A boa-fé na LGPD e seus possíveis espaços de atuação

A boa-fé na LGPD e seus possíveis espaços de atuação

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Após a análise dos princípios da LGPD nos textos anteriores fica a questão: há ainda mais algum na lei quanto ao tratamento de dados? A resposta é positiva, levando-nos ao caput do artigo anteriormente citado. Nele se encontra a boa-fé, antes não muito usado pelos primeiros diplomas normativos brasileiros, mas que, com o passar das décadas, tornou-se mais comum nas leis e na jurisprudência, não imune a críticas.

Sua participação na história brasileira1 data do Código Comercial de 1850, passando ainda por rápidas disposições no Código Civil de 1916. Até então a boa-fé era utilizada para proteger o agente que, apesar de contrário a lei, agia sem malícia, em uma concepção subjetiva, investigando os pensamentos do sujeito. É a partir do Código de Defesa do Consumidor que a boa-fé ganha aplicação mais generalizada, ao mesmo tempo que assume aspecto mais externo, exigindo “comportamentos objetivamente adequados aos parâmetros de lealdade, honestidade e colaboração para o alcance dos fins perseguidos na relação obrigacional”.2 Hoje esse princípio é encontrado não só em legislações ligadas ao direito material, mas também ao processual, como no Código de Processo Civil de 2015.3

Assim, assume hoje papel de cláusula geral na interpretação dos contratos, onde se busca tutelar a confiança construída entre as partes, a qual “desloca a atenção do direito, que deixa de se centrar exclusivamente sobre a fonte das condutas para observar também os efeitos fáticos da sua adoção”.4

Quanto à proteção de dados, há defesa de sua aplicação às formas já conhecidas no direito civil: coerência, informação e cooperação, mas como defende Tomasevicius Filho, os princípios do art.6º “no fundo são desdobramentos dos deveres da boa-fé.”5

Uma questão, contudo, se coloca à frente: uma possível utilização da boa-fé apenas por retórica, perdendo sua definição, tal qual aconteceu na aplicação do Código de Defesa do Consumidor pelos tribunais.6 Quando da aplicação da lei consumerista, frente à necessidade de proteção do consumidor, os magistrados acabaram utilizando demasiadamente o princípio, “adquirindo ali um valor meramente confirmatório, decorativo, sem precisão de conteúdo”,7 pois já haviam dispositivos na lei capazes de alcançar a proteção do consumidor. Desta forma, trazendo à LGPD, quando dados que cumpriram seu objetivo são reutilizados, não seria necessário recorrer à responsabilidade pós-contratual, mas à violação ao princípio da finalidade. Ou na hipótese de qual melhor sistema de segurança para armazenar determinada informação, não se socorreria dos deveres anexos ao contrato, mas no princípio da segurança (art. 6º, VII) e na adoção de medidas técnicas (art. 46).

Não se sabe ao certo como se dará a aplicação da boa-fé pelo judiciário nesse caso, tampouco pela ANPD enquanto parâmetro para aplicar sanções8 , mas vale o debate frente a inúmeros negócios que se utilizam de dados para as mais variadas situações, atraindo a incidência do CDC e seu microssistema protetivo, ao mesmo tempo que um dos fundamentos da LGPD, no art.2º, inciso VI é a ” a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor”.

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André Felipe Krepke

 

Referências

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1. Sobre o histórico da boa-fé no Brasil confira-se: TOMASEVICIUS FILHO. Eduardo. O princípio da boa-fé no direito civil. São Paulo: Almedina. 2020. p. 153-163. TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, Paula Greco. Contratos, Fundamentos do Direito Civil, v.3. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p.41-42.

2. TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Obrigações, Fundamentos do Direito Civil, v.2. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 38.

3. Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé; Art. 322. O pedido deve ser certo: § 2º A interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa-fé; Art. 489. São elementos essenciais da sentença: § 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.

4. SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 88.

5. TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O princípio da boa-fé na Lei Geral de Proteção de Dados. Conjur. 9 mar 2020. Disponível em: https://bit.ly/3vjqmDz. Acesso em: 24 fev. 2022.

6. “Não há dúvida de que a noção de boa-fé objetiva, prevista pelo novo Código Civil, é a mesma que, em 1990, se pretendeu incorporar ao Código de Defesa do Consumidor – qual seja, a de uma cláusula geral de lealdade e colaboração para o alcance dos fins contratuais –, mas difere profundamente daquela versão protetiva da boa-fé que os tribunais brasileiros aplicaram e continuam aplicando às relações de consumo. De fato, a noção de boa-fé não tem ontologicamente este caráter protetivo. E em relações paritárias, como as que são tuteladas pelo Código Civil, não faz sentido atribuir uma função reequilibradora à boa-fé, pela simples razão de que, a princípio, não há, nestas relações, desequilíbrio a corrigir.” TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Os efeitos da Constituição em relação a cláusula da boa-fé no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil, in Revista da EMERJ, vol. 6, n. 23, 2003, p.143.

7. SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 118.

8. Art. 52. Os agentes de tratamento de dados, em razão das infrações cometidas às normas previstas nesta Lei, ficam sujeitos às seguintes sanções administrativas aplicáveis pela autoridade nacional: Art. 52. Os agentes de tratamento de dados, em razão das infrações cometidas às normas previstas nesta Lei, ficam sujeitos às seguintes sanções administrativas aplicáveis pela autoridade nacional: II – a boa-fé do infrator.

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