Abuso de Direito (art. 187, CC/02) ao exercício do Poder Familiar no ambiente digital. O art. 187 do Código Civil é categórico ao estabelecer o ilícito civil no ato de exceder “manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
O fim social e jurídico do Poder Familiar é a proteção, o cuidado e o desenvolvimento integral da criança. Quando o ato parental de compartilhamento da imagem do filho visa primariamente a satisfação pessoal, como a validação social e atenção; o lucro ou a exposição desnecessária, há um claro desvio de finalidade do instituto. O direito, antes exercido pró filho, é exercido pró genitor.
Nesse contexto, é crucial a análise sociológica. O filósofo Michel Foucault (em sua análise sobre a biopolítica e o poder disciplinar) oferece a chave para entender como a vigilância e a exposição se tornam mecanismos de poder e controle, mesmo em um contexto de “afetividade”. O “sharenting” pode ser visto como uma microfísica do poder, onde o desejo parental de documentação e exposição pública da vida privada da prole subverte o direito da criança de ter sua vida privada, em um espaço para a construção de sua identidade livre da vigilância permanente, pois a imagem não é um anexo da parentalidade, e sim um atributo da pessoa em desenvolvimento.
Em termos jurídicos, a doutrina é robusta em reconhecer o direito à imagem como autônomo. O STF, ao analisar o direito à imagem, reafirma sua natureza fundamental. A questão do consentimento, todavia, é complexa. A criança é civilmente incapaz ou relativamente incapaz. Seu consentimento, mesmo que dado, é sempre assistido e, mais importante, revogável a qualquer momento. Um registro vexatório postado por pais quando o filho tem 5 anos de idade, e que gera bullying aos 15, não pode ser justificado pela autorização parental de uma década atrás. A ausência de discernimento pleno da criança no momento da postagem impõe aos pais um ônus de responsabilidade permanente sobre as consequências futuras.
O caso da influencer Virgínia Fonseca, que expõe em larga escala a imagem de suas filhas não apenas como parte do conteúdo, mas sim como a espinha dorsal de um império comercial multimilionário, tornou-se um leading case não judicializado, mas amplamente debatido, sobre o choque entre a autonomia da persona digital da mãe e o direito à intimidade e à imagem da criança, que, no limite, se torna um ativo econômico não consentido para a atividade profissional da genitora. Apesar do afeto e do cuidado presentes, a instrumentalização da imagem da criança para fins de engajamento e marketing é o ponto crucial que exige intervenção protetiva e relativização do Poder Familiar na esfera econômica e da personalidade.
4. PROPOSIÇÃO DE NOVOS ENTENDIMENTOS JURISDICIONAIS: A RELATIVIZAÇÃO DO PODER FAMILIAR E A TUTELA INIBITÓRIA PROTETIVA
Diante do exposto, o Judiciário não pode permanecer inerte, limitando-se à reparação (indenização por danos morais post factum). A natureza do dano ao direito à imagem, especialmente o dano à construção de identidade e à segurança, exige medidas preventivas e protetivas.
Propõe-se, como novo entendimento jurídico a ser consolidado pela jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça), a possibilidade de relativização do Poder Familiar em dois níveis progressivos:
Declaração de Abuso de Direito e Imposição de Medidas Protetivas: Em casos de “sharenting” recorrente, vexatório, ou com fins manifestamente comerciais sem o consentimento do outro genitor, se houver, ou do próprio Ministério Público (como fiscal da lei e protetor do incapaz), o juiz deve declarar o abuso de direito (art. 187, CC/02). As medidas podem incluir a determinação judicial de remoção imediata de conteúdos específicos e a fixação de multa diária em caso de nova postagem.
Tutela Inibitória com Efeito de “Censura Prévia” Judicial: Em casos extremos, onde o padrão de exposição parental é compulsivo, reiterado e coloca a criança em risco de segurança física ou psicológica comprovado, o juiz deve ter a prerrogativa de conceder uma Tutela
Inibitória Específica (art. 497, CPC) que determine uma restrição prévia ao exercício do Poder Familiar na esfera digital. Isso significa que, para o compartilhamento de imagens ou informações da criança, o genitor deverá obter uma autorização judicial prévia, ou do outro genitor, ou do MP, por um período determinado. Esta medida, embora análoga a uma forma de “censura”, o que a torna um tanto quanto controversa, é, na verdade, uma restrição do Poder Familiar (art. 1.637, CC/02) aplicada à esfera digital, em nome da proteção integral e do melhor interesse da criança, que é o princípio balizador hierarquicamente superior (art. 227, CF/88).
No limite da gravidade, como por exemplo o uso da imagem para fins ilícitos, exposição a alto risco de pedofilia/sequestro, ou bullying comprovado, o “sharenting” deve ser considerado um fator de negligência parental grave, justificando o estudo social e psicológico do caso e a potencial suspensão ou restrição do poder de guarda em favor do outro genitor ou de um tutor.
O STJ, ao julgar casos de conflitos parentais, já sinalizou a prevalência dos direitos de personalidade, mesmo entre cônjuges, o que reforça a base para a intervenção protetiva em favor do filho. A instrumentalização da criança para ganho econômico ou social não se ajusta a incumbência do Poder Familiar.
5. CONCLUSÃO
O “sharenting” não é apenas um modismo cultural, é um sintoma da sociedade da vigilância e do espetáculo que penetra a intimidade familiar. É uma consequência estrutural de uma sociedade que privatizou a atenção. O Poder Familiar, em sua manifestação digital irresponsável, pode e deve ser relativizado judicialmente como medida de proteção à dignidade e aos direitos de personalidade da criança. A instrumentalização da imagem da prole, seja por validação social ou lucro, configura abuso de direito por desvio de finalidade do dever de proteção.
A proposição da Tutela Inibitória com restrição prévia é o ponto de maior ruptura, mas se justifica pela necessidade de o Direito de Família criar mecanismos preventivos, e não apenas reparatórios, para lidar com a instantaneidade e a permanência inapagável da internet. O princípio do Melhor Interesse da Criança (art. 227, CF/88) opera como a cláusula geral de limitação ao Poder Familiar, especialmente no ambiente digital. A criança não é uma extensão da marca pessoal dos pais, ela é um sujeito de direitos, cujo maior deles é o de, eventualmente, existir fora das telas.
Futuras linhas de pesquisa devem se concentrar na mensuração do impacto psicológico do “sharenting” na adolescência tardia (o direito de a criança “apagar” o seu passado digital imposto pelos pais) e na análise comparativa de legislações estrangeiras que já começam a prever sanções específicas para o abuso da imagem da prole em redes sociais, de modo a subsidiar a elaboração de um marco legal mais específico no Brasil. O silêncio do Direito diante da mercantilização do riso infantil é o seu maior erro.
A infância tem o direito inalienável de ser vivida no anonimato, longe dos holofotes que transformam a alma em algoritmo. Que os pais pausem o clique antes de postar, e que o Direito pause a omissão antes de legislar apressadamente.
Referências
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BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. Vol. 1. 23. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Família. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2023.



