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Razão, uma mentira inventada para domesticar o homem

No texto de hoje trago assunto já pincelado anteriormente nessa coluna, mas agora fazendo apontamentos mais específicos e tentando delinear o papel do Direito dentro do quadro da razão e da pulsão humana.

No texto anterior, publicado no dia 04 de janeiro do corrente ano, me apoiei na obra de Alain de Botton, intitulada “As consolações da filosofia”, para expor de maneira sucinta a lógica socrática, e a importância dessa nos dias de hoje, seja para emitir opiniões ou para delimitar conceitos.

Ao longo de referida obra o autor passa por vários pensadores que ao longo dos tempos, desde a Grécia antiga até a modernidade, ofertaram grandes contribuições não só para a Filosofia, mas também para a evolução cognitiva da humanidade. Dentre esses pensadores, está Michel Montaigne, filósofo do século XVI, que é colocado no livro como um ferino crítico da razão.

Sua filosofia, faz parte de um período, conforme narra Botton, em que houve um renascimento do pensamento dos filósofos greco-romanos. Estes, apoiavam-se na premissa de que o homem é um ser racional, sendo a razão a temperança, o equilíbrio dos anseios do corpo.

Montaigne, tendo contato com algumas obras desse tempo, faz crítica a essa razão, primeiro pelo fato de alçar pretensiosamente o homem, a um status superior, alcançando o patamar do divino. Segundo por conferir grau de superioridade e de distinção em relação aos animais.

É pois, nesse segundo aspecto que Montaigne se debruça mais, ou ao menos é o ponto que Botton pontua como mais destaque. Ainda hoje essa questão ainda prevalece, em que pese em alguns países já se conceber os animais não apenas como sencientes, mas como sujeitos de Direito.

O ser humano, concebido como animal racional, insiste em se descolar da natureza, do todo que o cerca, insiste na domesticação dos seres e de si mesmo. A razão ainda hoje é exaltada, e impera por meio de uma dualidade, que convenhamos, é o mito mais incrustado na sociedade. O embate razão e emoção é celebrado, “mais razão, menos emoção”, como se uma fosse uma característica positiva e outra negativa.

O mito da razão tenta desesperadamente afastar o ser humano da sua natureza. É um afastar-se do espelho, da realidade nua e crua do ser advindo do acaso. Ao longo do tempo, o homem e seu pensar civilizatório, buscou superar a sua e a própria natureza, e para isso, dotado de consciência apegou-se ao que chamou de racionalidade.

Essa a seu turno é percebida não só como a consciência do existir, mas também como característica que supostamente nos eleva perante os demais seres, os quais além de estarem condicionados a sua forma, vivem limitados pelo instinto, sendo interpretados pelo ser humano, como simples peças num todo ecossistêmico.

Montaigne, contrapondo esse ideal, sob o qual alçou-se o ser humano, reflete a razão não como sendo uma singularidade, ou um artifício superior, mas como um fardo, quase que uma maldição. O saber da existência consiste em saber das mazelas da vida, do cotidiano, das relações humanas. Os animais, na contramão disso, vivenciam cada dia em convergência com a natureza. Formigas são formigas, pássaros são pássaros, cães são cães e gatos são gatos.

O homem em sua soberba, mesmo após a revolucionária teoria da evolução das espécies, insiste em não se considerar um animal, e assim deixa de reconhecer que, apesar de ter ciência da existência, senso de propósito, perspectiva imaginativa, é ser falível, contraditório, um ser que no cotidiano, baseasse na conveniência e em convicções, produtos da emoção.

Enquanto não se compreender que a razão não é pura e simplesmente um filtro, mas sim uma convergência de fatores, dentre eles o aspecto emocional, o homem continuará perdendo-se em sua arrogância. Montaigne diz, conforme enuncia Botton, que falta ao homem perceber-se como meio sábio e meio estúpido, que é um animal inconstante e cheio de dúvidas por mais avançada que seja a técnica.

O Direito nesse contexto, tem de ser compreendido, antes de tudo, como sendo uma ciência apartada das ciência dura, ou seja, pautado como uma lei natureza, mais propriamente da física, como é o caso da gravidade. O Direito deve ser analisada sem restrições, sem limitar-se a essa falsa racionalidade, que lança o indivíduo humano como um ser dono de si. O Direito é manifestação de interesses, de preocupações e compreensões morais de mundo. Não à toa muitas são as questões de repercussão jurídica as quais quando analisadas, não possuem nenhuma base lógica a “la Spock”.

Pela ótica do contexto jurídico brasileiro, pautas como a liberação e legalização das drogas, descriminalização do aborto, isenção tributária para templos religiosos, possuem cunho muito mais emocional, isto é, atrelado a um moralismo, a uma política dos “bons” costumes, bem como interesses individuais e coletivos, do que fundada em aspectos científicos, imparciais.

O Direito está por sua vez impregnado de conveniência, desde a sua elaboração até a sua aplicação. Isto a primeira vista, não é um problema em si, mas uma constatação. Torna-se um problema quando se olha para a sociedade. Quanto mais desigual e fragmentada, do ponto de vista econômico, social e intelectual, mais as chances de um moralismo autoritário trajado de razão ilibada, perpetuar-se.

A razão nesse quadro, pode surgir com pretensões não ideológicas, supostamente afastadas do jogo de interesses, mas sim estrutura pela corporificação da técnica. E quanto a isso, voltamos ao ponto anterior, a racionalidade é uma mentira inventada para domesticar e iludir o homem.

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Felipe Gomes Carvalho

 

Referências

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DE BOTTON, Alain. As consolações da filosofia. Porto Alegre, RS: L&PM, 2019 – p. 142-147.

REIS, Émilien Vilas Boas; VIEIRA, Rogério Márcio Fonseca. Degradação Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

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