A ONU elenca como princípios da pessoa idosa a independência, participação, assistência, autorrealização e dignidade, a partir dos quais se pode vislumbrar a maior dinamicidade e ampliação de tutela e proteção que se pretende conferir aos idosos, como parte dos objetivos da agenda de Direitos Humanos.
O paradoxo da autonomia e proteção da pessoa idosa permeia a atividade estatal, social e familiar, encontrando estreita ligação com o art. 230 da Constituição Federal, que prevê, respectivamente, o Estado, a família e a sociedade em geral como responsáveis pelo dever de amparo e proteção dos idosos “assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”. A defesa de um envelhecimento ativo e saudável, como proposto pela ONU, encontra certos entraves na forma como se enxerga a pessoa idosa dentro da própria família, havendo casos de discriminação e objetificação do idoso pelos seus próprios familiares.
É recorrente também que a proteção realizada pelo núcleo familiar tenda à “infantilização” do idoso, deixando de o conceber como verdadeiro sujeito de direito, para o compreender a partir de preocupações majoritariamente voltadas para questões de saúde e previdência social.
Uma gama de preconceitos rodeia o envelhecimento em nosso país. A sociedade precisa ser educada para compreender melhor esta etapa da vida e repensar a longevidade. A importância de garantir aos idosos um envelhecimento sadio suscita uma reflexão necessária no nosso país.
Faz-se indispensável um olhar atencioso sobre o que é ser idoso em uma sociedade imediatista, onde a desigualdade social, o racismo, a solidão, a exploração e a violência de entes queridos é constante. O tempo de existência desses sujeitos carece de respeito e empatia. Parafraseando Mario Quintana poema o tempo (1981), o tempo é como um rio que flui, que conta as experiências ancoradas na memória corporal, que não tem caminho de volta, mas permite compartilhar histórias únicas que marcam e constroem a existência. O texto de Quintana convida os leitores a olharem com cuidado e respeito os que estão nesse processo de envelhecimento.
Está na hora de repensar as atitudes que infantilizam o idoso e o assistencialismo. Principalmente nas camadas mais exploradas, é comum que o idoso seja tratado como indigente e que se transforme em esmola, ou favor, as poucas políticas públicas que amenizam essa fase da existência, em relação às quais se configuram direitos humanos estabelecidos como direitos sociais em diplomas legais (Lei n. 10.741/2003). O Estatuto do Idoso enfatiza sua existência como locus privilegiado para o início de um novo tempo, em que a dignidade desses sujeitos seja um marco fundamental, visando descartar determinados estereótipos na busca de uma velhice mais digna e menos traumática.
Repensar como vivemos e como estabelecemos relações com o corpo que envelhece passa pela compreensão de que o idoso, nesse grande palco que é o mundo, deve permanecer em cena jogando o jogo da existência, uma vez que envelhecer bem é um direito assegurado pelo Estatuto do Idoso.
O estatuto tem como pressuposto descartar determinados estereótipos a respeito da velhice para ressignifica-la, buscando garantir aos idosos, independente da classe social, direitos fundamentais. Os direitos fundamentais são, segundo Bonavides (2015, p.560), “direitos sociais que o direito qualifica como tais”, ou seja:
São todos aqueles que possibilitam ao sujeito ser percebido como ser-no-mundo, neste contexto os direitos fundamentais se vinculam à liberdade e à dignidade humana, enquanto um conjunto de valores históricos e filosóficos nos conduzirá a esse ideal de pessoa humana. (BONAVIDES, 2015, p. 562).
Os idosos são seres no mundo, cuja existência é construída pela forma como o experenciam. Estar no mundo significa, inclusive, ser sujeito de deveres e direitos. A temporalidade é fundamental para a construção dos direitos sociais fundamentais que se enraízam na naturalidade do ser humano, cuja essência é a liberdade de construir o seu estar no mundo. “E ser livre é caminhar a via da causação dos próprios atos.” (GUIMARÃES, 2007, p.65). Portanto, estar no mundo e frequentá-lo, torna todos os sujeitos iguais, devido à sua complexidade e à sua necessidade de ser compreendido como ser-no-mundo. Desta forma, enquanto ser de existência, todos são iguais.
Insta salientar que, para definir a especificidade ontológica do ser-no-mundo sobre a qual se funda a sua dignidade, é necessário compreender que algumas características definem a sua essência, a saber : a liberdade como fonte da vida ética, a alteridade, a autoconsciência, a sociabilidade, a historicidade, e o cuidado. Estes são fatores primordiais para a compreensão do idoso enquanto sujeito de existência.
O envelhecimento da população é um fenômeno mundial que traduz questões sanitárias, antropológicas, filosóficas, econômicas, legais, geracionais, etc. Levanta também a ideia de que o idoso tem o direito de ser compreendido como ser de existência, de ser cuidado, da importância de se criar condições para a sua permanência em cena.
O valor da dignidade humana atinge todos os setores da ordem jurídico-política brasileira, sendo dever do Estado editar leis e implementar políticas públicas visando a satisfação das necessidades vitais básicas de seus cidadãos e velando pelo seu bem–estar. Da mesma forma, a sociedade tem o dever de agir conjuntamente para tornar efetivas leis e politicas públicas, ao mesmo tempo em que é uma tarefa do Estado a garantia da dignidade humana. As ações estatais devem estar guiadas, portanto, no sentido da preservação das condições da dignidade humana.
O envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção, um direito social. É dever do Estado garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde mediante a efetivação de políticas públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade. A garantia desses direitos está determinada na legislação com o advento do Estatuto do Idoso – Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.
O referido estatuto proíbe qualquer tipo de discriminação, negligência, violência, crueldade ou opressão contra a pessoa idosa. Estabelece que o Estado, a sociedade e a família têm a obrigação de assegurar a dignidade da pessoa idosa. Garante o acesso a atividades educativas, culturais e de lazer, à saúde, alimentação, trabalho, cidadania, liberdade, respeito e convivência familiar e comunitária.
Ademais, é um marco para os direitos da pessoa idosa, mas ainda é fundamental disseminar tais informações e direitos da legislação.
Esse processo demanda a construção de uma rede que garanta, desde a sua origem, uma experiência diferenciada, motivadora, mobilizadora, informativa, formativa e permanente; capaz de transformar as realidades e as contenções acerca da pessoa idosa e do significado do envelhecer, assegurando uma visão integrada de direitos humanos.
A promoção, proteção e defesa dos direitos das pessoas idosas é um requisito fundamental para a democracia, a construção da cidadania e o desenvolvimento sustentável dos povos.
Colocar em prática o respeito aos direitos fundamentais significa considerá-los a partir de uma visão integral que estabeleça medidas concretas e o compromisso firme do governo e da sociedade em conjunto, para vencer os obstáculos econômicos, sociais, políticos e culturais que podem impedir a sua plena vigência. Neste sentido, o Estado tem o dever de criar as condições para o cumprimento dos direitos, mediante o envolvimento de todas as instâncias governamentais e da sociedade civil, por meio de ações que aportem este propósito. Não se trata de buscar um ideal de envelhecimento, mas sim de possibilitar às pessoas idosas condições e recursos para que vivam o envelhecer da forma como desejarem. A memória afetiva é aliada do tempo e este é solidário com as inquietações existenciais, e nos permite sonhar com o fim da invisibilidade existencial dos idosos.
Estar no mundo para além da idade também é a mensagem que busco trazer com este texto. Saliento a necessidade de deixarmos de lado o senso comum que diz que “quem ficou velho deve esperar a morte” ou que o idoso é apenas um ser improdutivo. Ao contrário, podemos enxergar os idosos como pessoas que sempre têm algo a oferecer para os considerados “novos”, entender o mundo a partir de seus conhecimentos acumulados, remover o abismo da exclusão e respeitar as suas escolhas. O sofrimento não deve ser normalizado, é importante ter empatia com o diferente e, assim, aprender a cuidar do outro.
Ou seja, é pelo cuidado que o sujeito estabelece uma relação com o mundo, com outrem e consigo mesmo, consequentemente “todo encontro floresce sobre o solo do cuidar”. (RESWEBER, 1979, p.95). Pois “cuidar é mais que um ato; é uma atitude; abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro”. (BOFF, 1999, p.33). Portanto, bem-estar, dignidade e garantia dos direitos fundamentais são pontos cruciais de proteção, aliados à busca da promoção do idoso como sujeito de direito e indivíduo autônomo e repersonalizado no ambiente familiar.
Referências
____________________
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do homem – compaixão pela terra. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 30. ed. São Paulo: Imprenta, 2015.
BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Presidência da República. Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.
GUIMARÃES, Aquiles Côrtes. Fenomenologia e diretos humanos. Rio de Janeiro: Editora, Lumenen Juris, 2007.
QUINTANA, MARIO. Antologia poética. rio de janeiro companhia das letras, 1981.
RESWEBER, Jean Paul. O pensamento de Martin Heidegger. Coimbra: Livraria Almeida, 1979.