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Violência obstétrica: um fenômeno vinculado à violação dos direitos elementares das mulheres

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Com origem nos preconceitos e discriminações relacionados à sexualidade, a violência obstétrica é uma das inúmeras violências de gênero que as mulheres enfrentam pelo simples fato de serem mulheres.

A “violência obstétrica” consiste no desrespeito à mulher, à sua autonomia, ao seu corpo e seus processos reprodutivos, podendo se manifestar por meio de violência verbal, física ou sexual, bem como pela adoção de intervenções e procedimentos desnecessários e devido embasamento científico.

Segundo explica Hemmerson Magioni, médico obstetra fundador do Instituto Nascer:

Violência obstétrica ainda é um conceito em construção. Transita entre o desrespeito humano durante o cuidado ao nascimento até a prática de condutas médicas sem respaldo científico.1 

Segundo a Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro brasileiras sofre violência no parto.2

A utilização do termo é alvo de inúmeras críticas por determinados setores da sociedade, nesse sentido, no dia 03 de maio de 2019 o emprego do termo foi proibido pelo Ministério da Saúde3 sob a justificativa de que ele era “impróprio” e dava a entender que todas as agressões causadas por profissionais da saúde eram propositais.

Entretanto, após posicionamento contrário de órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Ministério Público Federal e o Conselho Nacional de Saúde (CNS), o Ministério da Saúde reconheceu o direito das mulheres usarem a expressão “violência obstétrica” para retratar maus tratos, desrespeito e abusos no momento do parto, mas manteve a decisão de não usar esse termo em suas normas e políticas públicas. 4

Cabe ressaltar que à época o Conselho Federal de Medicina reiterou o entendimento do ministério e, em nota, declarou que:

o CFM entende que o termo ‘violência obstétrica’ é inapropriado, devendo ser abolido, pois estigmatiza a prática médica, interferindo de forma deletéria na relação entre médicos e pacientes.5 

É necessário destacar que o termo violência obstétrica não se restringe apenas ao trabalho de profissionais de saúde, mas, também, a falhas estruturais de hospitais, clínicas, e do sistema de saúde como um todo.

A violência obstétrica não é prevista como crime no Código Penal brasileiro, mas os fatores que a constituem sim. Os atos compreendidos como violação aos direitos e garantias das gestantes e parturientes podem ser enquadrados em crimes já previstos na legislação brasileira, como nos crimes de lesão corporal, importunação sexual e, até mesmo, injuria.

Na madrugada do dia 11 de julho de 2022 o anestesista Giovanni Quintella Bezerra, de 32 anos, foi preso depois que funcionários do Hospital Estadual da Mulher Heloneida Studart, na Baixada Fluminense, filmaram o momento em que ele passava o pênis no rosto da parturiente. O ato ocorreu durante uma cirurgia cesariana, nas imagens verifica-se que o agressor estava afastado da equipe médica, que não conseguia ver o que o anestesista fazia em razão do isolamento do campo cirúrgico e, que a vítima estava desacordada. 6

A Justiça do Rio aceitou no dia 15 de julho de 2022 a denúncia do Ministério Público e tornou réu o anestesista. A denúncia aponta o crime de estupro de vulnerável e foi aceita pelo juiz Luís Gustavo Vasques, da 2ª Vara Criminal de São João de Meriti, na Baixada Fluminense.7

A violência cometida pelo anestesista além de configurar o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A, §1° CP) configura uma forma de violência obstétrica.

Não existe uma regra para definir quais atos podem, ou não, caracterizar violência obstétrica, devendo ser levado em consideração o sentimento, o desconforto e o desrespeito sofrido pela parturiente. Procedimentos desnecessários ou não autorizados pela gestante também se encaixam no quadro de violência obstétrica.

Há de se ressaltar que existem inúmeras práticas que configuram a violência obstétrica que foram naturalizadas ao longo dos anos e, que ainda hoje, passam despercebidas pelas parturientes, como realizar cesárea sem indicação médica, a manobra de Kristeller (quando a barriga da mulher é empurrada para facilitar o nascimento do bebê), bem como a episiotomia sem indicação (trata-se de um corte realizado nas partes íntimas da parturiente para ampliar o canal de parto), a qual é uma prática corriqueira no Brasil, onde 53,5% dos partos normais são feitos com episiotomia).9

Uma prática machista e que também se tornou usual é o chamado “ponto do marido”, que também é uma forma de violência obstétrica através da mutilação vaginal, e que na maioria das vezes é feita sem que a própria mulher tenha conhecimento. A prática consiste em dar pontos, além do necessário, depois da episiotomia, no intuito de “apertar a vagina” e, supostamente, dar mais prazer ao homem, desse modo transformando a mulher em mero objeto de prazer e satisfação masculina.10 Tal conduta desconsidera a autonomia da parturiente e sua capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade e, pode culminar em consequências negativas e desastrosas para a qualidade de vida das mulheres.

Segundo Ibone Olza, psiquiatra perinatal e autora do livro Parir: El Poder del Parto (“Parir: o Poder do Parto”):

As sequelas das episiotomias e do ‘ponto para o marido’ podem afetar a vida sexual e repercutir muito negativamente na relação do casal. Além dos sintomas de ansiedade, há sequelas físicas, como dor na penetração, incontinência urinária ou fecal, ou dor vulvar recorrente.11 

A Declaração da ONU sobre a Eliminação da Violência Contra a mulher, de 1993 reconhece que a Violência Contra a mulher, constitui grave violação aos direitos humanos e limita total ou parcialmente o exercício dos demais direitos fundamentais.12

A violência obstétrica é uma forma de violência de gênero, e, sobremaneira, viola direitos fundamentais da nulher em um momento de extrema vulnerabilidade. A gestação e o parto podem ser um dos momentos mais especiais e transformadores na vida de uma mulher, ou ser lembrado como um momento de violência, dor e uma experiência profundamente traumática para a mulher que se sentiu agredida, psicologicamente ou fisicamente.

A mulher deve ser protagonista da sua própria história e não pode sofrer restrições no que tange às suas escolhas sobre o seu corpo e sobre a liberdade para dar à luz, devendo ser assegurado pelo Estado o direito a ter uma gestação e parto adequados e humanizadas.

A violência obstétrica viola a integridade física da mulher e é óbice à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, além de violar os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, seu direito de livre escolha e o direito de decidir sobre o próprio corpo.13

Dessa forma, é imprescindível que o tema tenha maior destaque, resistindo a onda machista e conservacionista que tenta invisibilizar e ocultar a temática (como o posicionamento do Ministério da Saúde em 2019), para que a temática seja objeto de políticas públicas que visem combater a violência institucional obstétrica, garantindo, assim, a efetividade dos direitos e garantias fundamentais da mulher, que por muito tempo têm sido violadas nas instituições de saúde públicas e privadas.

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Sarah Batista Santos Pereira

 

Referências

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1. DEUS, Lara. Violência obstétrica: o que é, tipos e leis. MinhaVida. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3zs8o38. Acesso em: 23 jul. 2022.

2. FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO; SESC. Violência no parto: Na hora de fazer não gritou.
2013. Disponível em: https://bit.ly/2Thmz4t. Acesso em: 23 jul. 2022.

3. DEBATEDORAS cobram uso do termo violência obstétrica pelo Ministério da Saúde. Agência Câmara de Notícias. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3aYp0pU. Acesso em 23 jul. 2022.

4. ENTENDA o que é violência obstétrica e como denunciá-la de acordo com as leis brasileiras. O Globo. 2021. Disponível em: http://glo.bo/3zqw1cq. Acesso em: 23 jul. 2022.

5. VIOLÊNCIA obstétrica: o que é, como identificar e como denunciar. G1. 2021. Disponível em: http://glo.bo/3cBapBo. Acesso em: 23 jul. 2022.

6. SALLES, Stéfano; COUTO, Camille. Médico é preso em flagrante por estuprar paciente durante parto em hospital do RJ. CNN Brasil. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3Btkafp. Acesso em: 23 jul. 2022.

7. TORRES, Lívia. Anestesista flagrado em estupro de mulher durante o parto vira réu. G1. 2022. Disponível em: http://glo.bo/3zsTvOj. Acesso em: 23 jul. 2022.

8. ENTENDA o que é violência obstétrica e como denunciá-la de acordo com as leis brasileiras. O Globo. 2021. Disponível em: http://glo.bo/3zqw1cq. Acesso em: 23 jul. 2022.

9. DE LARA, Bruna. Ponto do Marido. The Intercept Brasil. 2018. Disponível em: https://bit.ly/2PXIoDx. Acesso em: 23 jul. 2022.

10. ENTENDA o que é violência obstétrica e como denunciá-la de acordo com as leis brasileiras. O Globo. 2021. Disponível em: http://glo.bo/3zqw1cq. Acesso em: 23 jul. 2022.

11. CARPALLO, Silvia C. O ‘ponto para o marido’ não é só um mito do parto. El País. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3zteFf4. Acesso em: 23 jul. 2022.

12. DA CRUZ, Karen Dayse Vieira; DA SILVA, André Ricardo Fonseca. Violência Obstétrica: violação aos direitos fundamentais da mulher. Monografia (Graduação em Direito) – Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ. João Pessoa. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3RWDXt7. Acesso em: 23 jul. 2022.

13. DA CRUZ, Karen Dayse Vieira; DA SILVA, André Ricardo Fonseca. Violência Obstétrica: violação aos direitos fundamentais da mulher. Monografia (Graduação em Direito) – Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ. João Pessoa. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3RWDXt7. Acesso em: 23 jul. 2022.

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