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Direito à privacidade no processo penal

estátua justiça

As novas tecnologias nos ajudam a ver o tanto que público e privado são categorias desgastadas. É claro que o olhar crítico das feministas e do movimento negro já há muito questionam a imaginária barreira, da utopia liberal, que divide o público do privado. Para além do pensamento crítico, porém, as novas tecnologias, por si sós, são capazes de transformar esse ilusório muro em geleia.

Bobbio dizia que ser consensual a existência de uma relação inversamente proporcional entre as esferas do público e do privado.1 Quanto maior uma esfera, menor a outra. Será que essa reflexão ainda vale hoje? Será que o direito de estar só, ou o direito à solitude, não tem se transformado em um dever? Não um dever jurídico, mas um dever ao exercício da solitude como elemento básico do nosso bem estar, da nossa saúde mental e até física. Mas como esse exercício à solitude é possível hoje?

O lar há muito tempo já não é o local do isolamento, da reclusão individual ou familiar. O mundo público e político se virtualiza, invade os lares de tal modo que, em casa, recorremos quase que inflexivelmente aos mecanismos de conexão com o mundo. Até mesmo uma atividade simples como assistir a um filme está relacionada à produção de dados. A casa é mais um espaço de conexão.

William Mitchell escreveu em 1995, sobre a cidade do futuro. Futuro dele, nosso hoje.

“Esta será uma cidade sem raízes em qualquer ponto definido na superfície da terra, moldada por restrições de conectividade e banda larga em vez de acessibilidade e valores reais, em grande parte assíncrona em sua operação, e habitada por indivíduos desencarnados e fragmentados que existem como coleções de avatares e perfis. Seus locais serão construídos virtualmente por software, em vez de fisicamente por pedras e vigas, e serão conectados por lincagens lógicas em vez de portas, passagens e ruas”.2

O cenário é tão surreal que parece ser mais provável que as empresas e o Estado não usem os dados pessoais produzidos nas redes do que deixemos de produzi-los espontaneamente. É claro que produzimos essa quantia absurda de dados pessoais sobre uma espontaneidade bem da duvidosa. Ela decorre não só de um consumismo digital, mas também de uma vida política e uma vida comunitária empobrecidas. Além disso, laços construídos com o trabalho e com as pessoas que nele convivemos também padecem da mesma condição lusco-fusco.

Reflexões dessa natureza sobre a privacidade na vida hodierna são bem mais desenvolvidas no campo do direito civil. No direito do consumidor, em especial, questões sobre autonomia individual e liberdade de pensamento têm se tornado centrais.

No direito penal, por seu turno, o direito à privacidade dissipa-se no seu conteúdo em tipos penais diferentes. Há desde o crime clássico da violação de domicílio aos mais recentes, como o da invasão de dispositivo informático, o crime de stalking (perseguição) e o do revenge porn (pornografia de vingança). No campo penal, o direito à privacidade raramente ganha a profundidade que merece além da menção genérica da doutrina como bem jurídico a ser protegido. Seus (novos) significados mais profundos podem tranquilamente escapar até sobre quem mais se dedica ao estudo de fundamentos.

No processo penal, por seu turno, não é raro ver a associação do direito à privacidade a algo negativo. Isso se dá principalmente no campo mais punitivista, pois ele pode realmente servir de freio ou de limitação aos poderes investigatórios policiais, por exemplo. Até reconhecem sua importância, mas com alguma limitação e sempre com um olho nele e o outro em algum princípio mais genérico para sopesar na ponderação de princípios, o que costuma ser seguido da adoção de algum critério pouco convincente supostamente embasado em um pensador estrangeiro.

No campo civil, parece consensual que o direito à privacidade já ultrapassou a etapa patrimonialista, isto é, de que é por meio da propriedade privada que esse direito deve ser exercido. Hoje, parece consensual que o direito à privacidade está mais próximo do âmbito pessoal da personalidade do que do âmbito patrimonial. Daí a fácil e evidente ligação do direito à privacidade com o tratamento de dados pessoais.

Mas e no direito processual penal?

São múltiplas as funções do processo penal (isso vale um texto à parte). Aqui há divisões de origem ideológica e epistemológica. Porém, não há quem tenha coragem de dizer que o processo penal não se preste à proteção instrumental de direitos fundamentais. A pergunta que eu coloco é: o processo penal possui efetiva capacidade instrumental para cumprir a nobre missão de proteger o direito à privacidade?

Muito do que embasa a instrumentalidade processual penal quanto ao direito à privacidade está inscrita no artigo 5º da Constituição Federal, especificamente nos incisos X, XI e XII. Neste ano de 2022, ainda, foi adicionado o inciso LXXIX, que passa a proteger dados pessoais.

Contudo, esse quadro normativo-constitucional tem problemas. Primeiro porque, salvo o novo inciso, os demais foram pensados em um mundo analógico para problemas e situações ainda analógicas. Segundo porque, em matéria processual penal, um princípio genericamente disposto, tal como feito no inciso X (que defende a vida privada e a intimidade) e agora o novo LXXIX, costumam ser facilmente ignorados.

A linguagem processual que permite de fato uma instrumentalização protetiva de um direito fundamental é aquela específica, reguladora de fato, que impõe condições e sansões claras, explícitas e positivadas. Do contrário, o drible é certeiro. Esse tipo de linguagem nós temos com a interceptação telefônica, por exemplo. Ele falta, porém, na questão do acesso ao conteúdo de celulares. Ficou a cargo dos tribunais superiores, por exemplo, dizer que acesso de policiais a celulares depende de autorização judicial. A batalha não foi fácil, pois muita gente diz(ia) que o acesso direto da polícia a celulares não alcança a privacidade. Pois é… e a cara nem cora.

E vale a lembrança: juízes são péssimos em legislar, o que significa que mesmo após uma década de familiarização com smartphones, o percurso [apreensão – quebra de sigilo – extração de dados – valoração] é uma bagunça em todo lugar. Faz-se o que dá e como se pode.

Mas repare: estou falando do celular! Um simplório bem pessoal que pode facilmente ser disposto no processo como objeto de prova e que obviamente é um instrumento importantíssimo no exercício da intimidade. Destaco, portanto, o estado primitivo que se encontra o processo penal em relação ao direito à privacidade.

Direito à privacidade de grupos? Proteção coletiva, intersubjetiva e imaterial no direito à privacidade? Restrição à coleta e no tratamento de dados pessoais no âmbito policial-preventivo? São muitas questões possíveis.

O mundo passa a ser compreendido. As perguntas vão sendo colocadas. Falta a instrumentalização adequada do processo penal.

De que valem os correios hoje para garantir a comunicação entre pessoas? Pois então. É esse o estágio do processo penal para garantir o direito à privacidade.

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Rafael de Deus Garcia

 

Referências

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1. BOBBIO, N. Estado, Governo e Sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007. p. 11.

2. MITCHELL, W. J. City of bits space, place, and the infobahn. Cambridge: MIT, 1996. p. 30.

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