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A mentalidade policial por trás do flagrante forjado

Penal Algemado

Uma das mais evidentes perversidades dos crimes de drogas é justamente a forma como se desencadeia a produção de provas. Na grande maioria dos casos, basta a palavra do policial e a droga apreendida.

Como a palavra do policial é quase sempre a única prova no processo, é bastante comum certa manipulação do discurso policial em sede de delegacia e sua mera reprodução em juízo.

Assim, por exemplo, embora a droga tenha sido encontrada nos arredores, o policial, em depoimento, para garantir as circunstâncias favoráveis à condenação, depõe dizendo que foi encontrada com o indiciado.

Já presenciei um policial com treinamento em inteligência dizer abertamente: o advogado dá seu jeitinho no processo, mas a gente dá o nosso.

Em um processo que participei, os policiais afirmaram que a droga estava acondicionada no console central do carro no momento em que foi parado em uma blitz. Achei estranho alguém parar em uma blitz policial com drogas a plenas vistas. Em audiência, contudo, ficou evidenciado que ela estava, na verdade, no porta-luvas do carro. Esse fato foi relevante para o processo, pois o desconhecimento dos outros dois passageiros foi fundamental para suas defesas. No caso, a tentativa de indiciamento por associação para o tráfico, tese comprada pelo MP, também foi afastada.

Ocorre que, assim como a vizinhança tem boa noção de onde ficam as biqueiras e as pessoas envolvidas no tráfico e consumo de drogas, os policiais também supõem saber. De fato, muitos policiais conhecem a movimentação do tráfico e sua experiência permite-nos crer que são capazes de distinguir usuários de traficantes.

Além disso, vale dizer, há ainda aquelas pessoas que simplesmente se encaixam no perfil de criminoso que a polícia cria. Basta algum rumor inicial, amizades tidas por suspeitas, falta de trabalho, posse de um bem diferenciado, trejeitos, vestimenta, corte de cabelo e cor de pele para que o carimbo seja posto. Policiais são treinados para confiar demasiadamente em critérios pra lá de subjetivos e intuitivos sobre perfis pessoais. Dessa forma, a neutralização – via prisão ou morte – é suficiente para dar a sensação de dever cumprido, mesmo diante da falta de provas e do flagrante.

Muitas vezes também ocorre a apreensão de pequena quantidade na mão do sabido traficante e, levado à delegacia (um primeiro filtro), o delegado se recusa a lavrar um auto de prisão em flagrante por tráfico, por falta de quaisquer indícios materiais. Outras vezes, o sujeito é preso, mas em juízo (um segundo filtro) é absolvido ou tem sua conduta desclassificada para porte de drogas para uso pessoal. Outras vezes, ainda, normalmente por ser a primeira prisão, o sujeito passa alguns meses na cadeia e logo volta a traficar nas ruas, já cumprindo sua pena em regime aberto ou semiaberto. O mesmo vale para outros tipos de crime, mas é no tráfico que mais se concentra esse tipo de cenário.

Essa dinâmica irrita os policiais, que se sentem enxugando gelo. Sentem que fazem o todo o trabalho duro da segurança pública, assumindo todos os riscos atinentes à profissão, e que são literalmente embaraçados por uma burocracia judicial que simplesmente não conseguem entender.

Como resposta a essa dinâmica que desaprovam, surgem as manipulações discursivas em depoimentos e, em casos mais críticos, o flagrante forjado.

O flagrante forjado é típico do policial sujo (dirty cop), corrupto, com complexo de justiceiro, cansado de carregar todo o trabalho pesado da segurança pública nas costas. Como sua intenção é boa e tem certa ignorância acerca da importância democrática da legalidade, não vê conflito ético em descumprir a lei (leia-se cometer crimes) se o objetivo for “nobre”, ou seja, neutralizar, ainda que temporariamente, o inimigo público.

Algumas autoridades judiciais, quando ouvem falar de flagrante forjado, já torcem o nariz, fazem cara feia e tentam fazer um exercício imaginativo ingênuo (ou cínico), perguntando por que um policial forjaria um flagrante em alguém que é inocente. E aí é que está, na cabeça deles, realmente, não faz. Os flagrantes forjados não são aleatórios, mas destinados a pessoas específicas que, no imaginário punitivo, são só criminosas que ainda não foram pegas.

De todos os crimes do nosso ordenamento, o mais fácil de permitir o flagrante forjado é o tráfico de drogas.

Policiais, principalmente quando inseridos no contexto de corrupção sistêmica, lidam com quantidades consideráveis de drogas, apreendidas nas mais diversas situações, que servem de base para a gestão penal nas comunidades.

Se o policial apreende 500 gramas de maconha com um sujeito e leva à delegacia somente a metade, o traficante preso não vai dizer: tava com droga sim, mas não foi 250g… era meio quilo. Se disser, que diferença faria? A outra metade pode servir para “engordar” um tanto a mais de outras apreensões pequenas, ou ainda para pagamento de algum informante, prática não muito estranha ao trabalho da inteligência.

Em casos mais sensíveis de corrupção, em que os próprios policiais integram organizações criminosas, atuando em milícias privadas ou junto ao tráfico organizado, pode haver o flagrante forjado como instrumento de reserva de mercado ou vingança, no caso de atraso de pagamentos ou disputa territorial, aumentando o controle e poder econômico e político sobre determinada região.

Que outro crime poderia ser mais bem forjado ao Rafael Braga? Além de ser o mais fácil de manipular, a pecha de traficante o transforma em verdadeiro inimigo público e, claro, reforça os policiais na condição de heróis.

No caso do Rafael, diferentemente, o flagrante forjado faz sentido na medida em que a solidez dos indícios de sua condição de criminoso envolvia, em certa medida, a própria credibilidade da corporação. Eventual atestado judicial de ilegalidade policial ou de inocência de Rafael Braga seria interpretado como um golpe à Polícia Militar, desacreditando-a perante a opinião pública.

No contexto corporativo militar, que demanda unidade e disciplina rígida, o comprometimento à corporação está acima de qualquer coisa, muitas vezes inclusive da própria lei que deveriam fazer cumprir. Por isso, dentre outros motivos, a corregedoria da funciona tão mal, pois ela entende que o reconhecimento de ilegalidade de seus agentes atinge a corporação. O policial punido tem a sensação de abandono e de injustiça e leva em consideração todos os anos de riscos assumidos, baixos salários e o que eles entendem por falta de reconhecimento social.

Outra razão para a impunidade interna é a hierarquia intrínseca das instituições militares. Embora a punição seja de um de seus agentes, ela atinge seus superiores ainda que eles não tenham responsabilidade direta. A responsabilização do superior tem natureza próxima da objetiva e o superior hierárquico do punido pode ter seu prestígio comprometido.

Assim, os responsáveis pela punição do infrator avaliam os efeitos que essa punição poderá ter não só na corporação, mas também em seus superiores.

A punição, quando vem, é acompanhada de uma dissociação completa, no âmbito discursivo, entre o infrator e a instituição e seus superiores. Por isso, você jamais verá a polícia reconhecer que a prática de uma ilegalidade tem a ver com a dinâmica cotidiana policial, com seu treinamento ou com anuência ou vistas grossas dos superiores e colegas, ou incentivo judicial. Ao contrário, a declaração de eventual ilegalidade vem sempre acompanhada de um reforço discursivo das missões e compromissos formais da Polícia perante a legislação.

Isso monta um quadro de alargamento e afrouxamento da atividade correcional da polícia. O apoio é incondicional até o momento em que o não reconhecimento da ilegalidade pode gerar os efeitos que primeiramente se buscou evitar.

O corporativismo exige do policial ter a farda como pele principal. Em contrapartida, a corporação garante a proteção ao policial até os limites mais evidentes da ilegalidade. E se os policiais não compreendem a presunção de inocência para suspeitos e indiciados, a compreende muito bem quando se trata de um igual.

Por isso, a manipulação discursiva em juízo e até mesmo o flagrante forjado jamais são punidos, sendo algo mais encorajado do que um motivo de preocupação da instituição ou do Judiciário. A única força real contra isso é midiática, extrajudicial. Flagrante forjado só existe quando um é visto, filmado e mostrado em rede nacional. Porém, seu responsável é tido como um ovo podre em um ninho perfeito.

Houvesse comprometimento democrático, ilegalidades policiais deveriam ser encaradas sempre como problemas institucionais, a serem combatidos de dentro pra fora. Isso sim seria um compromisso real com a legalidade. A polícia não trabalha na lógica do melhoramento progressivo, com a mudança e correção paulatina das ações de seus representantes. Ao contrário, trabalha na lógica da perfeição presumida, cujo desvio – raramente reconhecido – é sempre visto como pontual e não representativo.

Para terminar, me permita fazer a ressalva de sempre, já antecipando a sensibilidade excessiva de quem usa farda. Há policiais – muitos – honestos, bem intencionados e que não fazem nem a manipulação discursiva em juízo tampouco o flagrante forjado. A esses, meus cumprimentos sinceros. Que a crítica não os atinja pessoalmente, mas ao contrário, os ajudem a compreender a realidade sem as amarras das patentes.

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Rafael de Deus Garcia

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