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Dandara, uma travesti a quem sempre farei reverência, e o provimento 73/2018: este teria sido capaz de mantê-la viva?

Dandara

A edição do Provimento 73/2018 do CNJ estabeleceu o procedimento extrajudicial de retificação de nome e gênero de pessoas transgêneras, diretamente em cartório. As recentes decisões do poder judiciário, que acabaram culminando na edição do referido Provimento, além de decorrem de forte apelo por parte de coletivos civis, entidades do terceiros setor e do grandioso número de demandas individuais pleiteando a alteração do assento de nascimento, independentemente da realização de cirurgias, processos de hormonização e da apresentação de laudos psicológicos e psiquiátricos, são reflexos de posições internacionais, como a opinião consultiva nº 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com fundamentos para que os processos migrassem da esfera do Poder Judiciário para os cartórios extrajudiciais.

A alteração do prenome e do gênero definidos quando do nascimento, em documentos de identificação civil, para além de servirem como um meio de legitimidade perante o poder público e o Estado, há muito tempo é buscada e pleiteada pela população de pessoas transgêneras, como estratégia de sobrevivência em meio a uma sociedade que rechaça quem ousa se insurgir contra a norma binária do sistema sexo-gênero. Afinal, as vidas descartadas, que sofrem a expropriação de sua identidade por meio de um poder conferido ao Estado, acabam por materializar uma das manifestações da soberania inerente aos Estados-nações da atual modernidade transnacional neoliberal, que é “[…] a capacidade de suspender os direitos de indivíduos ou grupos ou de excluí-los da comunidade política. Se alguém é excluído, passa a integrar um espaço ou condição de vida nua, e a bios da pessoa não está mais vinculada a seu status político.”1  E, aqui, reside um paradoxo de que, “[…]quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual.”2

Os destituídos ou não incluídos em processos de identificação dentro do contexto científico binário (homem/mulher; masculino/feminino; macho/fêmea), portanto, têm a vida descartada pelo aparato jurídico estatal, em razão de poderes que sobre eles são exercidos, em que pese se encontrem, juridicamente, destituídos de ampla, igualitária e equitativa cidadania ou direito. Assim sendo, aqueles poderes operam de maneira discursiva e fundam a subjetividade e a própria materialidade desse “outro”.

Em 15 de fevereiro de 2.017, no bairro Bom Jardim, na cidade de Fortaleza, ocorreu, em uma rua residencial, às 17h00, em plena luz do dia, o assassinato cruel e espetacularizado da travesti Dandara Kettley,3 ou Dandara dos Santos, que tinha 42 anos. A filmagem que ganhou o mundo pelas redes sociais4 e que foi feita pelos próprios agressores, mostra um grupo de 12 homens desferindo-lhe tapas, socos, chutes, pauladas, pedradas, ofensas e, após carregar o corpo desfalecido da vítima em um carrinho-de-mão e jogá-lo em meio à rua, assassinaram-na com dois tiros à queima roupa.

Ao contrário do que nos faz crer assistindo aos vídeos da sua execução, parto da hipótese de que Dandara não foi morta ali, como resultado daquele ato desumano e degradante que foi filmado, compartilhado em redes sociais e, por muitas pessoas, motivo de aplausos; ela já estava morta e esquecida há muito tempo, por ser entendida, pela sociedade na qual se encontrava inserida, como uma marginal desviante que executava o seu papel social de maneira discrepante e imprópria. Quem sabe, Dandara sequer chegou a nascer.

No diário oficial sobre Crimes Violentos e Letais Intencionais (CVLI) da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará, o seu nome social não foi respeitado; ou seja, para o Sistema Público, Dandara Kettley ou Dandara dos Santos, não foi executada, porque sequer existia. Para a contabilização, em números oficiais, do seu assassinato, ou ignora-se a utilização do seu nome de registro na referida lista oficial, ou ignora-se a sua execução em plena luz do dia, cometida e filmada por, pelo menos, doze homens, em um bairro residencial da capital cearense.

Qualquer opção que seja feita, reflete algo que parece ser uma hipótese socialmente muito viável: que há indivíduos que parecem ter nascido mortos ou fadados, desde o nascimento, ao esquecimento e à renegação social, até que venham a morrer e permitir com que a sociedade percorra o seu caminho comum, com base em uma moral de autocontrole e normalizante.

Dandara foi morta sob gritos de: “Ê veado fei!”; “A mundiça ainda tá de calcinha!”; “Vão matar o veado!”. Depois de levar pontapés na cabeça e ser espancada por um enorme pedaço de madeira, ela foi levada por um carrinho-de-mão como se fosse um saco de lixo para sua morte, completamente ensanguentada.5

Dandara não gozou do direito de retificar seu prenome e gênero em sua certidão de nascimento; ela não teve tempo, pois, antes disso, arrancaram-lhe o direito à vida. Aliás, talvez, para ela, isso sequer fosse almejado ou sonhado, por parecer, quem sabe, impossível; não sei. Inclusive, parto da hipótese de que a estrutura em que se encontra inserido o Provimento 73/2018 do CNJ é formatada sob as bases da cisgeneridade, da heterossexualidade compulsória e de mecanismos de poder generificados; que acabou por ser inteiramente renegada por Dandara. Sua transgeneridade superou os obstáculos impostos pela primeira; sua travestilidade, aliada aos relacionamentos que teve e tinha com outros homens cisgênero, desafiou todos os determinismos envoltos à heterossexualidade compulsória; e, por fim, sua transformação em mulher travesti, seja ela corporal, gestual, social ou comportamental, fissurou todos os mecanismos que engendram as relações binárias.

Tanto Dandara quanto tantas outras mulheres trans, foram e são, portanto, vítimas de uma busca pela redução de contrastes existentes entre as sociedades e os indivíduos, o que é muito característico da atual sociedade, visto que exerciam e exercem papéis espetacularmente discrepantes do ideal regulatório moderno; é como se fossem indivíduas inseridas em categorias-padrão de pessoas que são tratadas como se não existissem, e que, se mostrarem a sua existência, devem ser extirpadas.6

Homens cis, mulheres cis, homens trans, mulheres trans, não-bináries, não-binárias, não-binários, paulatinamente, vem sendo abarcados, abarcadas e abarcades pela força performativa do Direito. Um salve às conquistas, por óbvio. Mas, a mim, enquanto um ser que vive em constante incômodo, permanece a pergunta: e Dandara e outras travestis, como seriam identificadas e abarcadas pelo Direito?

Questiono-me, enquanto pesquisador e amante do tema, se os saberes localizados7 e as vozes das mulheres e pessoas trans ecoam nos artigos que compõem o Provimento 73/2108. Eu não sei. Por isso, comprometo-me a buscar um caminho que me leve à alguma conclusão ou à novas perguntas e inquietações; confesso que esta última opção me parece a mais palatável.

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Fábio Augusto de Souza

 

Referências

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1. BUTLER, Judoth; SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Quem canta o estado-nação? Língua. política, pertencimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2018. p. 42.

2. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2020, p. 27.

3. Assim como para FERNANDES e COSTA (2019, p.45), “a princípio, Dandara seria tratada aqui como transexual, já que o termo travesti foi designado a ela pela mídia após sua morte, não se sabendo, portanto, se Dandara se identificava como tal. Entretanto, o construtivo histórico de Dandara e a forma como foi morta, vítima de um crime de ódio por conta de sua orientação sexual e identidade gênero, traz como característica o significado do que é ser travesti no Brasil. Portanto, por questão de representatividade, Dandara será tratada neste artigo como tal.” (FERNANDES, Raphael Rocha; COSTA, Verônica Soares da. Memórias póstumas de uma travesti: o debate midiático do caso Dandara e a (in)visibilidade da violência contra travestis colocada em evidência através de um post da página Quebrando o Tabu. Revista Científica de Comunicação Social do Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH) e-Com, Belo Horizonte, v. 12, nº 1, 1º semestre de 2019. Disponível em: https://bit.ly/3UQvatL. Acesso em 17 nov. 2022.)

4. As cenas são fortes, impactantes e eu não aconselho a assisti-las, mas elas estão disponíveis neste endereço eletrônico, como parte de uma reportagem realizada pelo site Bol Vídeos: https://bit.ly/3XcX6tL. Acesso em 25 ago. 2022.

5. ANDRADE, Daniela. Dandara foi espancada até a morte em plena luz do dia e seus assassinos riam. Disponível em: https://bit.ly/3i0ChSd. Acesso em 03 dez. 2020.

6. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Trad. Maria Célia Santos Raposo. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1985.

7. HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu ̧ n. 5, p.07-41, 1995.

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