Este artigo tem como escopo discorrer sobre a educação como um direito para corpos não binários. O postulado da dignidade humana é um vetor significativo nesse processo. O dia nacional da visibilidade trans é celebrado em 29 de janeiro, data em que foi lançada em 2004, em Brasília, a campanha intitulada Travesti e Respeito. O mês é dedicado à visibilidade trans e é marcado por reflexões sobre: a importância da representatividade de pessoas transgêneros: a aceitação da transexualidade; a luta por acesso à saúde, educação, emprego digno e renda; o enfrentamento ao preconceito e à discriminação. O direito à educação proclamado em lei segundo o artigo 205 da CF, reza que esta é um direito subjetivo, individual e inalienável do sujeito, cabendo ao Estado se responsabilizar e, criar mecanismos para que, ele se concretize de maneira adequada.
A primazia estatal na provisão deste direito é consequência da necessidade de garantir a redução das desigualdades sociais, pois, é necessariamente a educação em direitos humanos que, possibilita ao ser-no-mundo ser visto como sujeito e não como um mero objeto.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948, delineiam-se direitos básicos que visam garantir a integridade do ser-no-mundo, e cujo preâmbulo ressalta a necessidade do respeito por outrem, bem como a garantia da liberdade, da justiça e a luta contra a opressão e a discriminação. O direito à educação, é tratado como uma garantia fundamental para o exercício de todos os direitos. O documento estabelece como prioridade, portanto, a universalização do acesso à educação e a promoção da equidade, de modo a superar todos os obstáculos que impeçam a participação de crianças, jovens e adultos no processo educativo. Para isso, preconceitos e estereótipos de qualquer natureza devem ser eliminados da educação, bem como de todas as demais esferas da sociedade, em conformidade com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, de 1990. (UNESCO, 1990).
Na busca incessante de garantir às pessoas trans o acesso ao sistema educacional, a resolução nº 12/2015 do CNCD LGBT estabelece parâmetros para o acesso e permanência nas instituições de ensino, formulando orientações para o reconhecimento institucional das identidades de gênero. Integrar esses corpos no ensino regular é um dos desafios que o Estado e as instituições de ensino enfrentam, uma vez que, o paradigma do direito à educação desses sujeitos enquanto direito social vem alcançando um espaço significativo no cenário nacional.
Educar em direitos humanos no Brasil significa pensá-los a partir de um olhar que questione os alicerces da cultura nacional, em um movimento de reconstrução (ou nova construção) de bases epistemológicas que dão sustentação às concepções de educação e de direitos, desmitificando sua natureza violenta e excludente instituída pelo paradigma dominante de que determinados sujeitos têm direito a permanecer na escola e outros devem se retirar. Maria Victória Benevides (2012) dirá que educar em direitos humanos requer uma mudança cultural, que possa realmente abalar o que está enraizado nas mentalidades, muitas vezes marcadas por preconceitos, por discriminação, pela não aceitação dos direitos de todos, pela não aceitação dos “diferentes”. Trata-se, portanto, de uma mudança cultural especificamente importante para o contexto brasileiro, cuja pluralidade/diversidade educacional sedimentou suas estruturas de saber e poder sobre a negação do outro, numa prática de violência epistemológica que se serviu da escravidão de negros e indígenas, e que rejeita os menos favorecidos economicamente e os corpos não binários, violando todos os princípios de dignidade da pessoa. Os saberes construídos em suas lutas emergem de uma práxis-político-pedagógica que não proclama um lugar universal, desincorporado e neutro. Pelo contrário, reconhecem que as transformações corporais têm estreitas relações com as que as constituem. O caminho percorrido por esses sujeitos no ambiente escolar é marcado pela invisibilidade, pelo não reconhecimento do direito de frequentarem esse espaço. Maria Clara Passos1 (2022) é um exemplo de alguém, que buscou, através da educação, ultrapassar a exclusão imposta a seus corpos e os estigmas a eles associados (como o da prostituição e o de sua inserção nos movimentos LGBTQIA+). Ela relata que, desde cedo, o âmbito educacional deixou, o mais explícito possível, uma dificuldade em compreender as particularidades da vida de pessoas trans. Além disso, as várias reivindicações pleiteadas para ser identificada pelo nome social e o reconhecimento de sua identidade de gênero não foram atendidas,2 o que a levou a constatar sua exclusão ou invisibilidade. Ela conta ainda que, durante sua permanência na escola, as violências por conta da sua identidade sempre trouxeram retaliações em salas, corredores e banheiros. Apesar da insistência social e institucional em não reconhecer sua existência, Maria Clara insistia em existir.
A violência estabelece-se nas sociedades por caminhos diversos e oblíquos, revelando injustas relações de poder entre os sujeitos e interferindo diretamente nas constantes (re)formulações identitárias. Quando institucionalizada, pode não ser percebida. A violência sofrida pelos corpos trans demonstra que a escola, para esses sujeitos, não simboliza um espaço de acolhimento, educação e aprendizagem; mas de opressão, dor e rejeição. Infelizmente é comum que tais contrangimentos impulsionem esses corpos a abandonarem a escola, e irem em busca da prostituição.
Maria Clara Araújo dos Passos relata que sempre foi excluída3 no ambiente escolar e que os olhares de reprovação sempre a acompanharam. Uma pergunta excludente insistia em não se calar: o que ela faz aqui?”. Para as pessoas que diariamente excluem o diferente, a figura desses sujeitos incomoda, pois, sob a ótica da exclusão, eles deveriam estar nas esquinas das ruas e não nos corredores das escolas. No ambiente escolar, as diferenças começam a ser cruelmente apontadas, tornando a escola um ambiente hostil, promotor de violências. Isso ocorre, no geral, devido ao despreparo e desconhecimento da sociedade sobre corpos trans. Uma vez mais, a ignorância reina.
Além da exclusão e da insistência da sociedade em atribuir aos corpos trans a condição de uma existência sub-humana,4 segundo Maria Clara Araújo dos Passos, diversos outros aspectos vêm piorando: a precarização das condições de trabalho, os índices de mortalidade e depressão, a violência contra seus corpos, a ausência de cumprimento regular pelo Estado da legislação que reconhece as diversas formatações de identidade e a falha na criação de políticas públicas que reconheçam a realidade transgênero e busquem medidas adequadas para garantir sua condição de sujeitos de direitos.
Mesmo assim, Maria Clara Araújo dos Passos continuou rompendo as barreiras da exclusão e foi a primeira pessoa da sua família a ser aprovada5 em uma universidade. Sua aprovação pode ser entendida como uma forma de resistência em uma sociedade que, lhe proporcionou uma existência sub-humana.
A aprovação e permanência de corpos trans nas universidades indicam que as experiências de inclusão podem carregar com elas o fundamento da libertação coletiva que perpassa os desafios financeiros impostos à permanência desses sujeitos nesses espaços. A “ciscolonialidade do saber” permeia o que é escrito sobre corpos trans, produzindo inexistências, e silenciamentos, mas, as histórias ocultadas e invisíveis são desveladas por coletivos como o Movimento de Travestis e o Mulheres Transexuais, no Brasil,6. Retirar esses corpos da invisibilidade é abandonar a concepção de que as pessoas somente serão ouvidas/lidas se forem binárias, é retirar esses corpos da posição desfavorável e inferior com que sempre foram identificados na cultura brasileira. (PASSOS, 2022).
Fronteiras parecem ser criadas com o objetivo de distanciar, separar cientifica, cultural e historicamente o conhecimento. Por intermédio da educação reconhece-se que há certo distanciamento entre a educação para as pessoas binárias e as não binárias. Portanto, a perspectiva de rompimento, por intermédio de uma forma diferenciada de educação — na qual não há separação entre corpos trans e corpos binários — configurar um tipo de pensamento válido e congruente com a perspectiva de ensinar a crianças, jovens e adultos, independentemente do corpo, os conteúdos sobre direitos humanos.
Notas
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1. Ela se afirma como Maria Clara desde os 16 anos. É bacharel em pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestranda em educação (Sociologia da educação) pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Estudos Afro-Latinos Americanos e Caribenhos, pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (CLACSO)/Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO). Atualmente trabalha com temas como intersecções entre (identidade de) gênero e raça, currículos decoloniais, movimentos progressistas na América Latina, transfeminismos e movimentos transnacionais de extrema direita e suas agendas educacionais antigênero. (PASSOS, 2022).
2. Se, no passado, a professora tirou a boneca da sua mão, no presente, o Reitor afirmava não ter demandas para usar seu nome social. (PASSOS, 2022).
3. Os banheiros femininos estão com as portas fechadas, o nome das cadernetas não pode ser alterado e os olhares de escárnio estão por toda parte, do corredor à sala, do banheiro à secretaria. (PASSOS, 2022).
4. Ao questionar a existência de pessoas trans em vários locais de trabalho, e não somente embaixo do poste, ela demonstra essa existência. Segundo ela, essa exclusão se apresenta cotidianamente. Por exemplo: quantos corpos trans estão na sala de aula e quando é que esses corpos não são excluídos? Quais são os postos de trabalho que esses corpos ocupam? (PASSOS, 2022).
5. A aprovação é entendida como uma conquista, um rompimento da barreira de exclusão. (PASSOS, 2022).
6. É um dos movimentos sociais que, ao longo de sua trajetória, construiu saberes através de uma práxis político-pedagógica. (PASSOS, 2022).
Referências
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BENEVIDES, MARIA VITÓRIA. Educação em direitos humanos: de que se trata? São Paulo: MEC, 18 out. 2012.
BRASIL (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Resoluçaõ nº12/2015. Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. site. Acesso em 10.jan.2025.
PASSOS, Maria Clara dos. Pedagogias das travestilidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
ONU. Declaração Universal Sobre Educação para todos. Confereência de Jontien. Tailândia, 1990.
ONU. Declaração Universal dos Direitos do Homem. Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948.