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Entre prints e memes: a responsabilidade civil pelo compartilhamento de conteúdo na Internet

Distracted boyfriend

No final do mês de agosto, o Superior Tribunal de Justiça, em paradigmática decisão do REsp 1.903.273/PR,1 decidiu que a divulgação de conversas privadas no aplicativo de mensagens “WhatsApp” pode gerar o dever de indenizar.

O entendimento da Colenda Corte Especial destaca o sigilo como garantia constitucional referente à inviolabilidade das comunicações telefônicas, bem como a quebra da legítima expectativa do ofendido, de sua privacidade e intimidade.

Neste sentido, extrai-se do conteúdo decisório que, na ponderação entre valores e garantias, a proteção à inviolabilidade do conteúdo veiculado entre os interlocutores deve prevalecer, sendo que a liberdade de expressão seria relativizada quando no contexto de causar possíveis danos à figura do ofendido.

Nota-se, portanto, a possibilidade de responsabilização civil do ofensor ao divulgar a terceiros conteúdo considerado como privado, desde que sejam caracterizados e comprovados os danos, de natureza material ou moral. Assim, salienta-se que o mero compartilhamento não é apto a gerar indenização, sendo que o caso concreto deverá ser analisado sob suas próprias peculiaridades, ponderando-se eventual choque entre direitos e a (in)existência de danos ao suposto ofendido, posto que elemento essencial para caracterização da responsabilidade civil.2

Em breves linhas, a recente decisão é considerada um marco no tocante às novas facetas da sociedade contemporânea, delineada, principalmente, por seu aspecto digital e pela inevitável superexposição dos indivíduos no contexto da hiperconectividade em razão do advento da Internet e das plataformas sociais.

Com efeito, a garantia de inviolabilidade de conversas eletrônicas e a legítima expectativa entre as partes é extensível a outros aplicativos de mensagens, como o Telegram, podendo ser aplicada também em relação a outros aplicativos sociais que possuam espaço destinado a mensagens privadas (direct messages, as “DM”), a exemplo do Instagram e Facebook.

A decisão clareia a temática do compartilhamento de conteúdo de terceiros na internet e suas consequências ético-jurídicas. Se, de um lado, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu acerca da divulgação de prints de mensagens eletrônicas, surgem novos debates relacionados aos bens digitais passíveis de direitos, como, por exemplo, os memes.3

Os memes ainda não se encontram juridicamente protegidos pelo ordenamento brasileiro,4 de forma que sua contextualização provoca debates acadêmicos referentes a sua acepção pela ótica dos direitos autorais, sendo que a corrente majoritária entende por sua proteção jurídica pela Lei nº 9.610/1998, caracterizando os memes, de forma analógica, obra do autor.

Contudo, a problemática reside no fato de que muitos desses memes utilizam imagens ou obras de terceiros, sem prévia autorização. Como o objetivo dos memes é de ser compartilhado (e assim alcançar engajamento nas redes sociais), questiona-se, neste norte, o embate entre os direitos do autor da imagem/obra original e os do criador do meme, bem como eventuais formas de responsabilidade do autor do meme que lucra ilicitamente com conteúdo de terceiros.5

Ainda que a temática não possua precedentes judiciais por hora, a abrangência do contexto dos memes, como figuras humorísticas, alcançaria, em primeiro momento, a proteção constitucional da liberdade de expressão, que, a depender do caso, poderia ser sobreposta a eventuais alegações de ilícito civil, ou, em outros, caso caracterizados danos a outros direitos – como os direitos autorias, direitos de imagem ou de honra, por exemplo –, o autor do meme poderia ser responsabilizado civilmente.

No entanto, tal responsabilidade não poderia se estender aos usuários que apenas compartilharam o meme, posto que não seria possível averiguar o nexo causal entre a conduta de compartilhar e o eventual dano causado, bem como não poderia ser considerada a ilicitude do ato, mas os provedores, em seu turno, poderão ser responsabilizados caso não retirem o conteúdo após decisão judicial, conforme destaca a regra geral da responsabilidade civil (subjetiva) estampada no artigo 19 do Marco Civil da Internet.6

A questão da responsabilidade dos provedores, no entanto, é frágil, sendo debatida no contexto jurisprudencial e doutrinário a (des)necessidade de ordem judicial para retirada de conteúdo. Assim, destaca-se analogicamente o “notice-and-takedown”,7 utilizado no sistema norte-americano, em que a mera notificação do legítimo autor pela retirada de conteúdo e a consequente e imediata retirada não é capaz de gerar a responsabilização do provedor de serviços.

Este sistema, todavia, encontra suas próprias falhas, vez que não permitiria ao suposto ofensor usufruir de suas garantias constitucionais de ampla defesa e contraditória, sendo que a argumentação referente a conteúdos “censurados” ganha palco nessa nova modalidade de bens digitais.

Destarte, percebe-se que a temática ainda não encontra respostas fáceis, em grande parte pela falta de amplitude do enquadramento legal relacionado aos novos aspectos relacionados às inovações tecnológicas, sendo que, neste contexto, a doutrina e a jurisprudência, hodiernamente, lançam luzes sob a temática de forma a abranger as facetas contemporâneas da sociedade marcada pela superexposição e compartilhamentos excessivos, permitindo, assim, um eficaz delineamento de tais aspectos.

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Caio César do Nascimento Barbosa

 

Referências

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1. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). RECURSO ESPECIAL 1.903.273/PR. RELATORA: Ministra NANCY ANDRIGHI. Terceira Turma. Disponível em: https://bit.ly/3zb6HE5. Acesso em: 09 set. 2021.

2. Destaca-se, ainda, que no bojo da própria decisão o STJ destacou que a ilicitude restará descaracterizada quando a exposição das mensagens tiver o propósito de resguardar um direito próprio do receptor. Assim, quem divulga com a intenção de se defender perante terceiros não terá sua conduta caracterizada como ilícita, pela garantia prevista no artigo 188 do Código Civil.

3. Nesse sentido, ver: CAPELOTTI, João Paulo. Memes e direitos de autor: enquadramentos legais e perspectivas numa visão comparada entre brasil e união europeia.XIII CONGRESSO DE DIREITO DE AUTOR E INTERESSE PÚBLICO – 2019. Disponível em: https://bit.ly/394Cvji. Acesso em: 09 set 2021.

4. Indaga-se, inclusive, se os memes estariam protegidos pela garantia constitucional de propriedade, caso seja manifesta sua acepção como bem digital, tal como as contas que os publicam. Neste sentido, ver: BARBOSA, Caio César do Nascimento. Propriedade Digital na Sociedade 4.0. Magis: Portal Jurídico. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3zc6pg3. Acesso em: 10 set. 2021.

5. Nesse sentido, poder-se-ia pensar em eventual aplicação da figura do disgorgement of profits ou lucro da intervenção. Assim, ver: BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; SILVA, Michael César. A eficácia do disgorgement of profits na contenção de ilícitos. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César (Orgs.). Direito privado e contemporaneidade: desafios e perspectivas do direito privado no século XXI, v. 3. Indaiatuba: Foco, 2020.

6. Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

7. Nesse sentido, ver: BRADLEY, Timothy C. et al. Recent Developments in Copyright Law. The Business Lawyer, v. 76, n. 1, p. 305-311, 2020.

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