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Marido agressor, mas bom pai? Controvérsias da guarda compartilhada num contexto de violência doméstica

Duas mulheres com mordaças, representando o silenciamento das mulheres

Com o advento da Lei nº 13.058/2014, estabeleceu-se que, quando os genitores forem aptos, o regime de guarda compartilhada será prioridade. Tal instituto prevê que o tempo de convivência com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada entre os genitores, levando em consideração as condições fáticas e o melhor interesse dos menores.

Paralelamente, a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), além de tipificar as formas de violências domésticas e familiares, também determinou medidas protetivas de urgência com o condão de prevenir e coibir a violência contra a mulher, visando propiciar meios necessários para que possa viver sem violência. Uma das medidas protetivas mais usuais consiste no afastamento do agressor do lar e do convívio da mulher vítima de violência.

Nesse cenário, a grande questão a ser analisada é a viabilidade em conciliar a guarda compartilhada com o contexto de violência doméstica, nessa conjuntura permaneceria o agressor apto para exercer a guarda?

É fundamental ponderarmos: o afastamento do genitor implicaria no afastamento de seu convívio com filhos, alguns entendem ser a postura correta enquanto outros a criticam, certo é que a manutenção da convivência resultaria na exposição dos menores a um convívio que causaria insegurança a sua integridade física e psicológica.

De acordo com a professora Alice Bianchini:1

Estudos demonstram os danos advindos do fato de a criança ou o adolescente testemunhar episódios de violência entre seus pais ou pessoas próximas de si. É a chamada vitimização indireta. Essa pessoa, apesar de não ter sofrido nenhuma violência, é contagiada pelo impacto da violência dirigida contra uma pessoa com quem mantém uma relação próxima. A violência contra a mãe, nesses casos, é uma forma de violência psicológica contra a criança.

(…)

Os prejuízos para os filhos ocorrem em todos os níveis: social, psicológico, emocional e comportamental, afetando de forma altamente negativa seu bem-estar e seu desenvolvimento, com sequelas a longo prazo que, inclusive, pode chegar a transmitir-se por meio de sucessivas gerações.

Compromete, portanto, o desenvolvimento futuro dos indivíduos imersos nesse ambiente conflitivo. E comprometendo-os, compromete toda a futura sociedade. O pai e a mãe são importantes figuras de apego e referência para a vida dos filhos e para os comportamentos que terão quando da fase adulta.

Vale ressaltar que o Brasil é o 5º país do mundo com mais mortes de mulheres,2 sendo grande parte em contextos de violência doméstica. Pensar nos impactos desta problemática no direito de família, mais que legítimo, é necessário.

Antes das alterações advindas Lei nº 13.058/2014, que instituiu a guarda compartilhada obrigatória, o artigo 1.583 do Código Civil previa que, diante da dissolução da sociedade conjugal, prevalecia a guarda que os genitores acordassem. No caso de controvérsia entre os cônjuges, a guarda seria fixada àquele que possuísse melhores condições para exercê-la.3

Atualmente preceitua o Código Civil:

Art. 1.584. §2º. Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.4 

Após o ano de 2014 o direito brasileiro passou a impor o regime da guarda compartilhada, salvo em situações excepcionais, tendo como principal objetivo garantir a igualdade na tomada de decisões em relação aos filhos, visando preservar os direitos e deveres relativos à autoridade parental. Nesse viés compreendeu-se que, com a convivência, seria possível manter os laços familiares, tendo como objetivo final garantir que os pais mantenham as mesmas responsabilidades da época do relacionamento familiar. 5

Em linhas gerais, a guarda compartilhada visa a manutenção da relação entre pais e filhos. Certamente tal propósito se relaciona com a cotidiana realidade de distanciamento familiar em decorrência do rompimento matrimoniai, ainda que nem todos os rompimentos se deem de maneira traumática.

Nesse sentido, Waldyr Grisard Filho também pontua que:6

A aguarda compartilhada tem como premissa a continuidade da reação da criança com os dois genitores, tal como era operada na constância do casamento, ou da união fática, conservando os laços de afetividade, direito e obrigações recíprocos, […] não prevalecendo contra eles a desunião dos pais, pois, mesmo decomposta, a família continua biparental.

Em toda sociedade machista é costumeiro que o homem se isente de suas responsabilidades paternas, cabendo a mulher, quase que integralmente, os deveres e cuidados para com os filhos, desse modo a guarda compartilhada apresenta-se como uma medida aparentemente inclusiva, buscando dividir a responsabilidade entre os genitores.

Apesar disso, há divergências entre os aplicadores do direito quanto à vantajosidade da obrigatoriedade da guarda compartilhada, considerando que, em alguns casos, não seria benéfico para a prole permanecer sob a guarda de ambos, quando não houver uma boa relação entre eles.7

Partilhar as decisões sobre a criação demanda diálogo ou, no mínimo, contato. Ao analisarmos a imposição da guarda compartilhada num contexto de violência doméstica e familiar conclui-se que tal obrigatoriedade é no mínimo cruel. Estaríamos desconsiderando todo sofrimento e vitimização que a mãe foi submetida, a obrigando a se relacionar e ter contato com seu agressor. Tal aproximação facilita a perpetuação do ciclo da violência doméstica, além de expor a mulher a novos riscos.

Necessário destacar que seguindo essa “logica” o STJ já decidiu que a falta de diálogo e convivência harmoniosa entre ex-cônjuges não inviabiliza a guarda compartilhada:

Em decisão unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou decisão de tribunal estadual que negara a ex-cônjuge o direito de exercer a guarda compartilhada dos filhos, por não existir uma convivência harmoniosa entre os genitores. A guarda foi concedida à mãe, fato que ensejou o recurso do pai ao STJ. Ele alegou divergência jurisprudencial, além de violação ao artigo 1.584, parágrafo 2º, do CC/02, sob o argumento de que teria sido desrespeitado seu direito ao compartilhamento da guarda. O relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, acolheu o pedido. Segundo ele, a guarda compartilhada passou a ser a regra no direito brasileiro, uma vez que ambos os genitores têm direito de exercer a proteção dos filhos menores. Sanseverino acrescentou também que já está ultrapassada a ideia de que o papel de criação e educação dos filhos estaria reservado à mulher.8 

Em linhas gerais, é como se o judiciário dissesse aos pais e mães que terão que conviver, quase que independentemente das circunstâncias e traumas, e determina em igual medida a vida dos filhos, ainda que isso acarrete uma convivência indesejada e que, em muitos casos, pode representar uma verdadeira revitimização, especialmente em relacionamentos marcados pela violência doméstica e familiar.9 Ademais, percebe-se certa invisibilização da vitimização dos filhos e grande esforço no sentido de manter a convivência destes com o genitor, principalmente quando se trata de um contexto de pós-violência.

Na pratica muitas medidas protetivas são deferidas (Lei 11.340/06) com a observação de que a convivência do genitor com os filhos não deve ser afetada. Prevalece o entendimento de que o convívio com o genitor, ainda que agressor, se presume como o melhor interesse dos filhos. Sendo o convívio a regra e o não convívio uma exceção.

Se este ó o cenário encontrado nos juizados e varas especializados na violência doméstica e familiar, local em que desigualdade de gênero fundamenta sua existência, nas Varas de Família tal situação é ainda mais sacralizada, sendo a constante imposição da guarda compartilhada mais uma medida que invisibiliza a violência, forçando a convivência entre agressor e vítima, entre genitor e filhos (também vítimas).

A discussão acerca da problemática da imposição da guarda compartilhada em contextos de violência doméstica não se destina apenas a manutenção da integridade da mãe vítima, mas também aos filhos. Uma criança pode não se sentir bem e ter estabilidade emocional dentro de um ambiente com o agressor de sua mãe, principalmente quando presencial as agressões, o que em regra acontece. É fantasioso pensar que da guarda compartilhada teremos uma reconciliação e aproximar os cônjuges que estão em litigio.

A coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Flávia Nascimento, afirmou que a visitação do genitor tem sido um grande ponto de vulnerabilidade para mulheres em situação de violência, pois, conforme aponta, “na prática, nós sabemos que os autores de violência usam a visitação para se aproximar das mulheres. O interesse (do homem) é realmente a criança ou é manter um vínculo com a mãe?”10

Por todo arrazoado concluímos que, enquanto não houver uma alteração legislativa, trazendo expressa previsão legal excepcionando a guarda compartilhada nos casos de violência doméstica, a lei impedirá que a mulher rompa com o ciclo de violência a que é submetida.

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Sarah Batista Santos Pereira

 

Referências

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1. BIANCHINI, Alice. Os filhos da violência de gênero. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3Du5Hh6. Acesso em: 15 nov. 2021.

2. FRANCHESCHINI, Marina. Brasil é o quinto país do mundo em ranking de violência contra a mulher. G1. 2015. Disponível em: https://glo.bo/3FgAyhQ. Acesso em: 14 nov. 2021.

3. URAGUE, Michele Andressa. A guarda compartilhada obrigatória à luz do princípio do melhor interesse da criança. Jurídico Certo. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3HuQChI. Acesso em: 14 nov. 2021.

4. BRASIL. Código Civil. Lei nº10406/02. 2002. Disponível em: https://bit.ly/3Dpw8oo. Acesso em: 14 nov. 2021.

5. LIMA, Anne Caroline Fidelis de. A guarda compartilhada em confronto com a medida protetiva de urgência. JUS. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3clILoE. Acesso em: 14 nov. 2021.

6. FILHO, Waldyr Grisard. Guarda Compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 145.

7. VAN DAL, Suely Leite Viana; BONDEZAN, Daniela Turcinovic. A nova lei de guarda compartilhada obrigatória (lei 13.058/2014) e os efeitos para a formação da criança. IBDFAM. 2019. Disponível em: https://bit.ly/2YTTmDV. Acesso em: 14 nov. 2021.

8. CORREIO FORENSE. STJ: falta de diálogo entre ex-cônjuges não inviabiliza guarda compartilhada. JusBrasil. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3CulQSu. Acesso em: 14 nov. 2021.

9. LIMA, Anne Caroline Fidelis de. A guarda compartilhada em confronto com a medida protetiva de urgência. JUS. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3HyQais. Acesso em: 14 nov. 2021.

10. TRIBOLI, Pierre. Agência Câmara de Notícias. Debatedoras defendem exceções à guarda compartilhada em casos de violência. Agência Câmara de Notícias. 2018. Disponível em https://bit.ly/3nlNjl4. Acesso em: 14 nov. 2021.

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