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Violência psicológica e física contra a mulher: a banalização na sociedade contemporânea

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Presenciamos, particularmente nos últimos anos, intensa atividade legislativa no cenário federal voltada à proteção dos direitos humanos das mulheres. A locomotiva legiferante embora se movimente fortemente, albergando pautas que são relevantes, é incapaz, todavia, de alterar o que é crucial: a efetiva inclusão da mulher na qualidade de ocupante de cargos onde haja expressão de poder estatal , especialmente no legislativo,  para apropriada  representatividade da maior parcela da população brasileira,1 de gênero justamente feminino.

Os dados atuais a propósito da composição de mulheres no congresso nacional revelam que apenas 18% dos parlamentares assim se classificam, com aprovação de temas concernentes às mulheres de modo concentrado em semanas temáticas, com ênfase em março (mês internacional da mulher).2 Esforços são despendidos por bancadas femininas compostas por deputadas e senadoras de partidos diversos para articulação e aprovação de projetos, tais como ocorreu com o correspondente à inclusão de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar e  de tipificação de violência psicológica cometida por meio de inteligência artificial.

Os obstáculos a serem transpostos pela bancada feminina no congresso são variados e albergam a questionável exigência de que haja consenso para inclusão de pauta na Câmara, o que inexiste em relação a outros temas, que são aprovados por maioria, à míngua do aludido consenso.

Ainda que consideremos necessários e benéficos os diplomas legais editados, em verdade não externam efetividade no âmbito material, como é imperioso que se faça.  Continuamos com índices alarmantes de feminicídios (consoante o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023 1.463 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, maior número registrado desde a tipificação do delito em 2015).3

No que concerne à violência sexual contra a mulher, especificamente estupro e estupro de vulnerável, por cem mil mulheres em 2022, a taxa nacional foi de 63,2,4 o maior número de estupros da história. Das vítimas, 61,4% tinham no máximo treze anos.5

Em 2023, a cidade de São Paulo, maior do país, teve recorde de estupros e queda histórica de homicídios6 de onde extraímos a conclusão que, a despeito da atuação da bancada feminina de parlamentares que compõem timidamente o congresso nacional, os crimes sexuais estão ocorrendo com maior frequência no seio social.

De ver-se que a exposição de dados públicos é relevante para que nos situemos na conjuntura global e possamos meditar a respeito do que é imprescindível modificar para superação de tanta violência.

Violência contra a mulher, traduzida por inúmeras condutas e distintas formas de verificação, não é, contudo, um fenômeno exclusivamente doméstico, mas que ultrapassa nossas fronteiras, como reiteradamente observamos.

Se isso é veraz, por um lado, sob outro ângulo não podemos nos isentar de responsabilidade pelo  deplorável título de encontrarmo-nos na quinta posição do ranking mundial de feminicídio,7 consoante dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), ficando atrás tão somente de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Federação Russa (dados de abril de 2016).8 Não é excessivo consignar que, tendo em vista a concentração da violência doméstica e familiar no período pandêmico (covid-19) e em harmonia com o noticiado amplamente pelos meios de comunicação, o aludido status pode até mesmo haver sido superado na atualidade, para quadro mais comprometido.

Não há como se refutar que a cultura patriarcal instalada e também desenvolvida no Brasil incentiva e reproduz as inescusáveis desigualdades entre gêneros, dentre as múltiplas que se consolidaram em larga escala no cotidiano de nosso território.

Mas há de se voltar a atenção para a vítima de violência doméstica com mais vagar, inclusive com o amparo da ciência, a fim de identificarmos os incontáveis fatores que concorrem para a instalação de tão nefasto contexto de relacionamentos tóxicos interpessoais, quando não fatais. Por onde, então, começaria o ciclo da violência que, em sua escalada surpreendente, ceifa vidas nos mais díspares extratos sociais?

De acordo com o que é possível apreender, a violência psicológica se mostra inarredável e inaugural nos relacionamentos caracterizados pela perpetração de diversas formas de violência em detrimento do gênero feminino. Extremamente complexo que se imagine uma agressão física, exemplificativamente, sem a precedente violência psicológica por intermédio da qual o sentimento raivoso de quem se dirige à mulher teve vazão. Por conseguinte, violência psicológica é uma constante em relacionamentos tóxicos, podendo os últimos se desenvolver com a intensificação da violência perpetrada diretamente contra a vítima (violência sexual, física), ou não.

Atente-se para o fato de que a atual redação do artigo 18, parágrafo quarto da Lei Maria da Penha ( Lei 11.340/06) preconiza que as medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes (redação outorgada pela Lei 14.550/23). Isso significa dizer inversão do ônus probatório, incumbindo à autoridade a convicção (e prévia constatação) de ausência de risco para rejeitar o pedido de medida protetiva. Logo, frente ao relato de violência psicológica pela vítima, a medida protetiva deve ser outorgada de plano, ressalvados elementos probatórios firmes e coerentes que a rejeitem, os quais não deverão ser produzidos pela vítima.

Em pesquisa de cunho psicológico consubstanciada na escuta qualificada e cinco mulheres que sofreram agressão física em relação amorosa já rompida,9 lançou-se que os resultados obtidos elucidaram que a vulnerabilidade e a persistência de mulheres em relações abusivas e violentas estão embasadas em uma forma identitária de amar, que se conformou histórica e culturalmente. A criação de novos caminhos identitários foi sugerida como primordial, além da interrupção da violência, excluindo-se a restrição ao atendimento de expectativas e desenvolvimento de papéis voltados à detenção de beleza, exercício de atividades de cuidado e sentimento de amor pelas mulheres. Foram detectados nos relatos das entrevistadas sentimentos de culpa, vergonha, auto responsabilização pelo comportamento do parceiro, com a frequente redução de rede de apoio e isolamento social, decorrentes os dois últimos fatores quer da influência ativa dos homens, quer do constrangimento que as mulheres sentem ao mencionarem o assunto. Nos casos em que vítimas narraram percepção de violência física, apurou-se expressiva diminuição da rede de apoio. Apesar de dividirem as experiências com terceiros próximos, as vítimas acabaram por se absterem em continuar a partilhar tais relatos sob a percepção do “cansaço” daqueles com a circunstância de continuarem nos relacionamentos. Agressor e vítima se fecham em um sistema, tornando-se muitas vezes o homem a única referência de apoio afetivo para a vítima. O silêncio social sobre a violência contra a mulher foi intitulado como agravante de risco e possivelmente, da vergonha das vítimas em comentarem suas experiências.  A idealização do amor romântico também foi apontada como relevante para a perpetuação e agravamento de relações consumadas com a presença de violência doméstica.  É o amor que “tudo justifica, tudo suporta e tudo atravessa”. Aludida forma de amar foi declinada pelas autoras como fruto de tecnologias de gênero e aprendizagem do amor como o cerne identitário das mulheres (Zanello, 2018). Partindo-se da premissa de existência de fatores subjetivos e emocionalidades das mulheres, dispositivos amoroso e materno das mesmas, concluiu-se que quanto ao primeiro tema (“satisfação narcísica de ser escolhida e especial”), o fato das mulheres “serem eleitas” por um homem e terem a sensação de ocuparem um lugar importante e insubstituível para ele, surgiu como elemento central que contribuiu para a entrada, persistência e dificuldade de ruptura de relações íntimas violentas.  O segundo tema (“formas de violência”) revelou diferentes maneiras de manipulação dos afetos e de manifestação da violência em relacionamentos íntimos, destacando-se na violência física e sexual a desqualificação, a humilhação e o “controle com carinho”. O terceiro tema (“afetos mobilizados”) discutiu os principais afetos e sentimentos expressados pelas mulheres diante da violência e da captura pela satisfação narcísica: o isolamento e solidão, a culpa e a vergonha que contribuem para a perpetuação do ciclo da violência. O quarto tema (“o amor da minha vida: idealização do amor romântico”) abordou a idealização do amor romântico e seu potencial de vulnerabilizar mulheres, levando-as a priorizar os homens e as relações em detrimento de si mesmas e a manter-se em situações em que são humilhadas e violentadas em nome de um suposto amor que tudo enfrenta, justifica e supera. O derradeiro tema (“o descentramento do amor romântico e a entrada do terceiro: possíveis vias de saída”) evidenciou como o descentramento do amor romântico e o investimento em si mesma e em projetos fora da esfera amorosa podem funcionar como importantes fatores protetivos. Constatou-se que o ingresso de outras pessoas nas relações amorosas é essencial para que mulheres consigam romper o cerco de violência e isolamento, recomendando-se que o Estado atue como terceiro.

Do elucidativo artigo supracitado é possível extrair, em suma, que o meio identitário de subjetivação feminino – de qualificação de uma mulher no sentido de sentir-se aceita, “vencedora” , “bem sucedida” socialmente, detentora de atributos, sob completude – resulta fortemente da entabulação e manutenção de relações íntimas de afeto.  Por evidência, esse estado não se dissocia da carga histórica e cultural que é transmitida às mulheres de geração em geração, do processo educativo e do meio social em que cresceram e vivem. Porém, o cerne da problemática reside no fato de que,  ao precisarem ser validadas em tais relacionamentos, os quais são desenvolvidos sem igualdade, considerando as próprias mulheres seus companheiros, cônjuges ou namorados como prioritários, findam por consubstanciar facilmente alvo de violência, instaurando-se o respectivo ciclo.

Ao refletirmos sobre a violência física que não raras vezes é escalonada para a eclosão do feminicídio, é legítima a percepção de que a violência psicológica figura como antecedente corriqueiro. A desqualificação da mulher, a ausência de polidez no tratamento, a altercação verbal consistente em gritos e gestos intempestivos eficazmente intimidam e deterioram sentimentos de autonomia e autoestima da vítima, abrindo ensanchas ao recrudescimento da violência.

É pertinente, em sede reiterada, consignar que a detecção dos mecanismos que resultam no surgimento de violência doméstica e familiar nos faz concluir no sentido da imprescindibilidade de aplicação da legislação vigente e convenções internacionais incorporadas pelo ordenamento jurídico pátrio, ie protocolo para julgamento sob perspectiva de gênero do CNJ (2021) para que nos aproximemos, ao menos, do ideal de igualdade substancial entre homens e mulheres. Isso, todavia, não significa afirmar que mulheres podem cometer atos ilícitos e serem isentas das consequências legais pelo gênero que apresentam. Não se trata de salvaguarda para que todas nós tenhamos indevidos privilégios ou sejamos alijadas das sequelas dos atos que livre e conscientemente praticarmos, os quais infrinjam a ordem normativa. Aqui é conveniente mencionarmos a Lei de Alienação Parental, intitulada por vários profissionais da área jurídica como sexista, quando na verdade configura simples instrumento legislativo para enfrentamento de hipótese altamente problemática, cuja configuração no plano empírico ocorre com frequência. O que em verdade se impõe é que o direito de convivência e a atribuição de guarda em definitivo aos cotitulares do poder familiar, nos moldes do artigo 1634 do CC (ou autoridade parental), em situações onde haja denúncia de violência doméstica e familiar pela mulher, sejam disciplinados de modo responsável, sob o crivo do contraditório, ampla defesa e com farta produção probatória, averiguando-se os aspectos alusivos aos reflexos psicológicos em desfavor das crianças e adolescentes que a percepção da violência contra a ascendente porventura produzam. Inexiste , todavia, qualquer razoabilidade no raciocínio de que a denúncia de violência doméstica por si só já implicaria em afastamento definitivo do outro genitor (gênero masculino), quer perante a casuística material, quer pela falsa premissa de que a imputação já configuraria comprovação cabal de incapacidade para o exercício dos atributos do poder parental, objetivamente (isso sem cogitarmos falsas denúncias, plausíveis de verificação e ressalvas legais) .Lembremos, ademais, que a Lei 13.431/17 (que disciplina depoimento especial e escuta especializada de crianças e adolescentes) preconizou que a alienação parental também configura violência psicológica contra o incapaz (artigo 4º , inciso II, “b”) e mesmo que revogada a Lei de Alienação Parental , em trâmite atualmente no Congresso Nacional projeto de lei a propósito, o ato de alienação parental, devidamente comprovado, continuará a figurar como ato ilícito perante os ditames do Código Civil e o direito fundamental de crianças e adolescentes em conviverem com seus familiares (artigo 227 da Constituição Federal). Sob outro turno, o conceito de violência vicária, perpetrada pelo genitor contra os filhos incapazes quando impossibilitado de atingir diretamente a mulher/mãe, é relevante e deve ser compatibilizado no sistema jurídico de forma a se apreciar o caso concreto individualmente, com as devidas cautelas e mediante plena aferição das provas trazidas ao feito.

Concluímos, dessarte, que os meios de superação da verdadeira banalização da violência doméstica, em especial a de natureza extremamente gravosa como é a peculiar ao feminicídio, não abstrai a imprescindibilidade do legítimo empoderamento feminino com assunção de cargos de representatividade popular por mulheres, meio hábil a eficaz implementação de políticas públicas para prevenção, atendimento de vítimas e repressão aos delitos concernentes a violência doméstica, bem como nos remete à mudança de paradigmas estéticos , etários e relacionais (atente-se ao fato que em 2022 , 61,4% das vítimas de estupro tinham no máximo treze anos, com maior dificuldade de ostentação de crítica e mecanismos de autodefesa), quebra do silêncio coletivo sobre a violência doméstica, estímulo às redes de apoio em benefício das mulheres vítimas de violência, conjuntamente com a prestação de serviços multidisciplinares e protagonismo do Estado como terceiro elemento hábil a intervir para interrupção do ciclo de violência contra mulheres, evitando-se, de tal sorte, a catastrófica continuidade dos índices nacionais de feminicídio.

  

Referências

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1-www.censo2022.ibge.gov.br, panorama; acessado em 18/04/2024;

2- www.congressoemfoco.uol.com.br, Soares, Gabriella, março de 2024, acessado em 18/04/2024;

3- www1.folha.uol.com.br, 07 de março de 2024, acessado em 18/04/2024;

4-www.forumseguranca.org.br, acessado em 18/04/2024;

5-www.g1.globo.com, Paiva, Deslange, Stabile, Arthur, Honório, Gustavo, matéria veiculada em 20/07/2023 e acessada em 18/04/2024;

6-www.agenciabrasil.ebc.com.br, Bocchini, Bruno, publicado em 26/01/2024, acessado em 18/04/2024;

7-www.unale.org.br,“Violência contra a mulher: Brasil é o 5º país com maior número de feminicídio” , acessado em 27/04/2024;

8-www.brasil.un.org, Nações Unidas, Brasil, acessado em 27/04/2024;

9- Magalhães, Bruna Maia, Zanello, Valeska, Ferreira, Iara Flor Richwin, “Afetos e Emocionalidades em Mulheres que Sofreram Violência por Parceiro Íntimo”, Universidade de Brasília, Psicologia Clínica, páginas 17, 18, 23 e 24, www.researchgate.net, acessão em 27/04/2024;

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