Como é possível compreender a importância de uma herança Africana no Brasil se, em nome dos processos político-culturais da modernidade colonial que se infiltram na contemporaneidade, a África e seus frutos são desautorizados? Desse modo, é preciso verificar que todos os processos de valorização das heranças africanas chocam-se com a colonialidade, isto é, com a reafirmação da hierarquia, descrédito e desumanização de corpos racializados, bem como com a invasão bélica de seus territórios, neutralização do seu corpo transmutado em carne para ser consumida e a contumaz destruição dos seus saberes. Esses muros têm como estrutura a violência que, de modos multiarticulados, permite que as expressões culturais, intelectuais, estéticas e tecnológicas de África, em sua pluralidade, sejam desabilitadas, demonizadas e desprezadas, em nome de mitos fundadores que reforçam as lentes do mundo norte global.
A filosofia ocidental nos ensina que a ontologia pode ser designada como o modo de compreensão do que é o ser, dos seus sentidos e das suas possibilidades. Ao assumirmos a herança moderna e colonial, nos deparamos com uma ontologia que asfixia a alteridade. Nesses termos, ela se manifesta por meio de modelos que gerenciam a realidade prática e simbólica, que definem o que é humano e circunscrevem quais corpos têm garantia de proteção à vida em detrimento das carnes que podem ser corroídas em nome dos sistemas normativos que destroem toda presença posicionada à distância dos centros de poder moral, epistêmico e estético, por exemplo. É preciso frisar que esses sistemas normativos alimentam os pactos entre grupos hegemônicos que se conectam pelo interesse colonial de destruição.
Como aponta Dussel (1977), as práticas de violência coloniais exigem o silêncio do outro e, nessa direção, não permitem que esse outro seja reconhecido como sujeito enunciativo.
As práticas discriminatórias que se desdobram do projeto racista colonial se interessam pelo silenciamento como ferramenta sofisticada de dominação. O objetivo deste projeto de naturalização do silêncio é impedir que possamos reconhecer a África, sua importância e valor, inclusive na formação das nossas identidades. A colonialidade, enquanto tecnologia da destruição, desabilita intencionalmente a humanidade do outo.
Ao não se permitir ser afetado pelo outro, ao recusar seu corpo, afeto, conhecimento, e experiência e promover circuitos belicosos que transforam diuturnamente corpos em alvos, esses sistemas normativos também são, assim como a economia colonial que os alimenta, indefensáveis. (Teixeira, 2024, p.78)
A valorização das heranças africanas depende de uma mudança radical de nossas práticas e construções simbólicas. Ela nasce de uma escolha pela ruptura com os modelos hegemônicos que descrevem e organizam a realidade. Modelos comprometidos com o ocultamento da humanidade e potência de sujeitos empurrados às margens político-sociais. Essa valorização também depende de um compromisso ético contra-colonial, insubmisso e que não exige a morte, simbólica e objetiva, de sujeitos racializados — como fazem os modelos tecnopolíticos destrutivos coloniais. Da inserção irrestrita de saberes, valores e cosmovisões de mundo que corroem a hegemonia norte-global. Trata-se de um engajamento coletivo na contramão dos valores contemporâneos, herdados da modernidade colonial, de fragmentação, polarização e subordinação da diferença. O caminho para essa valorização é a ética Ubuntu, que declara: “eu sou, porque nós somos”.
Referências
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DUSSEL, Enrique D. Filosofia da Libertação na América Latina. 2ª Ed. Trad. Luiz João Gaio. São Paulo: Loyola/UNIMEP, 1977.
TEIXEIRA, Thiago. Políticas de descontinuidade: ética e subversão. Salvador: Editora Devires, 2024.