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Origens da teoria jurídica da privacidade

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Jean é um entusiasmado estudioso de meados do século XVIII. Sua luta é contra o absolutismo que reputa por atrasado, medieval e irracional. Possui o pensamento revolucionário (para a época) de que as estruturas políticas devem ser representações do povo, não de um poder soberano baseado na suposta “nomeação” divina.

Sua origem intelectual é fortemente marcada pela religiosidade, de modo que seu pensamento da sociedade civil e política não consegue deixar de ser também uma espécie de religião cívica, ou civismo religioso.

Jean acredita nas virtudes do homem republicano. Elas devem ser construídas sobre o compromisso não com Deus e com o Rei, mas com seus pares. Porém, no pensamento secular que sugere, os homens passam a depender de outros recursos para manter e fazer crescer as virtudes e não se corromperem na degeneração moral. Digo homens me referindo a homens mesmo, já que para Jean a mulher não está compreendida no termo “homem”. Lembrem-se de que Jean não consegue superar direito sua formação religiosa.

Enfim, que recursos seculares são esses? O que pode evitar a degeneração dos homens?

O recurso mais evidente é a vila. Jean não teme demônios. Ele teme as cidades grandes. Em especial as metrópoles que vê nascer em seu tempo. É com Jean que talvez encontramos a mais contundente defesa da vila como forma de se viver em sociedade.

Jean diz que as grandes cidades deixam as pessoas preguiçosas, ardilosas, indolentes, sem princípios morais. Nessas cidades, as pessoas perdem os laços de afetividade e se lançam aos vícios da carne, sucumbindo a um individualismo sem imaginação.

Só a vila pode proporcionar aos homens algum tipo de proteção, pois nela há sempre o olhar próximo de alguém conhecido, uma vida pública de fato res-publicana. Na cidade grande, não há o que prenda os homens aos valores e muitos estímulos aos vícios.

Em síntese, Jean tenta tirar o elemento do sagrado da política, mas se por um lado é exitoso, por outro, ainda traz parte de sua verve religiosa, presente ali no fundo de seu inconsciente. A ideia de degeneração moral causada por um grande vilão que explora as fraquezas da natureza humana é prova disso. Enfim, a vila protege o homem entre seus pares virtuosos.

Não falo de Rousseau, o grande iluminista que influenciou tanto a Revolução Francesa e até hoje estudado nas disciplinas propedêuticas das humanas.

Falo de Jean, homem médio, comum, homem carne, que tinha seus preconceitos tanto quanto um velho conservador do interior que nos dias atuais critica os costumes que imagina existirem nas capitais.

É mais desse homem médio, pequeno em crítica, que nosso pensamento jurídico mais se refere, não daquele histórico e grandioso pensador, fruto do seu tempo, genial entre os próximos, visionário entre os jovens.

Digo isso porque o que chega dele até o pensamento jurídico sobre privacidade nos dias de hoje não é uma crítica contextualizada e temporalizada de suas visões. O que chega até nós é apenas um arremedo de seus ensinamentos, um arquétipo de uma sociedade idealizada no formato de vila, com uma cara protestante, recata e com religiosidade privada, mas compartilhada uniformemente entre todos.

Hannah Arendt atribui a origem da moderna teoria da privacidade a Rousseau.

Nossos pensadores sobre direito à privacidade, especialmente os constitucionalistas com impacto na área do direito penal, em geral, recorrem à Arendt para compreender as bases e parâmetros teórico-políticos da intimidade.

Arendt, verdade seja dita, muito pouco avança em relação à Rousseau na sua noção sobre privacidade. Disse ela ser ele o primeiro teórico no tema. Não sei se é uma informação fruto de um estudo metodologicamente acurado ou se é apenas uma forma de ela encontrar respaldo e caldo pra sua própria teoria, que nada mais é do que um requente.

Sem contexto material, ou seja, sem considerar as mazelas da realidade política e social brasileira, o pensamento jurídico brasileiro sobre direito à privacidade erigiu-se em dois grandes pilares.

O primeiro é esse teórico, mas sem muita profundidade. O que sobra dele é aquilo que Warat conceituou como senso comum teórico dos juristas.

O outro pilar se estabelece na ignorância deliberada e pela delegação. Ignorância deliberada do nosso passado escravista e colonial, da nossa história não europeia, que não vem das vilas protestantes idealizadas tanto na Europa iluminista ou na América do tio Sam, mas do engenho e das senzalas e das cidades negras. A delegação se realiza porque sobre o que não se pode ignorar, se delega. A polícia é a agência de delegação para aquilo que emerge da materialidade e que não pode ser ignorada.

No campo penal sobre o direito à privacidade, o senso comum teórico dos juristas se fosse um limão seria lindo por fora. Brilhante, liso e verde vivo. Por dentro, um suco ralo, cheirando a ranço, como se aberto por muito tempo na geladeira. Dele sai pouco suco. Estragado.

É a ideia de um “direito de estar só”. O direito ao recato do lar. O direito à intimidade que se refere quase sempre a uma oposição do indivíduo em face de uma sociedade perversa. Às mulheres, o direito à privacidade desse senso comum não é um direito que chega aos direitos reprodutivos e sexuais, ou a algum tipo de direito que lhes garantem autonomia e poder no âmbito familiar, mas um mero reflexo tangencial desse direito à intimidade do homem médio. Ao homem negro da periferia, esse direito à privacidade não significa um direito de resistir a abordagens injustificadas. Não significa a proteção do lar que cabe tão bem à mansão no bairro ao lado.

Peço licença para começar a usar esta coluna como espaço de divulgação da minha tese de doutorado, que está para ser ainda publicada.

No dia 25 de julho, em Brasília, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília defendi a minha tese, intitulada “PROCESSO PENAL E ALGORITMOS: O direito à privacidade aplicável ao uso de algoritmos no policiamento”. Creio que estará disponível no banco de teses da UnB ainda este ano. Aos poucos, vou falando sobre ela por aqui.

Neste texto de hoje, busquei trazer de maneira simplificada algumas reflexões que fiz no capítulo Teoria política da privacidade. A partir de Richard Sennett (O declínio do homem público), dei início à discussão sobre o que embasa teoricamente a noção jurídica sobre o direito à privacidade. Impossível não começar por Rousseau, como mencionou Arendt.

Até mais.

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Rafael de Deus Garcia

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