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Considerações acerca da descriminalização do aborto: liberdade e autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos

A Corte Constitucional da Colômbia, mais alto tribunal do país, em 21 de fevereiro de 2022 descriminalizou o aborto até a 24º semana de gestação. Trata-se de uma conquista histórica para a luta feminista num país em que, a cada ano, cerca de 400 mulheres eram condenadas a penas de 16 a 54 meses de prisão por interromperem a gravidez.1

No país o aborto só era permitido em casos de estupro ou incesto, malformação fetal que inviabilizasse sua vida, ou quando a continuação da gravidez constituísse um perigo à vida ou à saúde da mulher, incluindo a saúde mental. Como se considera que obrigar uma mulher a levar uma gestação até o fim contra sua vontade é impor sofrimento psicológico e risco para sua saúde mental, mesmo antes da recente decisão já se podia realizar o procedimento em situações que não são permitidas no Brasil.2

Por cinco votos a favor e quatro contra, o aborto foi retirado da lista de delitos do Código Penal colombiano, assim as mulheres colombianas poderão decidir pela a interrupção da gravidez por qualquer motivo até o sexto mês de gestação, sem serem punidas por isso.3

A decisão faz da Colômbia o sexto país da América Latina a flexibilizar o acesso à interrupção da gravidez, que é permitida na Argentina, no Uruguai, em Cuba, na Guiana e no México, cuja legislação é regionalizada.

O movimento “Causa Justa”, um dos responsáveis pela demanda, afirma que a medida proporciona a redução de mortes por procedimentos clandestinos e uma economia do dinheiro do sistema de saúde subfinanciado, além do fim de processos judiciais caros e a garantia da autonomia corporal das mulheres.4

O movimento buscava que “nenhuma mulher vá para a cadeia por decidir sobre seu corpo; e que os profissionais de saúde possam exercer sua profissão sem criminalização ou estigma”5

Apesar de no Brasil ser uma conduta criminalizada sempre há alguém, que conhece alguém que já realizou um aborto, seja por meio de clinicas clandestinas ou através do uso de medicamentos abortivos. Certo é, sendo crime ou não, mulheres brasileiras abortam.

Segundo a Pesquisa Nacional sobre Aborto,6 feita pela última vez em 2016, pode-se concluir que no Brasil aos 39 anos de idade uma em cada 5 mulheres já fez ao menos um aborto, somente no ano de 2015 estima-se que foram realizados aproximadamente 503mil procedimentos ilegais. A pesquisa ainda indica que 67% das mulheres precisaram ser internadas para finalizar o aborto. O Ministério da Saúde afirma que o aborto é a 4ª causa de mortalidade materna no país, estimam-se que 200 mulheres morrem por ano graças a abortos inseguros, e diversas pesquisas apontam que esse número pode estar subnotificado.7

Buscando realizar o procedimento de maneira segura, muitas brasileiras viajam para realizar o aborto em países onde ele é legalizado, sendo um dos principais destinos a Colômbia. O grupo “Milhas pela Vida das Mulheres”, criado pela diretora e roteirista brasileira Juliana Reis, auxilia mulheres nesse processo, prestando informações sobre local, documentos e procedimentos, e até mesmo ajudando financeiramente mulheres de baixa renda.8

A temática sobre o direito ao aborto é tão vasta e densa que por vezes aspectos importantes ficam inexplorados, como as desigualdades no direito ao aborto, em um país onde mulheres ricas interrompem a gravidez com segurança, enquanto as periféricas são marginalizada e acabam por fazer uso dos mais diversos recursos para realizar o aborto.

Necessário destacar que as mulheres que viajam para fazer abortos em países onde é legalizado não podem ser processadas criminalmente no Brasil, isso porque o Código Penal condiciona a punição de um brasileiro por crime cometido no exterior ao fato de o crime também ser punível no país em que foi praticado. Se o aborto é realizado em um país que a conduta é legalizada, em razão da territorialidade penal não há configuração de crime no Brasil.

No Brasil o tema é controverso, o Código Penal de 1940 estabelece que aborto é crime exceto nas hipóteses de risco à vida e estupro, a possibilidade de aborto em caso de anencefalia surgiu com a decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012.

Já foram feitas diversas tentativas de modificar a legislação nos dois sentidos. Por exemplo, um projeto de lei de 1991 para descriminalizar o aborto em mais casos foi arquivado em 2008. Outro projeto já arquivado, o estatuto do nascituro, visava proibir o aborto em todos os casos e tornar as penas mais rigorosas, no entanto há outro projeto semelhante em tramitação.9

Embora existam muitos grupos que peçam a descriminalização, também existe forte pressão contrária, vinda principalmente de grupos religiosos, que têm forte representação na Câmara dos Deputados, o que torna improvável que uma eventual descriminalização venha pelo poder Legislativo.

Atualmente a ADPF 442 proposta pelo PSOL em 2017, pretende a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação, mas não há previsão para seu julgamento perante o STF.

Entre as mais diversas e variadas reivindicações e lutas dos feminismos, a descriminalização do aborto e o respectivo acesso ao serviço público de saúde são emblemáticos. Pode-se verificar que a criminalização do aborto não impede sua prática, mas na verdade cria obstáculos, gerando riscos à vida das mulheres, à sua integridade física e psicológica. Tratar sobre aborto e sua descriminalização é, acima de tudo, uma forma de garantir a plena liberdade e autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos e projetos de vida, características fundamentais da cidadania plena.

Conforme aponta a “Pesquisa Nacional de Aborto 2016”, a criminalização não atende à finalidade declarada na norma:

Por um lado não é capaz de diminuir o número de abortos e, por outro, impede que as mulheres busquem o acompanhamento e a informação de saúde necessários para que seja realizado de forma segura ou para planejar sua vida reprodutiva a fim de evitar um segundo evento desse tipo10 

Ao contrário dos estereótipos, a mulher que aborta é uma mulher comum. O aborto é frequente na juventude, mas também ocorre com muita frequência entre jovens adultas, mulheres casadas, solteiras, mães, mulheres mais velhas, enfim, mulheres. Mulheres que já são ou se tornarão mães, esposas e trabalhadoras em todas as regiões do Brasil, ocupando todas as classes sociais, todos os grupos raciais, todos os níveis educacionais e de todos os locais do país.

O problema de saúde pública chama a atenção não só por sua significância, mas também por sua persistência. As políticas brasileiras, inclusive as de saúde, tratam o aborto sob um prisma religioso e moral, nessa preceptiva a resposta fundamentada na criminalização e repressão da conduta tem se mostrado não apenas inefetiva, mas também nociva.

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Sarah Batista Santos Pereira

 

Referências

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1. ANDES, Sindicato Nacional. Colômbia descriminaliza aborto até a 24º semana de gestação. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3Mcab0N. Acesso em: 28 fev. 2022.

2. MORI, Letícia. As brasileiras que decidiram viajar à Colômbia para conseguir abortar legalmente. BBC News Brasil. 2020. Disponível em: https://bbc.in/3Hridz7. Acesso em: 28 fev. 2022.

3. ANDES, Sindicato Nacional. Colômbia descriminaliza aborto até a 24º semana de gestação. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3Mcab0N. Acesso em: 28 fev. 2022.

4. DECCACHE, Matheus. Colômbia descriminaliza aborto até a 24ª semana de gravidez. VEJA. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3IB5tr2. Acesso em: 28 fev. 2022.

5. GONZALEZ, Luisa. Colômbia descriminaliza aborto até a 24ª semana de gestação. CNN Brasil. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3huJ56N. Acesso em: 28 fev. 2022.

6. DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciênc. Saúde Colet. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3CbaW5K. Acesso em: 28 fev. 2022.

7. CARMO, Samanta do. Levantamento aponta subnotificação de mortes em decorrência de aborto inseguro no Brasil. Agência Brasil. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3hxDHje. Acesso em: 28 fev. 2022.

8. MORI, Letícia. As brasileiras que decidiram viajar à Colômbia para conseguir abortar legalmente. BBC News Brasil. 2020. Disponível em: https://bbc.in/3Hridz7. Acesso em: 28 fev. 2022.

9. MORI, Letícia. As brasileiras que decidiram viajar à Colômbia para conseguir abortar legalmente. BBC News Brasil. 2020. Disponível em: https://bbc.in/3Hridz7. Acesso em: 28 fev. 2022.

10. DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciênc. Saúde Colet. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3CbaW5K. Acesso em: 28 fev. 2022.

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