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A autodeterminação das mulheres e os paradigmas sociais e jurídicos ligados a criminalização do aborto

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Partindo de uma análise histórica, certifica-se que a defesa em favor da manutenção da criminalização do aborto se relaciona muito mais ao âmbito político, religioso, moral e social, do que com os valores jurídicos e constitucionais, visando proteger, a despeito do contexto, o direito à vida do nascituro. É notória a atuação de grupos religiosos no intuito de constitucionalizar a garantia do direito à vida desde a concepção, o que tende a dificultar a possibilidade de uma futura liberação legal da prática abortiva. (TRINDADE; RAGGI; GUERRA; GUERRA, 2020).1

Nessa mesma linha de intelecção, ponderando sobre a doutrina cristã e o posicionamento liberal, Rogério Sanches Cunha discorre no seguinte sentido:

De um lado, temos aqueles que, seguindo a doutrina cristã, pregam que tal comportamento, egoístico, fere os princípios da fé. Lutam, arduamente, contra a pecaminosa interrupção da gravidez. Do outro, os etiquetados liberais, admitem essa espécie de abortamento, levantando em seu favor argumentos vários, desde os sociológicos, passando pelos emocionais, sem esquecerem dos jurídicos (em especial, o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana). Aqui se sustenta: não sacrificar o feto é, talvez, sacrificar, num futuro próximo e iminente, duas vidas: a do próprio feto e a da sua gestante. (CUNHA, 2018, p.114).2

Há de se ressaltar que Estado Brasileiro é laico, o que implica, teoricamente, na desagregação de valores religiosos sobre os atos governamentais. Portanto, pelo princípio da laicidade, impõe-se que o poder político exercido pelo Estado esteja baseado em razões públicas que independem de convicções religiosas e/ou morais.

O direito à vida se tornou uma matéria muito discutida em todos os aspectos e preceitos que englobam o Direito Brasileiro e o posicionamento social sobre a temática. Nessa toada, há uma matriz de pensamento ou crença comum de que enquanto há vida, a vida merece proteção. Mas essa proteção não é a proteção jurídica, que se sujeita a um sistema de valores que comporta relativização, ao contrário, trata-se de uma proteção de base religiosa, que vê a vida como valor absoluto e que não admite contextualização. (AGUIAR, 2006).3 O fundamento absoluto dos direitos humanos não é apenas um equívoco, mas, frequentemente, uma forma de defender e validar posicionamentos conservadores.

Verifica-se que o direito à vida comporta diferentes gradações em função da tutela de outros valores jurídicos: de um lado, encontra-se o direito da gestante à sua liberdade corporal e privacidade, e, de outro, o direito à vida do nascituro.  (TRINDADE; RAGGI; GUERRA; GUERRA, 2020).4 Os direitos humanos nascem, renascem, morrem, modificam-se e expandem-se conforme as necessidades sociais e individuais, a depender das lutas e debates existentes nas relações sociais e de acordo com os interesses de cada parte no conflito.

Ao longo da história o domínio patriarcal colocou a mulher em uma condição de inferioridade e invisibilidade, sendo seus direitos reprodutivos constantemente ignorados. A autodeterminação das mulheres, o direito de decidir sobre o próprio corpo e o planejamento familiar são direitos relativamente recentes, pois apenas após o surgimento dos movimentos feministas e do fortalecimento da ideia de emancipação feminina que a mulher passou a ser vista como um sujeito singular, dotado de autonomia e direitos.

A noção de que as mulheres pudessem decidir sobre suas vidas em sociedade era algo impensável ainda nas primeiras décadas do século XX, estando a mulher condicionada ao exercício do papel de cuidadora do lar, mãe e esposa. (KOSHIYAMA, 2017).5 A inclusão da mulher como protagonista do direito ao aborto rompe com o sistema jurídico tradicional que invisibilizou as mulheres por décadas.

No que diz respeito a atuação do movimento feminista em busca do direito ao aborto, pondera-se que:

Quando feministas do século XIX apresentaram a reivindicação pela “maternidade voluntária”, nasceu a campanha pelo controle de natalidade. Suas proponentes foram chamadas de radicais e submetidas à mesma zombaria que recaiu sobre as primeiras defensoras do sufrágio feminino. A “maternidade voluntária” era considerada uma audácia, uma afronta e uma excentricidade por pessoas que insistiam que a esposa não tinha o direito de recusar-se a satisfazer os anseios sexuais do marido. (DAVIS, 2016, p. 197)6

A discussão central acerca do direito ao aborto se concentra no impasse entre o direito à vida do nascituro e a autonomia privada da mulher, entretanto nenhum direito é absoluto e não se pode, com base em fundamentos religiosos e morais, negar as mulheres o direito de escolha sobre serem ou não mães, ocasionando na obrigação de assumir uma maternidade indesejada.

Nessa linha, a proibição do aborto reduz a mulher a um mero instrumento de procriação, implicando na imposição de suportar a gravidez e de ter o filho, mesmo que contra sua vontade, retirando sua autonomia e escolha. É um direito da mulher decidir quando – e se – ela deve se tornar mãe, quantas vezes e em que circunstâncias.

Verifica-se que a ausência da autonomia no exercício dos direitos reprodutivos do indivíduo representa verdadeira violação à dignidade humana e a outros direitos fundamentais. Portanto, para que ocorra a efetivação de tais direitos não basta apenas o seu reconhecimento formal, se faz necessário a concretização material da autonomia reprodutiva no dia a dia. Contudo, é impossível garantir a liberdade de escolha quando o Estado e a sociedade violam direitos e garantias intervindo sistematicamente nas decisões da mulher de maneira arbitrária, discriminatória, preconceituosa e sexista.

 

Referências

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1. TRINDADE, Janaína Mota; RAGGI, Bruna Pereira do Vale Ferraz; GUERRA, Hudson Holanda; GUERRA, Kellen Margareth Peres Pamplona. Religião e a legalização do aborto. Revista Unitas, v. 8, n. 2, 2020. p. 95-113. Disponível em: https://bit.ly/3W31KJt. Acesso em: 05 ago. 2022.

2. CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte especial (arts. 121 ao 361). 1° ed. Salvador: JusPODIVM. 2018.

3. AGUIAR, Adriana. Aborto de anencéfalo: Ministério da Justiça dá parecer a favor. Consultor Jurídico, 2006. Disponível em: https://bit.ly/3VpvjEN. Acesso em: 08 ago. 2022.

4. TRINDADE, Janaína Mota; RAGGI, Bruna Pereira do Vale Ferraz; GUERRA, Hudson Holanda; GUERRA, Kellen Margareth Peres Pamplona. Religião e a legalização do aborto. Revista Unitas, v. 8, n. 2, 2020. p. 95-113. Disponível em: https://bit.ly/3ixpYNp. Acesso em: 05 ago. 2022.

5. KOSHIYAMA, Alice Mitika. A Imposição da Maternidade para as Mulheres na História e nos Meio de Comunicação. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos). Florianópolis. p. 1-10. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3gVliAs. Acesso em: 16 jul. 2022.

6. DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016. Disponível em: https://bit.ly/3F049xg. Acesso em: 28 ago. 2022.

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