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Seria possível aplicar a Lei Maria da Penha entre vizinhos?

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Para que a Lei Maria da Penha tenha incidência, além da violência ter por base uma questão de gênero, há ainda outra exigência: que a violência ocorra no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas (inciso I); no âmbito da família (inciso II); ou em qualquer relação intima de afeto (inciso III). No presente artigo iremos reservar nossa atenção para o Inciso I do Art. 5° da Lei 11.340/06, buscando refletir sobre o que seria o “espaço de convívio permanente” e a possibilidade de aplicação da lei para os casos envolvendo vizinhos. Vejamos a norma:

Lei n 11.340/06 – Art. 5°, inc. I – No âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas.1 

Três devem os pontos destacados em relação ao dispositivo:2

(a) De acordo com a lei, a unidade doméstica representa o espaço de convívio permanente de pessoas. Compreendendo que as casas vizinhas fazem parte da unidade doméstica visto que os indivíduos convivem no mesmo espaço, podemos concluir ser possível a aplicação da lei para a relação entre vizinhos;

(b) Não há exigência de vínculo familiar;

(c) Abrange as pessoas esporadicamente agregadas.

Ou seja, aqui há a limitação a um espaço e período de convivência, não se exigindo o vínculo familiar. Isso porque a proximidade das relações naquela unidade de vizinhança cria um ambiente de convívio que torna a mulher ainda mais vulnerável, principalmente as idosas ou solteiras.3

As situações cobertas pela lei são amplas, porém não o suficiente para que se proteja a mulher do assédio, da ameaça e da violência perpetrada por vizinhos. Dos três contextos (incisos do Art. 5°) pode-se perceber que diretamente não foram contemplados inúmeros outros em que a violência de gênero pode se manifestar, e é nessa perspectiva que se compreende pela necessidade de estender a aplicação do dispositivo legal.

Essa é uma das mais importantes críticas que organismos nacionais e internacionais de proteção à mulher fazem à Lei brasileira, uma vez que a proteção conferida pela A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará, é mais abrangente, ou seja, visa proteger a mulher de qualquer tipo de violência.4

Tramitou entre os anos de 2016 a 2018 um Projeto de Lei (PLS 28/2016) que tinha por finalidade amplia as situações que tipificam a violência doméstica contra a mulher para incluir atos praticados por vizinhos da vítima. Nessa linha, se pretendia considerar como violência doméstica ações praticadas nas regiões de vizinhança, conjunto habitacional, edifício ou similares, onde o agressor convive em proximidade com a vítima.5 O projeto foi arquivado ao final da legislatura conforme determina caput do art. 332 do Regimento Interno do Senado Federal.6

É possível conceituarmos espaço de convívio permanente como sendo o local em que as pessoas moram de forma definitiva ou durável, o que se aplica fielmente a relação construída no contexto de vizinhança. A relação entre vizinhos por vezes pode ser complicada, e não é qualquer pessoa que tem condição ou mesmo disponibilidade de mudar de casa simplesmente por sofrer importunação ou agressões com que “dividem muro”. A situação em que a mulher é submetida é muito mais complexa e sensível do que se imagina, como em todos os casos de violência de gênero, e é obrigada a conviver e ver o agressor diariamente, proporcionando ainda mais oportunidades de agressão.

Muitas vezes essa situação devido à proximidade e aos meios de provocação precisa ser freada de forma mais drástica, e com instrumentos mais contundentes, nesse caso, entende-se por adequada a aplicação das medidas protetivas previstas na Lei Maria da penha.

Existe a possibilidade da aplicação das medidas cautelares diferentes da prisão previstas no art. 319 do CPP, entretanto devido a particular vulnerabilidade nos casos de violência de gênero, entende-se ser mais adequado e efetivo ser aplicado as medidas protetivas.

Vejamos as medidas cautelares primeiro:

Lei 3.689/41 – Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão

I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades

II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;         

III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;         

IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;          

V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos

VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;7 

VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração

VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;          

IX – monitoração eletrônica.8 

Agora vamos relembre as medidas protetivas de urgência:

Lei 11.340/06 – Art. 23 […] II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e  (Incluído pela Lei nº 13.984, de 2020)

VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.       (Incluído pela Lei nº 13.984, de 2020)

1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público.

2º Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6º da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso.

3º Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.

4º Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5º e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil).9 

As medidas protetivas de urgência são mais completas, podendo o juiz a seu critério ampliar conforme o parágrafo primeiro do Art. 22 acima citado, as medidas protetivas necessárias à segurança da vítima.10 Daí se vê a razão pela qual o Art. 309 do CPP não é suficiente para proteger as mulheres vítima de violência de gênero por vizinhos, devendo ser aplicada as medidas protetivas dispostas na Lei Maria da Penha para tornar efetiva a proteção a mulher.

Os tribunais já decidiram em alguns casos pela aplicação da Lei Maria da Penha em caso de brigas de vizinhos. A título de exemplo temos o caso em que o TJSP entendeu ser necessária aplicação da Lei Maria da Penha para proteger uma senhora de 81 de uma série de agressões e xingamentos em razão de uma poda de arvore, na situação o agressor foi impedido de se aproximar da vítima.11

Em que pese a grande divergência pelo uso da Legislação especial para esses casos, três apontamentos são necessários em seu favor:12

1- O ambiente de vizinhança é um ambiente doméstico. A proximidade de apartamentos, casas geminadas, divisas de muro trazem a atmosfera de um ambiente doméstico devido a relação muito próxima geograficamente, e até mesmo a relação existente entre as pessoas.

2- As medidas protetivas tem maior amplitude na proteção as vítimas, bem como um apelo social maior devido a maior reprovabilidade social do que uma simples agressão.

3- A briga entre vizinhos e a violência nesse sentido, tem na maioria das vezes como alvo uma mulher, principalmente as idosas ou solteiras, que por morar só aparentam maior fragilidade.

Por todo o exposto, deve o tema ser tratado com maior sagacidade pela justiça. Não são raros os casos em que mulheres se veem diante da necessidade de desfazer do imóvel e mudar de local por causa da violência de vizinhos.

Portanto, entende-se ser possível a aplicação da Lei Maria da Penha nas situações de agressão perpetrada por vizinhos, e espera-se que esse entendimento seja cada vez mais utilizado.

 

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Sarah Batista Santos Pereira

 

Referências

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1. BRASIL. Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: https://bit.ly/35okQV4. Acesso em: 20 jan. 2022.

2. BIANCHINI, Alice. Os três contextos da violência de gênero: doméstico, familiar ou relação íntima de afeto. 2013. Disponível em: https://bit.ly/3KXwKpw. Acesso em: 20 jan. 2022.

3. TJDFT. Âmbito da Lei Maria da Penha. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3KStY4E. Acesso em: 20 jan. 2022.

4. BIANCHINI, Alice. Os três contextos da violência de gênero: doméstico, familiar ou relação íntima de afeto. 2013. Disponível em: https://bit.ly/3G9IyRB. Acesso em: 20 jan. 2022.

5. SANTOS, Geovani. Agressão cometida por vizinho poderá configurar violência doméstica na Lei Maria da Penha. 2007. Disponível em: https://bit.ly/3AJqHQk. Acesso em: 20 jan. 2022.

6. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado n° 28, de 2016. Disponível em: https://bit.ly/34cXDER. Acesso em: 20 jan. 2022.

8. BRASIL. Decreto-Lei n°3.689. de 3 de outubro de 1941. Disponível em: https://bit.ly/3rbwECM. Acesso em: 20 jan. 2022.

9. BRASIL. Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: https://bit.ly/3ua7GW1. Acesso em: 20 jan. 2022.

10. ROCHA, Rafael. A lei Maria da Penha pode ser aplicada em briga de vizinhos. Disponível em: https://bit.ly/3o8UrBr. Acesso em: 28 jan. 2022.

11. CONSULTOR JURÍDICO. Juiz usa Lei Maria da Penha para resolver briga entre vizinhas. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3ILyikd. Acesso em: 20 jan. 2022.

12. ROCHA, Rafael. A lei Maria da Penha pode ser aplicada em briga de vizinhos. Disponível em: https://bit.ly/3rd610i. Acesso em: 28 jan. 2022.

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