,

O que é uma Constituição? [Parte 03]

creative-composition-with-old-book

Este é um texto dividido em quatro partes, a primeira introduz o tema e dá panoramas gerais, a segunda traz as classificações das constituições, a terceira traça uma linha histórica acerca das principais constituições no mundo, enquanto a quarta introduz o conceito de supremacia da Constituição e conclui sua definição. Recomenda-se uma leitura conjunta dos capítulos, que serão publicados sucessivamente e disponibilizados de forma gratuita. Abordaremos agora as classificações das constituições, boa leitura!

No último texto classificamos as constituições de maneira esquematizada, de forma a aprendermos quais são as possíveis estruturas constitucionais. Agora entenderemos o início das primeiras constituições e como elas se desenvolveram no tempo. Para continuarmos os estudos remetemos o leitor à parte um do texto O que é uma Constituição?, no qual estudamos que o surgimento de uma Constituição está intimamente ligado ao desejo do homem de se reunir em sociedade.

Concluímos também anteriormente que as constituições sempre existiram, posto que enquanto houver sociedade vigerá uma Constituição que representa o modo de ser das comunidades e do Estado em si. Por conta disso, partimos do pressuposto que a primeira delas surgiu com o contrato social, termo que representa o acordo entre os homens de se reunirem em sociedade. Para ser claro, o contrato social surgiu basicamente diante do reconhecimento da autoridade do Estado, assim como o conjunto de regras criado para possibilitar o funcionamento pacífico e organizado da sociedade, ele é amplamente estudado por filósofos como Thomas Hobbes, John Locke e Rousseau.

Em primeiro plano, a Constituição surgiu através de um movimento constitucional chamado de constitucionalismo. De maneira clara e direta, ele foi o grande responsável por limitar o poder do Estado, que em determinado momento da história humana e das sociedades era dominado por regimes opressores (autoritários ou totalitários). Em suma, seu principal objetivo foi conferir direitos individuais aos cidadãos, principalmente a liberdade contra o Estado até então opressor.

Não se sabe exatamente quando o ser humano se reuniu em sociedade pela primeira vez. Todavia, segundo o professor Pedro Lenza,1 há registros do surgimento do constitucionalismo ainda na antiguidade clássica, com os povos hebreus, quando estabeleceram um Estado teocrático. A antiga comunidade hebraica determinou que os profetas, enquanto representantes diretos de Deus, detinham a legitimidade para fiscalizar e limitar os atos governamentais que extrapolassem os limites da bíblia. Logo, não é forçoso dizer que uma vez tivessem o atributo de interpretar e alterar uma norma bíblica respeitada pela comunidade, estavam a criar e aplicar uma verdadeira Constituição.

Mais adiante, no século V antes de Cristo, a democracia nas Cidades-Estados2 gregas estabeleceu diálogo entre os governados e governantes. Diga-se de passagem, que se tratava de uma democracia direta: ao contrário das democracias atuais, não havia delegação do poder a um governante, era o próprio povo quem geria as decisões tomadas pelo meio social e decidia diretamente o interesse público. Este foi “(…) o único exemplo conhecido de sistema político com plena identidade entre governantes e governados, no qual o poder político está igualmente distribuído entre todos os cidadãos ativos.”3

Houve também importantes movimentos constitucionais na Idade Média, o principal deles foi marcado pelo Rei João Sem Terra, que assinou pela primeira vez, no ano de 1215, o documento denominado de Magna Carta4  (atualmente, muitos professores usam a expressão Magna Carta como sinônimo de Constituição, denominação que passaremos a adotar nos próximo textos). Este foi um marco inigualável para o constitucionalismo medieval, além de já ter sido uma Constituição próxima das que vemos nos dias de hoje. Nas palavras de Bandeira Cardoso:

Desde 1213, vinha João Sem Terra encurralado num círculo de fogo de reivindicações, às quais fugia ou cedia de má-fé. Excomungado por Inocêncio III, finge uma submissão redentora de fiel vassalo da Santa Fé. Esquecendo logo depois a convenção de Dover, arma-se com a Flandres e com o Oto IV, da Alemanha, contra Felipe Augusto, mas é vencido entre Lille e Tornai, em 1214. No ano seguinte, os bispos e barões organizaram “o Exército de Deus e da Santa Igreja”, que marcha contra Londres, quando João Sem Terra julga que vai perder a coroa com a famosa lei constitucional assinada no dia 15 de junho de 1215.5

Nos últimos quatro séculos, isto é, desde o século XVIII, iniciou-se o chamado constitucionalismo moderno, gérmen de direitos atualmente positivados nas constituições ao redor do mundo. Os dois maiores marcos históricos deste movimento são a constituição norte-americana de 1787, e a francesa de 1791:

Dois são os marcos históricos e formais do constitucionalismo moderno: a Constituição norte-americana de 1787 e a francesa de 1791 (que teve como preâmbulo a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789), movimento este deflagrado durante o Iluminismo e concretizado como uma contraposição ao absolutismo reinante, por meio do qual se elegeu o povo como o titular legítimo do poder.

Podemos destacar, nesse primeiro momento, na concepção do constitucionalismo liberal, marcado pelo liberalismo clássico, os seguintes valores: individualismo, absenteísmo estatal, valorização da propriedade privada e proteção do indivíduo. Essa perspectiva, para se ter um exemplo, influenciou profundamente as Constituições brasileiras de 1824 e 1891.6

Nesse sentido, a chamada concepção liberal do constitucionalismo é didaticamente chamada de direitos de primeira geração ou dimensão. Na atual Constituição Federal brasileira de 1988 podem ser citados exemplos como o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à participação política e religiosa (…), positivados principalmente em seu art. 5º, ao dizer que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)”.7

A partir do século XXI a doutrina passa a discutir sobre a superação do constitucionalismo contemporâneo, e o seguinte surgimento de um novo movimento constitucional, chamado de neoconstitucionalismo. Supera-se então a ideia já alcançada de limitação do poder público, em busca de conferir maior eficácia às normas já positivadas, isto é, já existentes no mundo jurídico. Assim, o que se objetiva é a real tutela dos direitos fundamentais.

O neoconstitucionalismo tem como uma de suas marcas a concretização das prestações materiais prometidas pela sociedade, servindo como ferramenta para a implantação de um Estado Democrático Social de Direito. Ele pode ser considerado como um movimento caudatário do pós-modernismo. Dentre suas principais características podem ser mencionadas: a) positivação e concretização de um catálogo de direitos fundamentais; b) onipresença dos princípios e das regras; c) inovações hermenêuticas; d) densificação da força normativa do Estado; e) desenvolvimento da justiça distributiva.8

Portanto, a primeira função de qualquer Constituição é a de tomar o lugar da figura do governante, de forma a substituí-lo por uma carta positiva de direitos. Conquanto – para além disso – a grande inovação das recentes constituições do século XXI é o objetivo de se buscar uma Magna Carta como valor em si, no sentido de concretizar os direitos fundamentais. “Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos”,9 assim, determina além da estrutura do Estado e limites à atuação dos poderes, a garantia dos direitos mais essenciais à pessoa humana.

 

____________________

Jordano Paiva Rogério

 

Referências

________________________________________

1. LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 24ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 65.

2. As Cidades-Estados gregas eram cidades com governo próprio e autônomo, locais independentes, a exemplo de Tebas, Atenas, Esparta e Tróia.

3. LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. 2ª ed. Barcelona: Ediciones Ariel. 1970, p. 154-155.

4. CARDOSO, Antônio Manoel Bandeira. A Magna Carta – conceituação e antecedentes. Brasília: R. Inf. Legisl., 1986, p. 01. Disponível em: https://bit.ly/3j1ZMYp. Acesso em: 11/07/2021.

5. CARDOSO, Antônio Manoel Bandeira. A Magna Carta – conceituação e antecedentes. Brasília: R. Inf. Legisl., 1986. Disponível em: https://bit.ly/3j1ZMYp. Acesso em: 11/07/2021, p. 03.

6. LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 24ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 66.

7. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.

8. AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Editora Forense, 2008, p. 31.

9. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Livraria Almedina, 2013, p. 51.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio