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O dilema dos criptoativos e o cometimento de crimes

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Dando sequência ao projeto “Crypto Academy”, no dia 15 de outubro de 2021, tivemos a apresentação da Isadora Bandini Pegoraro,1 que refletiu a respeito do caráter criminológico dos criptoativos.2

A contemporaneidade é marcada pelo aprimoramento tecnológico, e a consequente transformação de institutos que antes pareciam ser imutáveis. Neste cenário, inserem-se as criptomoedas, que por alguns são compreendidas como meio de pagamento (em alternativa as moedas estatais), por outros são vistas como investimento (tal como ações da bolsa de valores) ou até mesmo como ativos (tal como o ouro, a prata, cobre, etc.).

Em meio a este cenário de inovações, as organizações criminosas buscam alternativas para a prática de atividades ilícitas, adequando-se à nova realidade e, infelizmente, se antecipando em relação ao Direito.3 Ressalta-se, que o Direito sempre tenta acompanhar a sociedade, todavia, em razão da velocidade que a sociedade se transforma, tal tarefa se trata de uma busca eterna.

A respeito dos criptoativos, fundamentalmente estes possuem essência libertária e anárquica, que do ponto de vista econômico é defendida como um grande avanço e vantagem por alguns autores, por exemplo, Fernando Ulrich.4

Deste modo, os criptoativos detém a capacidade de facilitar operações financeiras a qualquer tempo e lugar, sem limites territoriais e quantitativos, utilizando-se de suas características: a descentralização, anonimidade e transnacionalidade.

Todavia, tais características, mostram-se como ferramentas que podem ser utilizadas para os cometimentos de fraudes fiscais, esquemas de pirâmide e lavagem de dinheiro. Assim, torna-se objeto de preocupação para os operadores do direito, à medida que a prática de crimes com os criptoativos são dificultosos de se identificar a autoria, a territorialidade, bem como a aplicação das normas aos fatos praticados.

Portanto, no presente trabalho, serão abordados aspectos da criminalidade envolvendo criptoativos, as consequências dos crimes e a importância de investigar o assunto.

Deste modo, elenca-se as seguintes questões: como o ordenamento jurídico se adapta à nova realidade digital? Como as novas relações negociais afetam a responsabilidade criminal, na prática dos delitos econômicos?

Ressalta-se que tais questionamentos não possuem uma resposta unânime, pois o embate que se trava é longo e envolve direitos fundamentais, tais como a liberdade e a segurança, portanto, cabe evidenciar que o presente trabalho não irá exaurir o tema completamente, porém, irá trazer caminhos e ainda mais indagações.

Primeiro, importa destrinchar e relacionar as referidas características das criptomoedas à prática de delitos.

Deste modo, a descentralização (uma das principais características dos criptoativos) permite a modalidade peer to peer,5 na qual não há uma instância gerenciadora central, não há um agente que possa examinar operações suspeitas e reportá-las.6 Por meio deste sistema há uma autogerencia dos usuários, sem a necessidade de intermediários. É uma vantagem operacional e certamente necessária, mas torna-se desvantagem do ponto de vista da administração da justiça. Há uma superação do monopólio estatal sobre o dinheiro.

Ao adentrar a anonimidade faz-se necessário esclarecer que no âmbito das criptomoedas não há uma ausência total de identificação do indivíduo, portanto, trata-se de uma pseudoanonimidade, onde os dados foram desvinculados de seus portadores, porém, persiste a possibilidade de vinculação, pois, mesmo em território digital as atividades podem deixar rastros.

Destarte, compreende-se que as operações com criptoativos não são um meio de pagamento completamente anônimo, mas garantem um alto grau de privacidade, que se torna relevante em face da persecução penal.7 Todas as transações são registradas na blockchain,8 o que confere transparência a todo o histórico de transações. O mérito do anonimato reside no desejo de escapar do controle estatal e da vigilância das autoridades. No momento em que se fala muito sobre o limite entre o público e o privado, as criptomoedas proporcionam significativo grau de liberdade.9 Ainda, há clareza nas transações, visto que são públicas (no sentido de todos poderem observar a transação) e registradas na base de dados. Todos os usuários são vinculados a números e códigos que possibilitam a identificação da origem da operação, uma vez que o pseudônimo usado é descoberto. Os ativos portam-se como espécie de título ao portador visual, possibilitando inúmeras condutas criminosas. É uma combinação entre rastreabilidade, porém ao mesmo tempo com e ausência de identificação (por isso, nomeia-se de pseudoanonimidade).

A respeito da transnacionalidade, está é a responsável pelo aumento dessas movimentações com criptoativos.10 Nesse sentido, valores podem ser movimentados rapidamente, sem intermediários, limites ou fronteiras. É uma evolução em face do sistema tradicional de transações monetárias, que são limitadas por diversos fatores, e tornam-se empecilhos frente ao mundo digital. Todavia, surgem questionamentos na questão tributária, corroborando para sonegação e o crime de evasão de divisas.

Com os esclarecimentos iniciais acerca das características das criptomoedas, importa questionar algumas modalidades de delitos que se aproveitam dessas conveniências. Para alguns pesquisadores (tais como Fernando Ulrich) os criptoativos são a principal invenção depois da internet, portanto, questionam-se seus riscos frente aos cometimentos de infrações penais, isto pois, a aquisição, utilização ou manutenção de criptomoedas detêm o potencial crimes de caráter econômico.11

A Constituição Federal de 1988 consagra a ideia da liberdade de iniciativa, assegurando o livre exercício de qualquer atividade econômica.12 Previsto nos artigos 170 a 181 da CF, tem por escopo garantir a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Assim, a tutela penal se dá em razão do combate ao poder de concentração econômico sobre os mercados, a defesa da livre e justa concorrência e proibição de práticas comerciais abusivas. As criptomoedas trazem celeridade, segurança e conectividade nas transações internacionais, como também aperfeiçoaram as modalidades e expansão de determinados delitos.

A evasão de divisas está prevista na lei 7.494/1986, da ausência de declaração de depósitos mantidos no exterior. Assim, é crime quando o agente a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, mantendo depósitos não declarados à repartição federal. Quando se pensa em criptoativos, há que se ter em mente a possibilidade de se comprar de uma Exchange13  que apresente cotação mais baixa e venda para outra que esteja pagando mais, o que poderia ocorrer em países diversos. Como não há controle estatal, e se dá em termos mundiais, havendo tráfego internacional e automático de valores, que se efetivados, poderiam implicar em dúvidas sobre evasão.

Quanto à sonegação fiscal, trata-se do uso de meios ilícitos e ilegais para buscar o sistema de pagamentos de tributos. A Receita Federal exige que os detentores de moedas virtuais as declarem nas respectivas declarações anuais das pessoas físicas.14 O problema é justamente a anonimidade da propriedade, tornando a prova extremamente difícil para as autoridades.

Há também a verificação de golpes chamados de “pirâmides”.15 Indivíduos ou empresas que prometem ganhos extraordinários, impossíveis perante a volatilidade do mercado de criptoativos, abusando da boa-fé das pessoas. Consideram-se esses tipos de esquemas como crime pois são vantajosos enquanto atraem novos investidores, todavia, quando não há entrada de novos aplicadores, o esquema não consegue cobrir os retornos prometidos e entra em colapso. Ou seja, os que estão no topo lucram com a base, prejudicando-os.

Recentemente, a força policial brasileira agiu em conjunto na Operação Kryptos, com objetivo de desarticular organizações criminosas responsáveis por fraudes bilionárias envolvendo criptomoedas. Uma das principais apreensões foi a da G.A.S investimentos, que prometia aos seus clientes rentabilidade fixa mensal de 10%, o que é impossível de se cumprir a longo prazo. Nesse tipo de crime, promete-se rendimentos a curto prazo muito acima do valor médio do mercado de investimentos, na intenção de atrair rapidamente clientes, para realizar o chamado crime de pirâmide. O empresário idealizador do negócio está preso e responderá por formação de organização criminosa, delitos contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro e gestão temerária ou fraudulenta.

Por fim, é de suma importância tratar da lavagem de dinheiro, considerando-se sua intrínseca relação com o crime organizado. A Lei 9.613 de 1988 descreve o crime de “lavagem” ou ocultação de bens como ato de ocultar ou dissimular a origem ilícita de bens ou valores frutos de crimes. Qualquer infração penal pode configurar crime antecedente de lavagem de dinheiro, basta que o crime produza riquezas e o dinheiro seja ocultado das autoridades públicas. Trata-se de crime derivado, só existirá se houver ao menos um delito praticado anteriormente. Dinheiro sujo é aquele que foi obtido por meio de práticas ilícitas, está maculado em sua origem. Com a internacionalização da economia, informática e comunicação, houveram mudanças positivas, contudo sucedeu o favorecimento do desenvolvimento de um mercado global do crime. O sistema financeiro oferece dinheiro de origem ilícita, de lugares cada vez mais secretos, circuitos mais rápidos e rendimentos atrativos. Alia-se, em relação às criptomoedas, a descentralização, transnacionalidade livre de obstáculos, o anonimato e a possibilidade de transição do mundo virtual para o mundo real viabilizado pelas exchanges. Em tese, a lavagem de dinheiro busca disfarçar a origem ilegal dos ativos provenientes de crime, com a finalidade de dar-lhes aparência legítima.16 Há três fases de identificação para lavagem de dinheiro:17 a ocultação, que consiste em colocar dinheiro no sistema econômico, objetivando ocultar sua origem. Para dificultar a identificação da procedência do dinheiro, os criminosos aplicam técnicas sofisticadas e cada vez mais dinâmicas, como o fracionamento dos valores que transitam pelo sistema financeiro e a utilização de estabelecimentos comerciais que usualmente trabalham com dinheiro em espécie. No caso dos criptoativos, é a inserção de valores patrimoniais no sistema de criptoativos, com a obtenção de valores provenientes da prática de crimes anteriores. A segunda fase, da dissimulação, consiste em dificultar o rastreamento contábil dos recursos ilícitos. Os criminosos movimentam o dinheiro, de forma eletrônica, transferindo os ativos para contas anônimas, preferencialmente em países amparados por lei de sigilo bancário. Nas criptomoedas há duas possibilidades de dissimulação simples e complexas. Na forma simples, uma mesma pessoa pode gerar infinitas chaves públicas, mudando o endereço dos bitcoins sem que o usuário perca o controle sobre eles. As formas mais complexas tratam de mixing,18 cuja função é apagar o rastro das moedas dentro da blockchain. Dessa forma, rompem com a transparência inerente ao sistema. A terceira fase da lavagem de dinheiro consiste na integração: os ativos são incorporados formalmente ao sistema econômico. As organizações criminosas investem em empreendimentos que facilitam suas atividades. No que tange às criptomoedas, a integração poderá ser feita pela troca dos ativos por moedas estatais ou pela aquisição direta de bens e produtos. Em países com controle sobre as exchanges pode-se descobrir a transação. Mas, com a globalidade, é possível optar pela execução dessa transação em países com medidas de controle antilavagem menos rigorosas.  

Entretanto, parte da doutrina indaga sobre a relevância do combate aos crimes de caráter econômico, em especial a lavagem de dinheiro. Apesar de apresentar-se como criminalidade sutil, difusa e de resultados lentos, a extensão do dano é extremamente acentuada em longo prazo.19 A lavagem de dinheiro alia-se ao terrorismo, tráfico de entorpecentes, de pessoas e a corrupção, que potencializados e sem controle, desestabilizam países e atentam contra o Estado democrático de Direito. Dessa forma, provocam danos à ordem econômica, financeira e social.20 Assim, é preciso reconhecer a relevância da discussão do caráter penal para o funcionamento correto da ordem socioeconômica, resguardando a licitude dos bens e capitais que circulam a economia, combatendo a lavagem de dinheiro ou bens procedentes do crime.

Conclui-se que o dilema dos criptoativos reside na ideia de tais tecnologias nascerem para tornar o mercado mais livre e justo. Por outro lado, tais tecnologias possibilitam a ocultação da identidade dos usuários, o que abre uma vasta possibilidade de cometimento de crimes.21 Portanto, os criptoativos geram fragilidades das os criminosos podem se beneficiar do cometimento de ilícitos.22

Deste modo, cabe questionar se a correta resposta do estado frente à realidade atual seria a regulamentação das criptomoedas? Dessa forma, discussões minuciosas sobre o tema são necessárias para profunda discussão e eterna adaptabilidade do Direito frente às mudanças da sociedade.

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Pedro Alberto Alves Maciel Filho

Isadora Bandini Pegoraro

 

Referências

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1. Estudante de Graduação em Direito do terceiro ano da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: isadora.bandini@uel.br.

2. Criptoativos são dados binários projetados para funcionar como um meio de troca em que os registros de propriedade de moedas individuais são armazenados em um livro razão existente na forma de um banco de dados computadorizado usando criptografia para proteger a transação de registros, para controlar a criação de moedas adicionais e para verificar a transferência da propriedade das moedas.

3. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. “CRIPTOCRIME”: Considerações penais econômicas sobre criptomoedas e criptoativos. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance. São Paulo. Vol. 1/2020.

4. ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. 1ª Edição. São Paulo: Editora Instituto Ludwing von Mises, 2014.

5. Do inglês ponto-a-ponto é uma arquitetura de redes de computadores onde cada um dos pontos ou nós da rede funciona tanto como cliente quanto como servidor, permitindo compartilhamentos de serviços e dados sem a necessidade de um servidor central.

6. ESTELLITA, Heloisa. Criptomoedas e lavagem de dinheiro. Revista Direito GV. São Paulo. Vol. 16/2020 n.1.

7. O processo penal é o procedimento dado como principal, de caráter jurisdicional, que encerra com o procedimento judicial que determina a condenação ou absolvição do acusado. É o conjunto das fases do procedimento de investigação criminal e processo penal.

8. Livro razão pública que registra as transações da moeda virtual. Guarda registros de transações permanentemente.

9. JUSTUS, Guilherme Ramos. O desafio do combate aos crimes econômicos via criptomoedas. Revista Percurso. Curitiba. vol. 2/2021. n. 40.

10. SICIGNAMO, Gaspere Jucan. Money Laundering using Cryptocurrency: the case of bitcoin. Athens Journal of Law. Greece. vol. 7/2021. n. 2.

11. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. “CRIPTOCRIME”: Considerações penais econômicas sobre criptomoedas e criptoativos. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance. São Paulo. Vol. 1/2020.

12. PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. Rio de Janeiro, Forense. 8. ed. 2019.

13. Plataformas na qual indivíduos operacionalizam troca de ativos criptografados ou realizam compra de ativos por meio da moeda corrente.

14. Instrução normativa RFB n° 1.888, de 3 de maio de 2019. Institui e disciplina a obrigação de prestar informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.

15. Crime elencado no art. 2 da Lei 1.521/51 que configura crime contra economia popular. É a conduta que consiste em tentar ou obter ganhos ilícitos, através de especulações ou meios fraudulentos, causando prejuízo a diversas pessoas.

16. SOUZA, Carlos Aurelio Mota de. O desafio do combate aos crimes econômicos via criptomoedas. Revista Percurso. Curitiba. vol. 2/2019. n° 29.

17. ESTELLITA, Heloisa. Criptomoedas e lavagem de dinheiro. Revista Direito GV. São Paulo. Vol. 16/2020 n.1.

18. Processo que permite ao usuário misturar tokens com outros usuários. É um serviço de mistura de moedas, embaralhando e confundindo-as para que não sejam facilmente rastreadas.

19. SOUZA, Carlos Aurelio Mota de. O desafio do combate aos crimes econômicos via criptomoedas. Revista Percurso. Curitiba. vol. 2/2019. n° 29.

20. PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. Rio de Janeiro, Forense. 8. ed. 2019.

21. SOUZA, Carlos Aurelio Mota de. O desafio do combate aos crimes econômicos via criptomoedas. Revista Percurso. Curitiba. vol. 2/2019. n° 29.

22. SANTIAGO, Keila Regina. Criptomoedas e a prática do crime de lavagem de dinheiro. Disponível em: https://bit.ly/2ZJptGx. Acesso em: 02 de novembro de 2021.

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