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Caos Urbano, Esforço Cotidiano

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De acordo com dados divulgados pelo Ministério de Desenvolvimento Regional, cerca de 50% dos imóveis urbanos do Brasil estão em situação irregular. Esta porcentagem corresponde a uma estimativa de 30 milhões de unidades imobiliárias sem, no mínimo, seu devido registro cartorário.

Tais constatações já nos dão uma base para compreender a dimensão da situação fundiária das nossas cidades. E a falta de um documento de justo título de posse ou o respectivo registro imobiliário atualizado, são apenas a ponta do iceberg de toda essa irregularidade.

Como já abordamos anteriormente, nossas análises atuais devem sempre considerar os aspectos culturais e históricos da sociedade e do território alvo. Desta forma, já é entendimento consolidado que o alto índice de crescimento das cidades brasileiras, sobretudo da região Sudeste, disparou a partir da revolução industrial e do começo da concentração da produção de conhecimento e cultura dentro dos perímetros urbanos, que, consequentemente, passaram a ser vistos como esperança de ascensão social.

Motivadas pela grande demanda de mão de obra que os avanços industriais estavam proporcionando e também pela necessidade de realocação empregatícia, muitas famílias que antes somavam ao esforço de trabalho da produção agrícola do país, se viram obrigadas a trocar sua realidade rural pela convivência agitada das cidades emergentes.

Contudo, esta troca de espaços não assegurou as condições de infraestrutura urbana consideradas básicas para tais famílias. Impulsionadas pelo desenvolvimento industrial e aliadas ao que Maricato1 caracteriza como as práticas de embelezamento paisagístico e o início das bases legais para o mercado capitalista imobiliário, as primeiras ações modernas de políticas urbanas aplicadas nas jovens metrópoles excluíam desta equação a parcela pobre da população. Empurrando-as para as margens e franjas do perímetro urbano principal da cidade.

Esses fatos, somados também à histórica marginalização da população negra e índigena, podem ser caracterizados como a base para a formação das favelas e demais núcleos urbanos irregulares de hoje.

Atenta a esta realidade, a Constituição Federal de 1988 foi feliz ao encampar um capítulo exclusivo para as normas de Políticas Urbanas. E a partir deste, em 2001, foi promulgada a Lei Federal nº 10.257, que ficou conhecida como Estatuto da Cidade. Possuindo como finalidade principal a regulamentação dos artigos 182 e 183 da CRFB/1988 e também o estabelecimento de diretrizes gerais da política urbana brasileira.

Dentre os vários instrumentos previstos pela legislação, hoje destacamos o chamado Plano Diretor. A legislação oferece um grande destaque para tal ferramenta e a qualifica como o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Prevendo, inclusive os vários casos em que o desenvolvimento do mesmo é obrigatório para o ente municipal.2

Em um pequeno resumo, podemos qualificar o Plano Diretor como uma síntese dos problemas urbanos existentes naquela área, a apresentação de suas pretensas soluções e os meios instrumentais de execução delas.

Inobstante tais considerações, devemos levar em conta que o Plano Diretor surgiu a partir da necessidade da mitigação e readequação das diversas irregularidades existentes nos espaços e na atividade urbanística dos municípios, mas este reflete apenas um dos aspectos do espaço urbano. Pelo raciocínio de Pereira, Milano e Gorsdorf3 o espaço urbano é composto por múltiplas realidades e conflitos. Realidades essas que representam o espaço urbano como espaço físico/material, como sua representação concebida e planejada e como o espaço que é efetivamente vivido e encontrado no dia-a-dia das relações sociais e naturais da cidade.

A partir desta linha, podemos encaixar o Plano Diretor como integrante deste espaço pré-concebido da realidade urbana. Contudo, somente sua existência e fria aplicação não se mostram suficientes diante dos conflitos urbanísticos. O mesmo precisa estar integrado com a situação fática na qual está inserido, levando em conta a heteronomia da cidade e dos vários grupos que a configuram. Sua elaboração e posteriores alterações devem contar com grande participação de todos os setores da sociedade municipal, evitando a supremacia de alguns interesses sobre outros e garantindo a representação plural de todos os segmentos sociais. Senão, do contrário, a aplicação prática desta importante ferramenta da política urbana acaba por perpetuar ainda mais as desigualdades históricas que moldam ainda hoje nossas cidades.

Complementando os dados iniciais divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, Chico Science4 nos informa que , “A cidade não para, a cidade só cresce / O de cima sobe e o de baixo desce” ou seja, que o caos urbano ainda é muito presente na sociedade e diante disso, a instrumentalização das políticas urbanas deve se dedicar cotidianamente em compreender as dinâmicas e todas as realidades urbanas que formam as cidades para garantir um espaço  mais justo e igualitário para todos.

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Sthenio Paulo Freitas Silva

 

Referências

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1. MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana,  1ª ed – Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 2001.

2. vide artigo 41 e incisos da Lei nº 10.257/2001.

3. PEREIRA, Alvaro; MILANO, Giovanna Bonilha; GORSDORF, Leandro Franklin. O Direito Urbanístico vai à cidade: por uma leitura jurídica inserida na produção conflitiva do espaço urbano. In: José Geraldo de Sousa Júnior [et al.] (org.). O Direito Achado na Rua: introdução crítica ao Direito Urbanístico. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2019, 496 p.

4. CHICO SCIENCE. A Cidade. Brasil Gravadora: Sony Music Entertainment, 1994. Suporte (4:47min).

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