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A elasticidade do nexo causal: Uma visão do fortuito interno à luz da jurisprudência do STJ (Parte III)

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Dando continuidade ao tema dos últimos dois artigos, vamos agora os conceitos de nexo de causalidade e fortuito interno que vem sendo utilizados pelo STJ nos julgamentos que vem encrudescendo as excludentes de responsabilidade dos fornecedores de produtos e serviços em demandas envolvendo o direito consumerista.

NEXO DE CAUSALIDADE

O cerne que se discute no presente artigo e que abriga o ponto mais importante desta análise é o nexo causal (requisito que liga um ato ilícito – subjetivo ou objetivo) a um dano sofrido à vítima.

Num primeiro olhar, essa análise pode parecer bastante simples, no entanto a identificação do nexo causal tem se mostrado, muitas das vezes, um fator por demais complexo, tendo em vista que, constantemente, necessita ser feita mediante uma análise de diversos e entrelaçados aspectos fáticos e da vida cotidiana e que, muitas vezes, contam com a participação de uma pluralidade de sujeitos o que, juntamente com eventuais imprecisões técnicas e variações doutrinárias, faz com que a identificação do nexo de causalidade seja um verdadeiro desafio aos que se debruçam no estudo da responsabilidade civil.

Como bem assevera Sergio Cavalieri Filho,1 o conceito de nexo causal decorre primeiramente das leis naturais, isto é, requer a constatação da aptidão de uma dada conduta para produzir, com base nas leis naturais, o resultado que se quer atribuir a alguém. Contudo – prossegue o autor –, além desse viés naturalista, a sua composição exige uma avaliação jurídica, pois o sistema normativo confere contornos e limites ao nexo de causalidade

No caso em exame, o que se verificou vou uma pluralidade de condutas relevantes (do hotel e da operadora de turismo) que, sem reciprocidade consensual entre esses agentes, convergiram para a ocorrência do mesmo dano.

Quer-se dizer com isso que as duas ações convergiram para o mesmo resultado (dano), ainda que não tenha havido um prévio acerto entre os agentes (reciprocidade consensual). Assim, neste cenário, estão incluídos os casos de concausas complementares, causas cumulativas e de causalidade alternativa.2

FORTUITO INTERNO – NÃO INTERRUPÇÃO DO NEXO CAUSAL

É consolidado o entendimento que a responsabilidade objetiva estabelecida nas relações de consumo deixa de ser aplicada uma vez interrompido o nexo causal por conta da incidência de uma circunstância independente que, por sua força, exclua o liame entra a conduta do agente e o dano sofrido pela vítima. Essas circunstâncias são chamadas de caso fortuito ou de força maior, fato exclusivo da vítima ou fato exclusivo de terceiro.

Quanto ao caso fortuito e à força maior, tendo em vista as inócuas diversas tentativas dos doutrinadores em lhes atribuir uma definição distintiva, ao que Pontes de Miranda considerou como perda de tempo,3 pode-se dizer que merecem o mesmo tratamento, aliás, como considerou também o Código Civil brasileiro, não se ocupando de diferenciá-los, atribuindo-lhes o mesmo efeito, em seu artigo 393.4

Apesar disso, como se verá na coletânea de julgados que serão mencionados no Capítulo adiante, o que vem acontecendo no Judiciário é uma “gradual relativização do poder excludente destes fatores, com sua absorção pela cadeia causal deflagrada pelo responsável”.5

O fortuito interno constitui o mais importante aspecto dessa tendência. Seu conceito dentro do sistema de proteção ao consumidor foi construído para que não se pudesse excluir a responsabilidade do prestador de serviços ou fornecedor de produtos mediante a ocorrência de fatos que, não obstante imprevisíveis e inevitáveis, sem encontrem ligados, de alguma forma, à atividade desempenhada pelo fornecedor.

A doutrina assim destaca: “Lembre-se, contudo, da distinção entre o caso fortuito interno e o caso fortuito externo, admitindo-se que apenas quando se trate da segunda hipótese (externo) existiria excludente de responsabilidade. O caso fortuito interno consistira no fato ‘inevitável e, normalmente, imprevisível que, entretanto, liga-se à própria atividade do agente. Insere-se, portanto, entre os riscos com os quais deve arcar aquele, no exercício da autonomia privada, gera situações potencialmente lesivas à sociedade’. Já o fortuito externo é aquele fato estranho à organização ou à atividade da empresa, e que por isso não tem seus riscos suportados por ela. Com relação a este, sustenta-se sua aptidão para excluir a responsabilidade objetiva.”6

Assim, essa teoria determina que apenas o fato totalmente estranho à atividade exercida pelo fornecedor tem o condão de romper o nexo causal e eximi-lo da responsabilidade objetiva que sobre ele recairia. Assim, ele (o fato externo) não pode fazer parte nem remotamente nos riscos esperados pela realização da atividade do fornecedor, não pode ser consequência de sua atividade.

Causa preocupação, no entanto, verificar que existe uma constante e forte tendência de aplicação da teoria do fortuito interno mesmo em casos em que essa internalidade é bastante duvidosa.

Tal ampliação da aplicação do fortuito interno, por raciocínio lógico, representa um recrudescimento do conceito de fortuito externo (que deve ser, de acordo com o defendido por Fernando Noronha7 completamente estranha ao pretenso agente causador e livre de sua influência/controle, eliminando completamente sua contribuição causal para o resultado) e uma brecha cada vez menor para que sejam aplicadas as excludentes de responsabilidade previstas em lei, ampliando-se, por via de consequência, a margem de danos aptos à reparação.8

No próximo e último artigo da série, serão trazidos casos análogos e a conclusão do posicionamento do STJ sobre esse tema.

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Fabiano Cardoso Zakhour

 

Referências

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1. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2012, p. 49.

2. CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 28

3. Em suas palavras: “A distinção entre força maior e caso fortuito só teria de ser feita, só seria importante, se as regras jurídicas a respeito daquela e desse fossem diferentes. Então, ter-se-ia de definir força maior e caso fortuito, conforme a comodidade da exposição. Não ocorrendo tal necessidade, é escusado estarem os juristas a atribuir significados que não tem base histórica, nem segurança em doutrina. Lamentável é que, em vez de se fixarem conceitos, se perca tempo em critério de sabor pessoal dos escritores […]” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Clementino. Tratado de Direito Privado. Tomo XXIII. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1958, p. 79).

4. Código Civil Brasileiro de 2002. art. 393: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.

5. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros de reparação à diluição dos danos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 68.

6. MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 546

7. NORONHA, Fernando. Direito das obrigações, v. 1. 2. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 626.

8. MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil por presunção de causalidade. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010, p. 134;

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