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Pensando o trabalho – Um olhar filosófico e jurídico

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Pensar o trabalho na contemporaneidade, é sem dúvida  questão da ordem do dia, haja vista ser uma fenômeno que atravessa a vida de todos os indivíduos que integram a dinâmica capitalista.

Nesses tempos em que uns migram para o trabalho remoto, e uma grande maioria se torna escrava de aplicativos, o trabalho para muitos ainda é exclusivamente meio de subsistência não tendo outra natureza além da necessidade.

Trabalho e necessidade fazem parte de uma cena perversa que se arrasta desde os tempos das primeiras grandes fábricas, onde a mão-de-obra humana é mero objeto, e o sujeito que aplica a sua força mais uma peça em uma engrenagem, a qual não só o condiciona, mas suprime a sua existência, resumindo-a à ato repetitivo e compulsivo de produzir sem pensar.

Na filosofia, figura que pensou o trabalho para a além dessa lógica limitante, que encerra a existência do indivíduo na fábrica, foi a filósofa francesa do séc. XX, Simone Weil. Weil fez uma filosofia sublime, cumulando empiria e reflexão de alto grau, pôde sentir na pele o que é vivenciar o chão de fábrica, a lida no campo, a exaustão de um dia de trabalho repetitivo que mina as forças físicas e sobretudo mentais.

Ao se colocar no contexto do trabalho de fábrica, Weil percebe  quanto a vida dos trabalhadores é esvaziada de significado, tendo no mais das vezes um curto senso de propósito ao produzir uma pequena peça, a qual nem sequer se sabe a que se destina. Deixa claro em sua reflexão que o labor que leva a exaustão, impede o indivíduo de se relacionar com o mundo, consigo mesmo e com os outros, sendo efêmeros os momentos em que se pode ver com lucidez algo para além dos muros da fábrica. Mesmo após um longo dia de produção incessante, a fábrica, ou ao menos a sensação da fábrica recai sobre o trabalhador, o qual passa a viver sob o jugo do capital, dispendendo toda sua força física para fins que não faz ideia.

Numa perspectiva mais branda, mas como a mesma intenção, Chaplin no filme “Tempos Modernos”, evidencia de forma cómica, como o trabalho metricamente aplicado, dentro de uma ordem determinada e contínua, torna o homem parte da máquina. Essa lógica herdada da estrutura de trabalho taylorista,  é ainda perceptível nas sociedades do séc. XXI, na qual se produz não apenas utensílios dos mais variados, carros, celulares, computadores, mas principalmente escravos do trabalho.  O trabalho enquanto necessidade, isto é, encerrado na subsistência, comprime as possibilidades individuais, constrangendo e apagando expectativas, e principalmente o senso de um propósito outro que não seja o de trabalhar para adquirir.

Nesse cenário, a ideia de força em Simone Weil, situa-se como instrumento da opressão e ao mesmo tempo de enfraquecimento da massa trabalhadora. Dizendo respeito muito mais a uma noção de organização, do que propriamente algo que se sustenta pelo número, isto é, pela quantidade, a força arregimenta até mesmo a cultura e a ideologia para se perpetuar. Com isso, em que pese a massa operária superar em quantidade os grupos que coordenam e administram os meios de produção, é incapaz de romper com a dinâmica da opressão, na medida que é inconsciente quanto a esse respeito.

Não necessariamente fundada em um ideário marxista, a crítica de Weil ao trabalho, compreendido nesse estrutura da atividade na fábrica, diz muito mais respeito a um esvaziamento da capacidade de pensar do ser humano, que por consequência inviabiliza até mesmo o reconhecimento da sua própria humanidade.

O trabalho nesse sentido é desprendido de significação, é apenas um meio, desfeito de um propósito realmente satisfatório para aquele que empreende força cotidiana para ter o mínimo para sobreviver.

Percebe-se que essa falta de sentido se agravou ainda mais com a massiva inserção de recursos tecnológicos voltados a serviços os quais se firmaram como demanda. Aplicativos como Uber, ifood são o retrato de uma sociedade marcada pela mecanização de indivíduos e automatização das atividades laborais. Ainda que tenham oportunizado muitas pessoas a obterem um recurso de forma rápida, tais plataformas, ditando as próprias regras e mantendo um vínculo contratual precário com aqueles que delas fazem uso para sobreviver, acabaram por implementar uma necessidade brutal, onde praticamente se paga para trabalhar.

Esse cenário de precarização do trabalho, fez reverberar em âmbito judicial muitas discussões, em especial as que sustentam um vínculo empregatício entre aqueles que prestam serviços utilizando as plataformas como ferramenta intermediária entre eles e o consumidor final. Em atenta análise ao que dispõe a legislação trabalhista e mesmo a jurisprudência, percebe-se um movimento no sentido de interpretar tais relações como sendo de “trabalho”, figurando a plataforma como empregador e o prestador de serviço como empregado.

De fato não é forçoso fazer essa adequação da norma a essa relação, sobretudo quando considerada a natureza não eventual do serviço, bem como o grau de subordinação e vulnerabilidade que o prestador de serviço é colocado, ao aceitar os termos de contrato da plataforma. Todavia, ainda assim isso não resolve o problema, visto que as decisões nessa linha sempre se dão de forma particularizada, não alcançando toda uma categoria.

Abordando não apenas questões de caráter trabalhista, mas também de repercussão civil, se considerarmos a forma unilateral em que a plataforma elabora o contrato entre ela e o prestador de serviço, a discussão que emerge é muita mais complexa, especialmente quando se tem em conta a liberdade de contratar e a função social do contrato. Depreende-se de tais conceitos a necessária observância de paridade entre os contratantes, não podendo um ficar a revelia do outro, como acontece nessas relações nascidas através do uso de tais plataformas digitais.

Sem apego ao vínculo celetista, o qual é hoje suscitado como a máxima para resolver a chamada uberização do trabalho, partindo de uma outra perspectiva, deve-se a princípio preocupar-se com uma adequação contratual. Tendo isso em vista, questões relativas aos rendimentos do dia, as horas trabalhadas, aos termos de rescisão do contrato, dentre outras, devem ser pensadas e estabelecidas dentro do escopo do contrato firmado entre prestador de serviço e plataforma,  sob o fundamento não apenas da dignidade da pessoas humana, mas da função social do contrato.

Não obstante ser importante fazer esse recorte, trazendo a discussão para uma visão mais prática, demonstrando que pelo prisma jurídico é possível pensar em uma ressignificação do trabalho a partir da ratificação de condições dignas, sob as premissas de Simone Weil o horizonte se amplia. Por óbvio, a partir do momento em que são dadas condições sustentáveis de trabalho, dá-se abertura para uma atividade laborativa consciente. Entretanto, mesmo nessas condições, o pensamento e o senso de propósito podem ser embargados quando não elevados a ambições avessas a anseios supérfluos, de satisfação imediata.

É preciso ver na atividade em si mesma, algo de certa importância não para atender a um fim prático, mas de realização do próprio indivíduo, podendo reconhecer na sua pessoa o resultado daquilo que produz. Assim como um artesão se reconhece na obra que faz, o mesmo deve se dar entre o sujeito e o trabalho que exerce. Se assim não for, a atividade laborativa é mera efemeridade que mesmo possuindo resultado prático, não preenche aquele que o pratica de significa.

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