Entre overbooking e cancelamentos de voos: notas sobre o excesso de demandas em face de companhias aéreas

Entre overbooking e cancelamentos de voos: notas sobre o excesso de demandas em face de companhias aéreas

avião

 O setor aéreo brasileiro enfrenta um paradoxo: ao mesmo tempo em que se destaca pelo crescimento do número de passageiros e pela melhoria em índices operacionais, lidera o mundo em judicialização. Segundo a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), 98,5% das demandas judiciais globais contra companhias aéreas estão concentradas no Brasil,1 gerando um custo de mais de R$ 1 bilhão em litígios apenas em 2023.2 Esse cenário levanta questões sobre a responsabilidade das companhias aéreas e a relação entre falhas no serviço e a busca por reparação judicial por parte dos consumidores.3

A associação vê estes dados como alarmantes, criticando o excesso de judicialização contra as companhias aéreas, tratando o tema como litigância predatória e indicando que a prática é influenciada culturalmente como uma busca por compensação.

A concentração de 98,5% das ações judiciais globais contra companhias aéreas no Brasil, longe de ser fruto exclusivo de uma “cultura de busca por compensações judiciais”, reflete as práticas adotadas pelas próprias empresas do setor. A divulgação de números elevados de pontualidade e baixa taxa de cancelamento não elimina o fato de que, quando problemas ocorrem, os consumidores frequentemente encontram barreiras na busca por soluções. O overbooking, o tratamento inadequado em casos de atrasos ou cancelamentos e a dificuldade em obter reembolsos ou compensações são exemplos claros de problemas operacionais que agravam a relação com os passageiros.

Para exemplificar, o overbooking, prática comum no setor aéreo, ocorre quando as companhias vendem mais passagens do que assentos disponíveis no voo, presumindo que parte dos passageiros não comparecerá. Embora economicamente justificável, essa prática frequentemente resulta em transtornos significativos para os consumidores, gerando implicações jurídicas relevantes no âmbito da responsabilidade civil, uma vez que a prática se origina de uma busca econômica reprovável.

No caso de overbooking, os prejuízos materiais decorrem de despesas inesperadas, como alimentação, hospedagem ou transporte alternativo, enquanto os danos morais estão ligados ao constrangimento, estresse e perda de compromissos importantes. A Convenção de Montreal, ratificada pelo Brasil, também disciplina os direitos dos passageiros em situações de atraso e cancelamento de voos, limitando, contudo, a responsabilidade das companhias aéreas a um teto indenizatório. Todavia, a jurisprudência brasileira frequentemente aplica o CDC de forma subsidiária, afastando essas limitações quando os danos extrapolam os valores estipulados.

Embora o overbooking seja utilizado como estratégia para maximizar lucros, ele expõe os passageiros a transtornos desproporcionais. Além do desconforto imediato, como a impossibilidade de embarcar, a prática gera impactos que vão desde a perda de compromissos profissionais e familiares até a necessidade de reorganizar toda a logística de viagem. Essa situação demonstra que a economia obtida pelas empresas é transferida como ônus ao consumidor, que precisa arcar com os prejuízos gerados por uma decisão de mercado arriscada e amplamente reprovável sob o prisma da boa-fé.

A ANAC, por meio da Resolução nº 400/2016, estabelece direitos específicos em casos de overbooking. Entre eles, destacam-se o reembolso integral do bilhete, a reacomodação em outro voo e a assistência material, como alimentação, hospedagem e transporte, dependendo do tempo de espera. No entanto, o cumprimento dessas obrigações não exime a companhia aérea de indenizar os danos causados.

Neste viés, a narrativa de que a judicialização é fruto de litigância predatória desvia a atenção da insuficiência de atendimento ao cliente e da ausência de mecanismos eficazes de resolução de conflitos por parte das empresas aéreas. Ao invés de investir na melhoria de canais de suporte ao consumidor e em políticas transparentes, muitas companhias preferem transferir a responsabilidade para os passageiros ou para o Judiciário, em um nítido cálculo “custo x benefício”.4 Essa postura reativa, que ignora os direitos previstos no Código de Defesa do Consumidor e na Resolução nº 400 da ANAC, incentiva a busca por indenizações judiciais.

Embora seja legítima a crítica às plataformas de litigância predatória, que muitas vezes abusam de uma situação já complexa, não se pode ignorar que elas emergem justamente pela falha das companhias em atender às demandas legítimas de seus clientes. Essas plataformas, ao invés de criarem problemas, apenas se aproveitam de um ambiente já propenso a conflitos. A solução, portanto, não está em deslegitimar as ações judiciais, mas em resolver a origem dos problemas que levam ao litígio. A judicialização, nesse caso, é menos um reflexo de uma “cultura de indenizações” e mais uma necessidade diante da falta de alternativas.

Portanto, é necessário reconhecer que o problema começa nas práticas empresariais e na ausência de mecanismos eficientes de autorregulação no setor aéreo. Enquanto as companhias aéreas não assumirem uma postura proativa em relação ao atendimento ao cliente, ao cumprimento da legislação e à adoção de sistemas de compensação mais transparentes, o Judiciário continuará sendo a principal via de reparação para os consumidores prejudicados, amparados pelas normas mencionadas.

A solução para o cenário atual passa pela combinação de estratégias. Companhias aéreas devem investir em canais de atendimento eficazes e humanizados, que priorizem a resolução extrajudicial dos conflitos. Políticas públicas podem fomentar a criação de plataformas de mediação obrigatória antes do ajuizamento de ações, alinhando-se às melhores práticas internacionais. Por fim, é necessário que o setor aéreo adote uma postura ética e transparente, reavaliando práticas econômicas controversas, como o overbooking, para minimizar danos ao consumidor e, por conseguinte, à sua própria reputação.

 

Referências

____________________

1. Disponível em: link.

2. PODER360. Brasil concentra 98,5% das ações contra aéreas, diz Abear. 2024. Disponível em: link. Acesso em: 19 nov. 2024.

3. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS AÉREAS. Desde 2020, número de processos contra companhias aéreas aumentou em média 60% ao ano. 2024. Disponível em: link. Acesso em: 19 nov. 2024.

4. BARBOSA, Caio César do Nascimento. Sobre a possibilidade legislativa de redução da indenização por danos morais em casos de cancelamento e atrasos de voo e a controvérsia do Tort Must Not Pay. Portal Jurídico Magis. Disponível em: link. Acesso em: 19 nov. 2024.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio