O Direito ao Sossego na Era Digital: uma Análise da Responsabilidade Civil frente ao Assédio de Consumo através de ligações e mensagens incessantes

O Direito ao Sossego na Era Digital: uma Análise da Responsabilidade Civil frente ao Assédio de Consumo através de ligações e mensagens incessantes

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A Era Digital e o Assédio de Consumo

Na era digital, onde a tecnologia se tornou a ponte essencial entre empresas e consumidores, surgiram inúmeras oportunidades de interação. No entanto, junto com essas oportunidades, emergiu uma prática insidiosa e invasiva: o assédio de consumo perpetrado por grandes corporações. Essas empresas, em sua incessante busca por lucro, não hesitam em bombardear os telefones de seus clientes com chamadas e mensagens indesejadas.1

Seja para cobranças indevidas, venda agressiva de produtos ou serviços, ou simplesmente para manter sua marca presente na mente do consumidor, essa forma de assédio não só invade a privacidade e perturba a tranquilidade dos consumidores, mas também levanta sérias questões éticas e jurídicas que merecem uma análise cuidadosa.

Com o advento das tecnologias de comunicação instantânea e o acesso facilitado aos dados pessoais dos consumidores, as grandes corporações encontraram novos meios para alcançar seus alvos de mercado. Utilizando técnicas sofisticadas de marketing digital e telemarketing, essas empresas conseguem rastrear e contactar consumidores a qualquer momento do dia, resultando em uma invasão constante e indesejada na vida cotidiana das pessoas.2 Essa prática, além de ser uma afronta direta ao direito ao sossego, traz à tona a necessidade urgente de proteção jurídica robusta para assegurar a dignidade e a integridade dos consumidores na era digital.

Sobre o assédio de consumo:

O assédio de consumo é uma prática comercial que, muitas vezes, envolve estratégias agressivas ou manipulativas por parte de empresas ou vendedores com o objetivo de induzir os consumidores a adquirir produtos ou serviços. Essas táticas podem ser variadas, indo desde pressões psicológicas e promessas enganosas até a criação de situações de urgência artificial.3

Desta forma, o assédio de consumo demonstra-se como uma novel espécie de dano, recém-surgida, caracterizado como novo dano da era digital, de cunho moral, com acepção “fundamentada nos direitos básicos do consumidor, garantindo a integridade psíquica das pessoas conectadas a Internet através de instrumento jurídico já historicamente consagrado, a saber, a responsabilidade civil”.4

A Perturbação do Direito ao Sossego: “0303” está ligando

Essa importunação realizada pelas empresas é patológica, pois retira a tranquilidade do cidadão médio, afrontando o direito ao sossego, intrinsicamente ligado à garantia fundamental da dignidade da pessoa humana consubstanciada no artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1988.5 O direito ao sossego, também conhecido como “right to be left alone“, é um componente essencial da vida digna, protegendo os indivíduos contra interferências indesejadas em sua privacidade e tranquilidade.6

Essas incessantes importunações podem ser caracterizadas como práticas abusivas, de acordo com o artigo 37, §2º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC),7  devido à sua natureza repetitiva e desrespeitosa ao direito do consumidor de não ser incomodado. Além disso, o artigo 6º, IV, do CDC assegura aos consumidores a proteção contra métodos comerciais coercitivos ou desleais, incluindo práticas de assédio de consumo que claramente se enquadram nesse contexto.

É comum que diversas empresas, especialmente do setor de telecomunicações e cartões de crédito, utilizando números distintivos como os iniciados por “0303”, enviem múltiplas mensagens diárias, em horários alternados e até noturnos, com o intuito de promover novos planos e ofertas, mesmo para indivíduos sem contratos vigentes.

Para todos os efeitos legais, os consumidores importunados por tais práticas têm respaldo para contestá-las pela figura do bystander, o consumidor por equiparação (ou sem contrato de consumo), de acordo com o artigo 17 do CDC, podendo exigir que as importunações cessem, inclusive judicialmente. O consumidor detém o direito de exigir que as empresas cessem as importunações por meio de ligações e envio de mensagens publicitárias, configurando um exercício legítimo da sua vontade, amparado pelo princípio da boa-fé objetiva.

Princípios Fundamentais e Abuso de Direito

Caso tais práticas persistam após a expressa manifestação do consumidor em não desejar mais ser abordado, configura-se uma violação ao direito ao sossego, caracterizando-se, assim, um desrespeito aos preceitos fundamentais que regem as relações de consumo. Se o consumidor expressamente declara sua recusa em adquirir os produtos ou serviços da empresa demandada, qualquer insistência injustificada configura-se como um claro exemplo de abuso de direito. É essencial que as empresas reconheçam e respeitem as decisões dos consumidores, agindo de forma ética e responsável, em conformidade com os princípios legais.

O descumprimento desse princípio fundamental não apenas expõe a empresa a possíveis sanções legais, mas também mina a confiança do consumidor no mercado, comprometendo a própria sustentabilidade e reputação da empresa no longo prazo. Nesse contexto, é evidente a responsabilidade civil, conforme preconizam os artigos 186, 187 e 927 do Código Civil Brasileiro,8 em consonância com o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor. A inércia das empresas em cessar as importunações representa não apenas um dolo ao consumidor, mas também um abuso de direito e uma afronta à boa-fé objetiva, retirando-lhe o direito ao sossego e à tranquilidade.

Configuração do Assédio e a Reparação de Danos sob a ótica jurisprudencial e pela Teoria do Desvio Produtivo

De mesmo modo, é pertinente destacar que as ligações incessantes referentes a supostas dívidas inexistentes também configuram danos passíveis de reparação. Tais práticas não apenas infringem o direito ao sossego do consumidor, mas também podem induzi-lo a situações de constrangimento e angústia, violando, assim, sua dignidade e integridade psicológica. Nesse sentido, a insistência das empresas em contatar o consumidor para cobrar dívidas não reconhecidas demonstra claramente uma conduta negligente e lesiva, que não pode passar despercebida na era digital.

Ademais, pela Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor (ou Perda do Tempo Útil), a perda de tempo útil imposta pelo fornecedor, de forma desnecessária, caracteriza a abusividade e enseja indenização por danos morais. Conforme indica Túlio Coelho Alves, com a perda do tempo útil, “vê-se quebra da legítima expectativa, haja vista que o consumidor acaba por despender de tempo para a resolução dos referidos entraves”.9

Ilustrando tais situações no contexto jurisprudencial, torna-se relevante trazer à baila decisão do processo de nº 5009770-37.2023.8.13.0567, da Unidade Jurisdicional da Comarca de Sabará/MG:

Quanto ao pedido de indenização por danos morais, entendo que a cobrança indevida e abusiva de quantia, referente ao serviço que o requerente já havia solicitado a interrupção, é ato ilícito que enseja o dever indenizatório, pois, além de ser cobrado por dívida inexistente, as cobranças eram excessivas e foram do horário comercial, o que causa transtornos que superam os meros dissabores do cotidiano.

Assim, a provocação inoportuna por atitude inconsequente da parte ré gerou a perda do tempo útil da consumidora, pois gastou seu tempo livre em leitura de mensagens constantes e indevidas.

Nessa linha de raciocínio, entendo que uma das mais lamentáveis das perdas é a perda do tempo e, por isso, a contribuição dessa perda por empresas negligentes que atuam de forma desarrazoada acarretam ao consumidor danos morais passíveis de compensação. (grifamos) (TJ-MG, Unidade Jurisdicional da Comarca de Sabará/MG, autos de nº 5009770-37.2023.8.13.0567, abril de 2024).10

Com efeito, a referida decisão reconhece a Teoria do Desvio Produtivo, sendo que a constante interrupção do tempo útil do consumidor por meio de incessantes ligações e envio de mensagens representa não apenas uma inconveniência, mas também uma violação do seu direito à eficiência e produtividade, vez que as chamadas indesejadas desviam o foco de atividades importantes, comprometendo não só a realização de tarefas prioritárias, mas também a qualidade de vida do consumidor, bem como sua própria saúde mental.

Em outra decisão, de nº 0701246-09.2023.8.07.0003, a Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal concluiu que:

JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. CANCELAMENTO DE SERVIÇO SMS PUBLICITÁRIO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. TELEFONIA. CONSUMIDOR. MENSAGENS EXCESSIVAS. ABUSO DE DIREITO. DANO MORAL CONFIGURADO. VALOR REDUZIDO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (grifamos) (TJ-DF, Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Relatora: Marilia de Avila e Silva Sampaio, Autos de nº 0701246-09.2023.8.07.0003, dezembro de 2023). 11

Em suma, ao proferir a decisão no caso, a Turma destacou que as evidências apresentadas pela Autora eram suficientes para indicar a falha na prestação de serviços pela empresa ré e a prática comercial abusiva, caracterizada pelo envio de mensagens publicitárias a qualquer momento do dia. O colegiado ainda esclarece que a demandante conseguiu validar a recepção de inúmeras mensagens, mesmo após solicitar o cancelamento.

Portanto, tal prática não só caracteriza abusividade por parte do fornecedor, mas também justifica a necessidade de compensação por danos morais, reconhecendo o impacto negativo causado pela perda do tempo útil.

A recente jurisprudência reflete uma preocupação crescente com as práticas abusivas das empresas no contexto digital, especialmente no que diz respeito ao assédio de consumo através de ligações e mensagens incessantes. As decisões judiciais têm reconhecido a violação do direito fundamental do consumidor ao sossego e à eficiência, respaldando a aplicação da Teoria do Desvio Produtivo.

O tempo desperdiçado e a interferência nas atividades cotidianas do consumidor são agora considerados não apenas como inconveniências, mas como danos morais passíveis de compensação. Essa abordagem reforça a importância de proteger os consumidores contra práticas comerciais abusivas, não apenas para garantir sua tranquilidade, mas também para preservar a integridade de suas atividades e saúde mental.

Do Papel da Responsabilidade Civil Contemporânea na Prevenção de Novos Danos

Diante desse panorama, é imperativo que as empresas assumam responsabilidade por suas ações e respeitem o direito dos consumidores ao sossego e à tranquilidade. Com efeito:

Em última análise, a proteção do consumidor contra o assédio de consumo exige uma abordagem holística que envolva regulamentações, conscientização pública, educação e ações de fiscalização. É fundamental que os sistemas jurídicos e regulatórios evoluam para lidar com essa nova espécie de dano, garantindo que os consumidores não sejam prejudicados por práticas comerciais antiéticas ou ilegais.13

Caso o consumidor expresse seu desejo de ver as importunações cessarem, sejam através de chamadas ou mensagens, deverá indicar para as empresas, que devem parar com o envio de conteúdo publicitário (ou dívidas inexistentes) de forma imediata. Caso contrário, o consumidor poderá acionar o Poder Judiciário, através de ações de obrigação de (não) fazer (não envio de mensagens/chamadas para o número indicado), requerendo ainda indenização por danos materiais e morais.

Para mitigar esses abusos, é essencial que as empresas assumam a responsabilidade por suas ações e respeitem os direitos fundamentais dos consumidores, incluindo o direito ao sossego e à tranquilidade. Além disso, medidas proativas, como regulamentações mais rigorosas, conscientização pública e educação sobre os direitos dos consumidores, são necessárias para combater eficazmente o assédio de consumo.

Somente por meio de uma abordagem holística e coordenada, que envolva tanto o poder público quanto o setor privado, será possível garantir um ambiente de consumo justo, ético e respeitoso, que promova a confiança e a equidade entre empresas e consumidores.

 

Referências

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1. MARTINS, Guilherme Magalhães; JÚNIOR, José Luiz De Moura Faleiros; BASAN, Arthur Pinheiro. A responsabilidade civil pela perturbação do sossego na internet. Revista de Direito do Consumidor, p. 227-253, 2020, p. 233.

2. BARBOSA, Caio César do Nascimento. A novidade média na Idade Mídia: a publicidade digital exagerada e o consumo desenfreadoMagis – Portal Jurídico. 2023. Disponível em: link. Acesso em: 24 jul. 2024.

3. BARBOSA, Caio César do Nascimento. Consumidor sob pressão: breves notas sobre o assédio de consumo no ciberespaço. Magis – Portal Jurídico. 2023. Disponível em: link.  Acesso em: 24 jul. 2024.

4. BASAN, Arthur Pinheiro. Publicidade digital e proteção de dados pessoais: O direito ao sossego. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. E-book, p. 37.

5. BRASIL. Constituiçao da República Federativa do Brasil. 1988. Disponivel em: link. Acesso em: 20 jul. 2024.

6. SILVA, Michael César; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; BARBOSA, Caio César do Nascimento. Digital Influencers e Social Media: repercussões jurídicas, perspectivas e tendências da atuação dos influenciadores digitais na sociedade do hiperconsumo. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024, p. 258.

7. BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: link. Acesso em: 20 jul. 2024

8. BRASIL. Código Civil. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponivel em: link. Acesso em: 20 dez. 2023.

9. ALVES, Túlio Coelho. A aplicação da Teoria do Desvio produtivo. Magis – Portal Jurídico. 2022. Disponível em: link. Acesso em: 26 out. 2023

10. TJ-MG, Unidade Jurisdicional da Comarca de Sabará/MG, autos de nº 5009770-37.2023.8.13.0567, abril de 2024.

11. TJ-DF, Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Relatora: Marilia de Avila e Silva Sampaio, Autos de nº 0701246-09.2023.8.07.0003, dezembro de 2023.

12. BARBOSA, Caio César do Nascimento. Consumidor sob pressão: breves notas sobre o assédio de consumo no ciberespaço. Magis – Portal Jurídico. 2023. Disponível em: link. Acesso em: 26 out. 2023

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