,

O amor tem preço?

A família tem um papel fundamental nos cuidados e estímulos necessários para o desenvolvimento na primeira infância. Mesmo os teóricos da Psicologia que discordam fundamentalmente entre si convergem no que diz respeito à importância do afeto na formação da subjetividade da criança, comparando-o, em alguns casos, a elementos tão vitais quanto as necessidades fisiológicas básicas.

A presença e o envolvimento dos pais na criação dos filhos é uma peça fundamental para o desenvolvimento de habilidades afetivas e sociais essenciais para as demandas cotidianas atuais. Práticas como a leitura antes do sono, as brincadeiras e os abraços influenciam diretamente nas habilidades sociais e na consolidação da autoestima da criança.

Saber identificar emoções nos outros e em si mesmo, conseguir expressá-las, amar, dar carinho, saber receber amor e acreditar ser digno dessa troca são processos essenciais para relações sociais saudáveis na vida adulta. Um adulto que apresenta dificuldade de interpretar, experimentar e retribuir os sentimentos está mais propenso ao adoecimento mental com o desenvolvimento de transtornos, como a depressão e ansiedade.

Ainda assim, apesar da importância já admitida pelos ramos da ciência, ainda é possível verificar na vida cotidiana a ausência do elemento afeto dentro das relações familiares. Os casos de abandono familiar no Brasil são altíssimos, principalmente os relacionados ao convívio paterno. Tal fato segue bem ilustrado pelas inúmeras demandas que pleiteiam a reparação dessa falta.

A “propaganda da Margarina”1 tem como pano de fundo a família feliz e afetuosa que se coloca como ideal e objeto de desejo. Se esse é o dever ser, o ideal posto, é plausível que o sujeito se pergunte “por que eu não o possuo?”, “a quem devo responsabilizar por isso?” e “como responsabilizar?”.

Em resposta a essa demanda, o abandono afetivo ganhou contornos normativos na nossa doutrina e na nossa jurisprudência, sendo conceituado como a ausência afetiva dos pais no convívio dos seus filhos, caracterizando ato ilícito capaz de ensejar reparação pecuniária desde que comprovados os elementos da responsabilidade civil: ação ou omissão, dano, culpa ou dolo e nexo causal.

O tema tem sido amplamente discutido no Brasil desde meados de 2003, quando houve os primeiros julgamentos sobre o tema. Inicialmente, a jurisprudência se dividiu em posições antagônicas, com sentenças conflitantes. Todavia, com o aumento da repercussão do tema, a jurisprudência seguiu uma tendência de uniformização que reconheceu a possibilidade da indenização, mas instituiu critérios objetivos para a sua verificação. Não obstante, estabeleceu também alguns limites pontuais, como a impossibilidade de sua aplicação no caso de mero distanciamento afetivo ou no simples reconhecimento tardio da paternidade.

O tema tem uma relevância jurídica indiscutível, mas levanta um questionamento que vai além do âmbito judicial. Partindo de uma perspectiva subjetiva, o que é que realmente se pleiteia nessas ações? Qual seria o ponto de convergência entre o sujeito de direito e o sujeito do inconsciente?

A pretensão aqui é distinta de uma ação que pleiteia alimentos, por exemplo, pois, a contraprestação pecuniária nesse caso é uma hipótese de responsabilidade civil, e essa, por sua vez, é um arquétipo que se estrutura historicamente na tentativa de reparação de um dano. Por conseguinte, é possível deduzir que há uma pretensão de compensação de algo.

Os julgados repetem a frase “não há como obrigar alguém a amar”, mas da leitura de certos artigos sobre o tema depreende-se uma expectativa de punição e uma tentativa de evitar a reiteração da conduta, como se pode o observar do fragmento abaixo:

Fala-se em uma forma de punir os pais com o intuito de evitar que estes voltem a fazê-lo e, principalmente, que outros pais repitam essa conduta reprovativa, posto que, a base de nosso ordenamento são os valores sociais, preservados, sobretudo com o princípio da dignidade da pessoa humana. Ademais, tem-se atribuído a reparação civil à função pedagógica e educativa na busca de desestimular esse tipo de conduta incoerente com o nosso ordenamento jurídico.2

Outra variável que podemos analisar sob esse viés é o fato de que por muitas vezes o filho privado do afeto e do convívio não possui sequer meios de contatar o genitor ausente e nunca lhe foi oferecida nenhuma oportunidade de demonstrar seus sentimentos, seja o seu amor ou a sua raiva. Sendo assim, o processo pode ser buscado como um meio de ser visto e de ter espaço para demandar.

Por um lado, isso pode satisfazer a demanda inicial do filho que sofreu abandono, pois o simples fato de se sentir ouvido tem o potencial de gerar repercussões positivas e prover uma espécie de ritual de encerramento definitivo, que dará lugar a um luto pela falta não compensada. Por outro, também há de se pensar nas consequências para esse indivíduo após a sentença, pois há uma resposta simbólica contida na contraprestação pecuniária paga a título de indenização afetiva que pode resinificar a concepção do indivíduo de afeto. Desse modo, dependendo de como o afeto daquela figura está relacionado à constituição da autoestima desse indivíduo, a expressão do quantum debeatur também pode quantificar o valor dado a si mesmo, intensificando problemas de autoestima.

Em contrapartida, há de se pensar também na parte autora e nos efeitos que essa ação pode gerar na relação, no sentido de interferir na possibilidade da criação de um laço. É provável que o processo judicial ponha um ponto-final derradeiro na relação, impossibilitando qualquer tipo de reconexão, uma vez que a falta do afeto já foi paga e nada mais é devido. Sendo assim, se a finalidade precípua da ação é monetária, podemos dizer que há alta possibilidade de sucesso, mas se seu objetivo for a reconstituição familiar ou a restauração do afeto, incorre-se em um risco grande de a demanda ser frustrada.

Diante do exposto, conclui-se que não cabe nesse ponto um juízo de valor sobre a justiça ou a injustiça do pagamento da indenização. O sentimento que motiva essas ações é perfeitamente compreensível. Todavia, é apropriada uma discussão sobre as consequências desse processo e os modos de abordagem dos juízes, defensores e mediadores. Convém muita sensibilidade daquele que advoga pelas partes para compreender e traduzir ao outro o que é ou não possível de ser demandado em juízo, tanto para o melhor andamento do processo no âmbito jurídico como para o retorno social. O Direito e o Estado são, por muitas vezes, demandados pelos indivíduos como uma tentativa de suprir a falta, ou por uma incapacidade de lidar com ela, o que acaba por terceirizar questões relacionais e abarrotar o sistema judiciário. Afinal,

“por que a felicidade buscada por todos é tão difícil de ser conquistada pelo homem? Por que apesar de todo o desenvolvimento tecnológico há tanto sofrimento e mal-estar na sociedade? A resposta é que há um certo grau de sofrimento inerente ao humano, em razão das três fontes de desconforto existencial: “o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade”.3

____________________

Andressa Souza Oliveira

 

Referências

________________________________________

1. Expressão utilizada para fazer referência ao ideal de família vendido pela publicidade.

2. SOUZA, HIASMINNI, 2012. Abandono afetivo: Responsabilidade civil pelo desamor. IBDFAM. Disponível em: https://bit.ly/3BLITtj. Acesso em: 22 jan. 2021.

3. FREUD, S. (1930/1997). O mal-estar na civilização. Obras completas, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago.

BRAGA, Julio Cezar de Oliveira; FUKS, Betty Bernardo. Indenização por abandono afetivo: a judicialização do afeto. Tempo psicanal., Rio de Janeiro,  v. 45, n. 2, p. 303-321, dez. 2013.   Disponível em: https://bit.ly/3pbi7oY. Acesso em:  21  fev.  2022.

IBDFAM, 2021. Abandono afetivo: Decisão do STJ e aprovação de projeto de lei na Câmara trazem novas perspectivas sobre o tema. Disponível em: https://bit.ly/3pdVKiL. Acesso em: 22 jan. 2021.

ORIONTE, Ivana; SOUZA, Sônia Margarida Gomes. O significado do abandono para crianças institucionalizadas. Psicol. rev. (Belo Horizonte), Belo Horizonte, v. 11, n. 17, p. 29-46, jun. 2005. Disponível em: https://bit.ly/3t7B5Oy. Acesso em: 17 fev. 2022.

PÜSCHEL, Flavia Portella; AQUINO, Theófilo Miguel. Segurança jurídica e coerência: uma reflexão sobre a uniformização de jurisprudência a partir da responsabilidade por abandono afetivo no STJ. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, PR, Brasil, v. 64, n. 2, p. 183-204, maio/ago. 2019. ISSN 2236-7284. Disponível em: https://bit.ly/36EHERh. Acesso em: 31 ago. 2019.

WENDT, Guilherme Welter; APPEL-SILVA, Marli. Práticas parentais e associações com autoestima e depressão em adolescentes. Pensando fam., Porto Alegre, v. 24, n. 1, p. 224-238, jun.  2020.  Disponível em: https://bit.ly/3haFzyz. Acesso em:  21 fev.  2022.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio