O presente artigo visa dissertar sobre o cuidado do ser-aí1 a partir das investigações heideggerianas a respeito da existência do ser-no-mundo em diálogo com o poema Especulações em torno da palavra Homem, de Carlos Drummond de Andrade. O cuidado é que torna significativas a vida e a existência humana. Estar no mundo, frequentá-lo, é ser cuidadoso.
A filosofia e a poesia têm como uma de suas características descrever o estar do homem no mundo, e intentam compreender as nuanças, as inquietações e as especulações sobre a existência humana como se fosse um texto a ser desvelado. Visando este desvelamento, buscamos aporte na filosofia de Heidegger no tocante ao cuidado do ser-aí, uma vez que o filósofo alemão procura descrever a vida em sua complexidade e totalidade, compreendendo os fenômenos nas relações de significado que estabelece em seu campo de “especulações”. Heidegger articula tal perspectiva com a correlação fenomenológica entre ser e mundo, para descrever a dimensão ontológica da existência. Um movimento similar ocorre no poema de Drummond Especulações em torno da palavra Homem, especulação que se faz habitando as palavras.
O homem é um ente que sobre o antes e o depois de seu “lançamento” no mundo nada pode afirmar, pois é essencialmente existência. Lançado num mundo factual de objetos, pessoas, relações, e, apesar de não ser responsável pelo seu lançamento, ele é colocado face a face com a terrível responsabilidade de ser ou não ser. Durante sua existência, o homem está sempre se dirigindo ao mundo e o faz de maneira cuidadosa, uma vez que é pelo cuidado que as relações com o mundo, com outrem e com ele mesmo são estabelecidas.
Tomando múltiplas formas, o cuidar-de indica cuidar do disponível, das ferramentas, dos materiais de nossa vivência; indica uma preocupação pelos outros que pode ser entendida como solicitude. Ademais, o cuidado é uma preocupação com a responsabilidade em face da presença em um mundo de incertezas cuja única obviedade é a finitude.
As reflexões de Heidegger sobre o cuidado, e a existência vão ao encontro das questões drummondianas elencadas no poema, uma vez, que, ao perguntar o que é o homem, pergunta-se pela sua existência, pelo cuidado e por que a morte é a possibilidade mais do que presente neste estar do homem no mundo.
Mas, como compreender o que é o homem, uma vez que várias são as especulações tecidas em torno da palavra que o nomeia? Para além disso, “a compreensão humana se orienta a partir de uma pré-compreensão que emerge da eventual situação existencial e que demarca o enquadramento temático e o limite de validade de cada tentativa de interpretação.” (GRONDIN, 1999, p.159).
Quando Drummond propõe em seu poema o significado de sua existência, estamos diante de uma pré-estrutura significativa. “Especulações que se fazem habitando palavras, transformando-as em questões. Especulações em torno da palavra homem é a poesia que se faz pergunta sobre o próprio homem.” (MARTINI, 2007, p.195);
Mas que coisa é o homem,
que há sob o nome:
uma geografia?
Um ser metafísico?
Uma fábula sem
signo que a desmonte? (ANDRADE, 1983, p.335).
Mas que coisa é o homem? Um ser, uma fábula, um sujeito ou somente uma coisa entre outra? Tais questões são importantes, pois a compreensão “concebida como existencial” é confundida pelas multiplicidades caracterizadas pela interpretação que é peculiar a cada sujeito e que se encontra antes de qualquer locução ou enunciado, pois o homem está voltado para uma observação atenta sobre a sua existência e, portanto, não é indiferente às inquietações sobre quem é.
A expectativa dominante em torno das Especulações sobre a palavra Homem, no dizer drummondiano, leva a um questionamento sobre a existência:
Como pode o homem
sentir-se a si mesmo
Quando o mundo some? (ANDRADE,1983, p.35).
Metaforicamente, a partir do fragmento supramencionado do poema, podemos explicar este “sumiço” do mundo quando o homem se fecha para si mesmo, à medida em que se absorve no mundo e nos outros. Isto nada mais é do que uma interpretação, “cujo caráter fundamental de cuidado ameaça ocultar a tendência niveladora do juízo proporcional.” (GRONDIN, 1999, p.159).
O homem se faz em um mundo circundado de coisas, seres e acontecimentos com os quais lida em seu “mundo vivido”, ao mesmo tempo em que é impelido a ter cuidado com as coisas, com outrem e consigo mesmo.
Existindo no mundo, o homem sempre se dirige para o mundo e para as coisas que nele estão e este ir “ao encontro”, possibilita-lhe encontrar-se em um estado de solicitude. O “cuidado” como instrumentalizante e interpretativo, que é constitutivo para a compreensão humana, designa um modo como o ser-aí trata das coisas em seu mundo. (GRONDIN, 1999).
No seu estar-aí, o homem sempre é ser em um mundo e é justamente por ser ‘lançado” que pergunta: como se faz um homem?
Apenas deitar,
copular, à espera
de que do abdômen
brote a flor do homem?
Como se fazer
a si mesmo, antes
de fazer o homem?
Fabricar o pai
e o pai de outro pai
e um pai mais remoto
Que o primeiro homem?
Quanto vale um homem? (ANDRADE, 1983, p.335).
Podemos perceber nos fragmentos do poema que Drummond aproxima-se de Heidegger, citado por Grondin (1999), quando este afirma que o “não estar” expresso é apresentado pela diferença entre um ‘”como”’ hermenêutico e o outro expressável.
Poder-se-á afirmar ainda que as inquietações sobre o que é o “homem”, evidenciadas nas palavras drummondianas, são como expressões dos fenômenos em locuções ou enunciados que realizam uma pré-compreensão interpretante elementar das coisas, e do meio, em relação ao ser-aí. Faz-se presente também, nos versos supramencionados do poema, a questão do cuidado. Segundo Heidegger (1989), é o cuidado que abre ao homem o universo de existir, “[…] do ponto de vista existencial, o cuidado acha-se, a priori, antes de toda situação do ser humano, o que sempre significa diz e que ele se acha em toda atitude e situação de fato.” (HEIDEGGER, 1989, p.254).
Ao perguntar quanto vale um homem, a inquitação drummondiana revela que o cuidado se faz presente, pois é por meio dele que as vias de encontro se abrem e, segundo Grondin (1999), o modo cuidadoso do compreender tem sua raiz existencial na preocupação do ser-aí consigo mesmo. Mais ainda: “o anzol menos inconsciente da compreensão humana é, por conseguinte, o cuidado”. (GRONDIN, 1999, p.166). A partir do cuidado, constitui-se o específico caráter da compreensão. O homem é essencialmente existência, presença no mundo. Dialeticamente, o lugar do tempo é a existência, ou melhor, o ser-no-mundo é em si temporalidade. (HEIDEGGER, 1989).
O homem é um existente, portanto, porque está essencialmente ligado ao tempo e se encontra sempre além de si mesmo, nas suas possibilidades futuras. Neste sentido, o homem é futuro, mas, para pôr em ato esta possibilidade, ele parte sempre da situação na qual se encontra, e, por consequência, ele é passado. Finalmente, enquanto faz uso das coisas que o cercam, ele é presente. “O passado possui aqui uma atuação constante sobre o presente, uma vez que determina o modo como o presente pode se constituir.” (CASSANOVA, 2009, p.81).
Por que vive o homem? Para responder a esta inquietação, deve ser permitido a cada ser-aí, abrir seu próprio caminho para a autotransparência. (GRONDIN, 1999). A “hermenêutica filosófica” lembra ao homem o caminho para a interpretação da sua existência, e sua tarefa é “tornar acessível cada especifico ser-aí […] uma possibilidade de tornar-se um entendedor para si mesmo.” (HEIDEGGER, 1989, p.249).
E por que não conta
seu todo segredo
mesmo em tom esconso
Por que mente o homem?
Mentementemente
desesperadamente?
Por que não se cala
se a mentira fala
em tudo que sente? (ANDRADE, 1983, p. 335).
O não contar o seu segredo seria uma tentativa de que o outro não tivesse acesso às suas experiências? Permitir o acesso à experiência despertaria uma interpretação específica e, ao fazer isto, o homem estaria diante de uma possível compreensão e a possível compreensibilidade das estruturas do ser-aí o desvelaria. Ao buscar compreender e interpretar o que é o “homem”, cada palavra dita e escutada revela o ser-aí.
Ao jogar com as palavras sobre a existência do homem, Drummond o descreve como um ser “lançado” que se descobre como alguém que experimenta a diferença entre o sagrado e o profano; o singular e o concreto; o universal e o abstrato;, bem como adquire a possibilidade de dizê-lo de diferentes maneiras, uma vez que é o único ente que pergunta quem é e se existe. Tal interpretação vai ao encontro do dizer heideggeriano (GRODIN, 1999) que, ao percorrer o caminho da linguagem, refaz a compreensão em torno da palavra “homem”. O homem, sob ambas as lentes, é um ser-no-mundo, pois cada maneira de existir corresponde a uma significação possível do mundo. O projeto que vem a ser o homem é ao, mesmo tempo, o projeto de seu mundo.
A partir das reflexões elencadas em torno da existência do ser-aí, do cuidado e das especulações em torno da palavra “homem”, podemos auferir que o homem se faz em um mundo onde é presença, intencionalidade e cuidado O cuidado é, portanto, o primeiro gesto da existência, o que torna significativas a vida e a existência do ser-no-mundo, ou seja, não se pode negar a propensão para viver e, muito menos, a tendência de se deixar viver.
Notas
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1 Conceito muito utilizado na filosofia de Heidegger é o “Dasein“, que costuma ser traduzido por “ser-aí“, correspondendo ao ser existente, que está aí concretamente no mundo e nas situações humanas, que se envolve na vida cotidiana e prática; ao contrário da concepção de um ser meramente abstrato ou teórico. (REALE;ANTISERI, 2018).
Referências
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ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. Belo Horizonte: Ed. Pindorama, 1983.
CASSANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2009.
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo: ED. UNISINOS, 1999.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo.Tradução: Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1989.
MARTINI, Rosa Maria Filippozi. O fazer poético de Drummond em seu habitar na linguagem. In Drummond e a Filosofia (organizadores Schafer, Sérgio; Silveira Ronie A.T. da). Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007.
REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Vol 3. Traduçaõ: José Bortolini. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2018. Coleção Filosofia.