Sobre a possibilidade legislativa de redução da indenização por danos morais em casos de cancelamento e atrasos de voo e a controvérsia do “tort must not pay”

Sobre a possibilidade legislativa de redução da indenização por danos morais em casos de cancelamento e atrasos de voo e a controvérsia do “tort must not pay”

avião

Em julho do corrente ano, o Senado aprovou o Projeto de Lei nº 1.829/2019, que visa atualizar a legislação brasileira sobre turismo, com suposto foco na sustentabilidade econômica das empresas aéreas, especialmente em momentos de crise financeira e operacional.

Entre as principais mudanças propostas pelo projeto, destaca-se a busca pela limitação das indenizações por danos morais presumidos ou punitivos que as companhias aéreas devem pagar aos consumidores. De acordo com o novo texto, as indenizações serão restritas apenas aos danos comprovadamente efetivos, eliminando a obrigatoriedade de compensação por danos morais presumidos (in re ipsa).

Outra alteração significativa é a exclusão da aplicação do Código de Defesa do Consumidor nos processos judiciais contra companhias aéreas, que passarão a ser regidos pelas normas do Código Brasileiro de Aeronáutica. Com isso, as indenizações por atrasos e cancelamentos de voos podem ser significativamente reduzidas. O projeto, já aprovado pelo Senado, agora seguirá para nova apreciação na Câmara dos Deputados.

A possibilidade de redução das indenizações por danos morais decorrentes de atrasos, cancelamentos e demais intempéries relacionadas ao setor da aviação representa um retrocesso aos avanços da responsabilidade civil contemporânea pois, na prática, permitirá que o ilícito seja lucrativo.

Outra modificação polêmica que tem sido alvo de contestação por associações de defesa dos consumidores é a adoção das regras da Convenção de Montreal para voos internacionais. Essas regras, consideradas como menos rigorosas para as empresas aéreas, enfraqueceria as garantias estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor, resultando em uma proteção reduzida para os passageiros, especialmente em casos de cancelamento de voos e danos sofridos durante a prestação do serviço.

A máxima da common law do “tort must not pay”, traduzido livremente a algo similar à “o ilícito não deve ser lucrativo” é comumente reiterado na responsabilidade civil, sendo que a referida máxima tem pouca eficácia se o cenário contemporâneo for colocado em análise, e terá menos ainda, caso o projeto de lei alcance o seu objetivo.

Em âmbito brasileiro, a máxima de que “o crime compensa” poderá ser ampliada e relida como “o ilícito compensa”, e, ainda, se acrescenta que, além de compensar, pagar-se-ia bem ao infrator. Não são atípicos os casos em que indivíduos adentram na ótica de direitos alheios, beneficiam-se economicamente por tais atos antijurídicos que lesionam o que pertencem a outrem e saem impunes de tais práticas.

Ewoud Hondius e André Janssen prelecionam que, sob o ponto de vista do Direito Privado, pelo menos três são as razões pelas quais as condutas ilícitas beneficiam os agentes que lesam aos demais. A primeira refere-se à quando a chance de identificação do infrator é muito baixa, sendo que, nessas situações o agente pressupõe que não será responsabilizado por seu comportamento ilegal. A segunda razão refere-se a apatia racional em relação aos sujeitos prejudicados nos casos de danos de menor proporção. São casos em que o dano sofrido por cada indivíduo é baixo e, consecutivamente, a chance de que o ofendido busque a reparação é igualmente baixa, mas, como diversos sujeitos sofrem o dano, o lucro do infrator é elevado. A terceira e última razão apontada revela-se quando o lucro esperado com a prática do ilícito supera as sanções legais. Na hipótese, ainda, que o infrator responda legalmente, a prática do ilícito é rentável.1

Explica-se: as empresas aéreas, comumente, realizam um cálculo de “custo-benefício” em que avaliam as condições dos danos (causados por atrasos, cancelamentos e diversos imbróglios que poderiam ser evitados ou, na imensa maioria das vezes, reduzidos), e quanto despenderiam para resolver a problemática. Isto é, em termos gerais, é mais lucrativo permitir que tais danos aconteçam, pois eventuais indenizações seriam inferiores ao valor total do lucro. É dizer que a prática do dano é lucrativa.

Contudo, ante aos avanços jurisprudenciais, as indenizações contemporâneas estão seguindo, acertadamente, três fatores: a) o caráter in re ipsa do dano moral, ou seja, o dano é presumido, sem necessidade de comprovação, decorrente da lógica de que tais ilícitos geram inequívocos abalos ao consumidor;2 b) a perda do tempo útil dos consumidores, baseado na Teoria do Desvio Produtivo, uma vez que existe considerável tempo gasto na frívola tentativa de resolver o problema de forma administrativa e c) o caráter pedagógico das indenizações, em que os magistrados aplicam valores mais severos com intuito de desestimular que tais ilícitos se repitam.

Somando-se a tais fatores, acrescente-se o fato de que os consumidores, em um geral, estão mais atentos a seus direitos, fenômeno relativamente recente na sociedade notavelmente e amplamente digitalizada. Ou seja, antigamente considerar-se-ia que o dano individual, por si só, seria ínfimo, e uma eventual condenação pelo Poder Judiciário seria ainda menos significante para os cofres das companhias aéreas. Agora, com as massivas demandas contra tais empresas, o cenário mudou.

Esse retrocesso legislativo contrasta com os avanços recentes na responsabilidade civil, que buscam garantir uma compensação justa e um desestímulo efetivo às condutas lesivas.

Em última análise, a flexibilização das responsabilidades das companhias aéreas poderá incentivar um ambiente onde o “ilícito compensa”, contrariando princípios fundamentais da responsabilidade civil. A efetividade do sistema jurídico na proteção dos consumidores depende da manutenção de mecanismos que punam adequadamente as condutas lesivas, prevenindo que práticas ilícitas se tornem economicamente vantajosas.

 

Referências

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1. HONDIUS, Ewoud; JANSSEN, André. Disgorgement of Profits: Gain-Based Remedies throughout the World. ed. 8. Cham: Springer International Publishing, 2015.

2. Destaca-se, por oportuno, que a aplicação do dano moral presumido não é, obviamente, para todos os casos, cabendo ao julgador analisar as peculiaridades do caso e a própria inversão do ônus probante.

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