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Por que eu sou contra o Tribunal do Júri? Breves notas sobre a Boate Kiss, o dolo eventual e a culpa consciente

O primeiro artigo do ano de 2022, como não poderia deixar de ser, trata de um tema polêmico, a saber, a correção ou não da opção do constituinte originário pela competência especial do Tribunal do Júri nos crimes dolosos contra a vida.

Desde logo, adianto minha opinião, não só sou contra o Tribunal do Júri, mas, sobretudo, entendo que sua existência é maléfica ao ambiente jurídico, ao processo e também à própria dogmática penal.

Inicio minha exposição alegando que por mais que se considere um direito fundamental do cidadão, aquele acusado de um crime doloso contra a vida, ser julgado pela instituição do júri (art. 5, XXXVIII, da CF), parece ser razoável apresentar o seguinte questionamento: será que é realmente um direito do cidadão?

Não obstante, me parece que se o Tribunal do Júri realmente fosse um direito, então o agente poderia escolher o procedimento que entendesse ser o mais conveniente para ele. Mas, todos nós sabemos que não é isso o que acontece.

Com efeito, se o caso tem alta repercussão midiática talvez fosse melhor ser julgado por um juiz togado. Afinal, colocar o julgamento da sua vida na mão de um corpo de jurados, sem conhecimento técnico-jurídico, amiúde já contaminados (e, portanto, pré-dispostos a condenar) pelo inconsciente coletivo (ou a influência da mídia) não me parece ser uma escolha muito inteligente.

De fato, às vezes ser julgado por um juiz togado também não é nenhuma vantagem. Principalmente, porque, não se pode esquecer, é um juiz togado o responsável pela decisão prolatada no final da primeira fase do procedimento especial do tribunal do júri, a qual, grosso modo, autoriza ou não que o caso vá ao plenário do júri. Dito de outro modo, é a autoridade jurisdicional quem decide se é ou não uma hipótese de crime doloso contra a vida.

Mas, por maiores que sejam os problemas dos juízes togados, sempre há a possibilidade de se recorrer. Nesse ponto talvez esteja o ponto mais problemático do Tribunal do Júri.

O ponto crucial é que por força do artigo 93, IX, da Constituição Federal, os juízes devem fundamentar todas as suas decisões, sob pena de nulidade. Isso é fundamental à medida que amiúde é a partir dos motivos (ou mesmo da ausência deles) apresentados pelas autoridades jurisdicionais que as partes desenvolvem os argumentos contrários nas razões recursais e os levam para debate nos tribunais e cortes superiores.

No caso do tribunal do júri, todavia, além dos jurados não precisarem fundamentar suas decisões, podendo absolver ou condenar simplesmente porque sentiram no coração, as hipóteses de recursos são extremamente limitadas, a saber, em caso de nulidade, desde que posterior à pronúncia, para discutir dosimetria da pena ou a medida de segurança, assim como quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos.

Veja-se, no recurso do procedimento do tribunal do júri não pode se discutir sequer questões de teoria do delito; não se pode postular uma reforma da sentença sobre o tópico mais importante da condenação, isso é simplesmente inexplicável. Alguns poderiam objetar a essa crítica que se fosse diferente a decisão dos jurados já não seria mais soberana, como determina o artigo 5, XXXVIII, c da CF. Mas, essa objeção sucumbe pelo fato de que o Tribunal pode anular o júri quando entender que a decisão dos jurados foi manifestadamente contrária à prova dos autos.

Me parece muito estranho, me soa muito mal que a decisão dos jurados não seja soberana no que se refere à análise de prova, mas seja quando se trate de teoria do delito. Afinal, dificilmente, os jurados tem algum conhecimento sobre, por exemplo, as complexas teorias da causalidade, imputação objetiva, autoria e participação, diferença entre dolo eventual e culpa consciente, excludentes de ilicitude, culpabilidade, entre outras questões problemáticas, as quais podem ser determinantes para uma absolvição ou condenação.

Embora eu não conheça os autos e só tenha conhecimento do que restou noticiado pela mídia, no caso da Boate Kiss, por exemplo, parece ser nítido o fato de que não se tratava de dolo eventual, senão, no máximo, culpa consciente.

É verdade que o ponto central dessa controvérsia é se o dolo eventual incorpora ou não o elemento volitivo, isto é, se o agente imbuído pelo dolo eventual atua com ou sem vontade. Nos termos da legislação brasileira, a questão é se seria suficiente o famigerado “assumiu o risco”, ou além disso, seria necessária também a vontade do agente.

Com efeito, as teorias da possibilidade1 e da probabilidade2 excluem o elemento volitivo do dolo eventual. Mas, elas sofrem a crítica de que o conteúdo do dolo é demasiadamente expandido. Por outro lado, as teorias da indiferença3 e do consentimento4 pressupõem a vontade do agente.

A meu ver, correta está a doutrina majoritária ao eleger a teoria do consentimento como a mais adequada. Isso porque ela entende existir no dolo eventual um elemento volitivo mais frágil, menos intenso do que o que o dolo direto pressupõe, o qual é mais do que o consentimento de que o resultado típico será produzido, senão sua vontade forte e direcionada ao ilícito.

Mais do que isso, Hilgendorf e Valerius expõem que:

“Na prática, a delimitação entre dolo eventual e culpa consciente tem significado, sobretudo, em relação aos delitos de homicídio. Em relação a eles, a jurisprudência (alemã) considera que o autor tem que ultrapassar o que se chama de obstáculo psíquico, a fim de retirar a vida de alguém dolosamente por meio de uma ação. Essa figura, no entanto, não deve ser entendida como uma limitação do tipo subjetivo, mas “simplesmente” como uma forma de tornar mais claras as maiores exigências concernentes à prova do delito no juízo processual de mérito, conforme o § 261 StPO, quando há conflito, no tocante a ações que implicam perigo de vida, relativo à delimitação entre dolo eventual de homicídio e culpa consciente. É necessário se ter uma visão geral de todas as circunstâncias objetivas e subjetivas do fato a fim de se operar tal delimitação. Nessa visão geral, incluem-se a situação concreta e as formas de agressões, local e possibilidades de defesa da vítima, a constituição psíquica do autor e sua motivação. Um indício significante de dolo eventual é o evidente perigo para a vida advindo de uma ação. Por outro lado, comportamentos espontâneos, impensados, fomentados por emoções afetivas podem ser um indício da ausência do elemento essencial da vontade.”5 

No caso da Boate Kiss, pelo que foi noticiado, parece temerário afirmar que os acusados ostentavam esse dolo eventual porque esse obstáculo psíquico simplesmente não foi ultrapassado; eles não consentiram com a morte de centenas de pessoas, tampouco com a possível morte deles mesmos, não havia vontade ali, senão só uma série de decisões precipitadas e impensadas.

Ocorre que se entender a real diferença de dolo eventual de culpa consciente é uma tarefa árdua até para os acadêmicos e estudiosos do direito penal, imagine para os jurados leigos. Trata-se de uma questão extremamente complicada, complexa, a qual os advogados de defesa amiúde se vêm na situação de tentar explicar, correndo o risco de tornar sua exposição deveras cansativa e teórica, ou partir para a teatralidade, “invocando” os mais variados artifícios “artísticos”.

Tal estratégia, às vezes pode dar certo e em outras pode servir só para rebaixar ainda mais a classe da advocacia, tornando-a alvo de piadas e deboches. De toda forma, não estou aqui para criticar nenhum colega, cada um utiliza a estratégia que entender ser melhor para seu cliente, senão só para descrever uma situação que cada vez mais aproxima o ambiente jurídico do mundo dos influenciadores digitais, seja isso bom ou não; mas, de qualquer forma, no tribunal do júri, quem acaba ficando em um “segundo” plano é a dogmática penal, o que só contribui para o empobrecimento da cultura jurídica brasileira… a qual já não é grande coisa.

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Mathias Oliveira Campos Santos

 

Referências

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1. “Segundo a teoria da possibilidade, deve-se afirmar o dolo eventual quando o autor conhece a possibilidade concreta da realização de um tipo penal e, apesar disso, atua.” (HILGENDORF, Eric; VALERIUS, Brian. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo. Marcial Pons. 2019, p. 113.)

2. “A teoria da probabilidade exige que o autor tenha considerado a realização do tipo penal como provável”. (HILGENDORF, Eric; VALERIUS, Brian. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo. Marcial Pons. 2019, p. 113.)

3. “A teoria da indiferença afirma o dolo eventual quando o autor reconhece a possibilidade da realização do tipo penal, mas, por indiferença a isso, resolve atuar” (HILGENDORF, Eric; VALERIUS, Brian. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo. Marcial Pons. 2019, p. 113.)

4. “A predominante teoria do consentimento ou da aceitação exige, para a afirmação do dolo eventual, que o autor “consinta”, internamente, com a realização do tipo penal considerada possível”.

5. HILGENDORF, Eric; VALERIUS, Brian. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo. Marcial Pons. 2019, p. 114-115.

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