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Liberdade de expressão dos pais e divulgação de imagens de crianças na internet: uma discussão pautada nos direitos da personalidade e no Enunciado 39 do IBDFAM

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Quem acompanha os debates do direito de família no Brasil sabe que o IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) é uma entidade que reúne muitos dos principais nomes que são referência no assunto, com destaque para os civilistas comprometidos com a ótica do direito civil constitucional. Nos últimos dias, a instituição organizou o XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, no qual foram aprovados enunciados que se somam à lista de entendimentos doutrinários fixados pelo IBDFAM, após discussões e reflexões. Dentre esses entendimentos, fixou-se o Enunciado 39, que dispõe sobre liberdade de expressão e utilização de dados e imagens de crianças por seus pais no ambiente virtual.

Assim dispõe o Enunciado 39 do IBDFAM: A liberdade de expressão dos pais em relação à possibilidade de divulgação de dados e imagens dos filhos na internet deve ser funcionalizada ao melhor interesse da criança e do adolescente e ao respeito aos seus direitos fundamentais, observados os riscos associados à superexposição.

A temática é extremamente atual e importante, haja vista o incremento nas comunicações virtuais e na veiculação de imagens e outros direitos da personalidade no contexto das redes sociais, fenômeno que vem se observando na sociedade. Já tive a oportunidade de refletir sobre o assunto em recente artigo publicado em uma obra coletiva bem interessante,1 à qual remeto os leitores de nossa Coluna.

Todavia, aqui estamos diante de um dilema mais específico: a disposição de direitos da personalidade de crianças, por seus pais, nessa ambiência das redes sociais.

A doutrina costuma trabalhar com atributos conferidos aos direitos da personalidade, levada em conta sua historicidade e seu intuito de limitar a ação do próprio particular, que não poderia abrir mão de valores nucleares de sua existência.

Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva atribuem a esses direitos, dentre outros, o atributo da inalienabilidade, relacionado à irrenunciabilidade e impenhorabilidade desses valores nucleares da pessoa, fazendo interessantes ponderações, levando em conta os atos lesivos a direitos da personalidade cometidos com consentimento do interessado.2 A sociedade atual sem sombra de dúvidas se mostra mais tolerável a certos atos de disposição sobre valores nucleares da pessoa, mas essa disponibilidade não pode ser tão profunda ou duradoura que importe renúncia a esses valores.

Assim, corpo, nome, intimidade, imagem e outros direitos da pessoa não podem ser renunciados, são valores intrínsecos ao seu humano, que não pode abrir mão desses direitos. O consentimento do titular relativamente a certas mitigações desses direitos, a exemplo do participante de reality show que consente com a momentânea renúncia da intimidade, ou do usuário de redes sociais que aliena circunstancialmente sua imagem em ambiente virtual, deve ser compreendido de forma limitada, pois o consentimento não desnatura os direitos da personalidade.3 O titular pode dispor pontual e momentaneamente desses direitos, mas jamais renunciar a eles.

No caso de crianças e adolescentes, absolutamente incapazes de exercer os atos da vida civil, o consentimento relativamente aos atos de disposição de seus direitos de personalidade deve ser manifestado por seus responsáveis, e é este consentimento que ora trazemos à reflexão.

O Enunciado do IBDFAM é claro: “a liberdade de expressão dos pais em relação à possibilidade de divulgação de dados e imagens dos filhos na internet deve ser funcionalizada ao melhor interesse da criança e do adolescente”, e quando se fala em funcionalização de institutos do direito civil, quer-se dizer que o instituto deve ser interpretado e aplicado a serviço de um valor maior. Aqui, esse valor é a concretização e afirmação da pessoa – no caso, a pessoa dos filhos, e não a pessoa dos pais.

Se a exposição representar situação prejudicial à criança ou adolescente, é possível que se considere antijurídica a publicação ou postagem. Os direitos da personalidade, assim como os direitos fundamentais, são atributos da dignidade humana, e, por essa razão, merecedores de destacada proteção jurídica,4 de modo que é a liberdade de expressão não deve ser usada como um postulado maior no conflito com direitos da personalidade.

É evidente que cada situação tem seus próprios contornos e que o Enunciado do IBDFAM não deve representar a defesa da censura prévia, ou mesmo um estado de vigilância e fiscalização relativamente às postagens envolvendo crianças em redes sociais. Mas a doutrina civilista passa seu recado: situações de superexposição ou intensa disposição da imagem e das informações de crianças e adolescentes não devem passar pelo crivo dos direitos da personalidade.

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Hermano Victor Faustino Câmara

 

Referências

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1. CÂMARA, Hermano Victor Faustino. MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Direitos da personalidade e liberdade de expressão nas redes sociais: atualizando critérios de ponderação. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coords.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. Pode ser adquirido em: https://bit.ly/3pS5T66.

2. TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do Direito Civil. Vol. 1 – Teoria Geral do Direito Civil, 2020. Cap. VII, item 3, sem paginação.

3. BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 8. ed. rev., aum. e mod. por Eduardo C. B. Bittar. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 35.

4. SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2014, p. 13.

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