O direito civil é ramo jurídico que passou por sensíveis transformações ao longo dos tempos. No Brasil, a regulação jurídica das relações privadas vem observando desde o século XX uma reinvenção epistemológica, através do fenômeno da constitucionalização do direito civil.
A travessia do direito civil liberal para o direito civil constitucional é marcada pela passagem da estrutura à função,1 num processo que “alterou ontologicamente diversos institutos jurídicos”.2 Não mais é central entender a composição dos institutos jurídicos do direito privado, mas sim identificar a quem tais institutos servem. Função social da propriedade, da família, do contrato e da empresa dão a tônica dessa epistemologia constitucional das relações privadas.
Nesse processo, diversas visões que impactaram o constitucionalismo passam a integrar o léxico dos civilistas: o direito civil é poroso à hermenêutica aberta, à ponderação de princípios, à filosofia dos valores. Os avanços práticos dessa abertura são visíveis e inegáveis, em muitas pautas operou-se uma sensível humanização do direito civil nos últimos tempos, em especial no direito de família.
Mas há debates travados no constitucionalismo e no palco dos direitos humanos que poderiam trazer muitas contribuições ao governo jurídico das relações privadas, e a nosso ver, poderiam ser mais bem discutidos. Exemplo disso é a discussão teórica acerca dos diálogos transconstitucionais, encabeçada pelo Prof. Marcelo Neves.
Nas suas teorizações, Neves recorre significativamente ao conceito de sistemas, numa perspectiva luhmaniana. Entende que a “semântica constitucionalista reagiu construtivamente no plano das estruturas, servindo como ‘ideologia’ revolucionária para o surgimento das Constituições como artefatos possibilitadores e asseguradores das diferenças entre sistemas político e jurídico”3 . É dizer, essa semântica constitucionalista e essa racionalidade do constitucionalismo liberal, forjadas nos processos revolucionários burgueses do século XVIII, deram conta de se efetivar em estruturas, normas, constituições escritas, que residiriam no acoplamento de dois sistemas autônomos: o direito e a política.
Voltando a atenção ao sistema funcional “direito”, Neves percebe que, no âmbito desse sistema, as variadas ordens jurídicas (estatais, supranacionais, transnacionais, extraestatais) estabelecem seus programas e critérios, dentro do código binário “lícito” e “ilícito”4 . Cada ordem tem suas estruturas, isto é, suas normas próprias, aplicadas através de procedimentos específicos, e uma dogmática autonônoma, mas todas essas formas do fazer jurídico integram o sistema “direito”.
Seria então possível haver entrelaçamentos no âmbito desse sistema: entrelaçamentos entre as diversas ordens. As “pontes de transição” desse processo teriam seu desenvolvimento a partir dos centros de cada ordem – os juízes e tribunais, pois a sociedade mundial e também o seu sistema jurídico são multicêntricos, “de tal maneira que, na perspectiva do centro (juízes e tribunais) de uma ordem jurídica, o centro de uma outra ordem jurídica constitui uma periferia”5 .
É importante entender que, para Luhman, há um só sistema social mundial.6 As fronteiras nacionais não decompõem cada nação em um sistema social autônomo: a sociedade é constituída pela comunicação, e não há barreiras territoriais para a comunicação, especialmente no contexto da sociedade da informação, marcada pelos avanços tecnológicos nessa área. Assim, não há sistemas sociais, há um único sistema social.
Dessa forma, no sistema funcional “direito”, há espaço para a comunicação, há efetiva ambiência para os entrelaçamentos e para o diálogo entre as ordens jurídicas diversas, de modo que os juízes e tribunais de uma ordem, que ocupam o seu centro, estão na periferia de uma outra ordem, mas também integram esta.
Nessa abordagem transconstitucional, observa-se uma fertilização constitucional cruzada,7 em que as cortes constitucionais de cada ordem citam-se umas as outras, não com o intuito de invocar precedentes vinculantes, mas como recurso argumentativo, invocado uma autoridade persuasiva no diálogo transconstitucional.8
Mas é importante destacar que Marcelo Neves não limita o transconstitucionalismo ao diálogo entre cortes, ou entre ordens jurídicas estatais ou supra/transnacionais. Há também o diálogo envolvendo ordens jurídicas locais extraestatais, isto é, ordens normativas nativas, como a ordem das comunidades indígenas.9
Nessas situações, não há como se recorrer ao léxico universalista dos direitos humanos. As coletividades nativas não raro têm pressupostos antropológico-culturais incompatíveis com o modelo de constitucionalismo do Estado,10 de modo que é inadequado pensar-se em imposições – seja do discurso dos direitos humanos ou da lógica do constitucionalismo estatal – a certas controvérsias envolvendo coletividades nativas.
Neves discorre sobre esse aspecto com exemplos interessantes, analisando o modo como grupamentos indígenas encontram soluções em suas ordens extraestatais para problemas que também ocorrem em outras espacialidades, encontrando solução jurídica absolutamente diversa. Questões como os direitos reprodutivos das mulheres e a autonomia relativamente ao direito de não reproduzir contra a própria vontade são analisadas pelo Professor, que verifica que a solução jurídica da ordem extraestatal indígena, que reconhece a autonomia da mulher, pode servir de fonte do direito para a ordem estatal brasileira, que criminaliza o a interrupção da gravidez.
Sendo a família uma ambiência privada por excelência, vê-se que as relações privadas podem se abrir a diálogos transconstitucionais. Essa é uma discussão ampla, que estou desenvolvendo em trabalhos de maior densidade, mas fica aqui um convite à reflexão. O direito civil se abriu à constituição, numa travessia que operou reinvenções. Agora, soa razoável que se abra também aos direitos humanos, numa perspectiva crítica e transconstitucional.
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Hermano Victor Faustino Câmara
Referências
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1. Para utilizar o léxico presente em: BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. São Paulo: Manole, 2006.
2. FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil – sentidos, transformação e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 31.
3. NEVES, MARCELO. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 53.
4. NEVES, MARCELO. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 115.
5. NEVES, MARCELO. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 117.
6. KUNZLER, Caroline de Morais. A teoria dos sistemas de Niklas Luhman. In: Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 16, 2004, p. 126.
7. A expressão “constitutional cross-fertilization” é apresentada e comentada, com um olhar sobre as dinâmicas inerentes à Suprema Corte americana, em: SLAUGHTER, Anne-Marrie. Global Community of Courts. In: Havard International Law Journal, p. 199.
8. NEVES, MARCELO. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 119.
9. NEVES, MARCELO. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 217.
10. NEVES, Marcelo. (Não) Solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo além de colisões. In: Lua Nova. São Paulo, v. 93, 2014, p. 216.