O art. 5º da Lei Geral de Proteção de Dados (13.709/2018) traz várias definições, a fim de ajudar tanto intérprete como a sociedade civil a compreender melhor a lei, a qual traz, ao longo de todos os artigos, termos novos como banco de dados (IV), controlador (VI), operador (VII), encarregado (VIII) e relatório de impacto a proteção de dados (XVII). Nessa adição ao vocabulário jurídico aparece uma expressão já conhecida, qual seja, a figura do titular, adaptada à proteção de dados. Segundo o art. 5ª, V, é a “pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento”.
De início é perceptível a preocupação do legislador em estabelecer a relação de titularidade unicamente à pessoa natural, em consonância à tônica da lei nos arts.1º, caput, estabelecendo que a LGPD se volta à proteção dos “direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”, bem como do art. 5º, IV, V e IX, de forma que a pessoa jurídica poderá ser agente de tratamento, mas jamais titular.
Passando a análise dos direitos do titular, no capítulo III, o art.17, caput dispõe que “toda pessoa natural tem assegurada a titularidade de seus dados pessoais e garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de privacidade, nos termos desta Lei”. Nasce aqui uma problemática: qual a natureza dessa titularidade? Seria predominantemente pessoal ou real?1
Antes de adentrar na controvérsia cumpre destacar: o que é cada um desses ramos e suas diferenças? Inicialmente cabe aos direitos reais, segundo doutrina especializada, regular o aproveitamento econômico dos bens,2 pautado pela eficácia absoluta e pela aderência, esta definida como exercício do poder imediato sobre a coisa e aquele como “reflexo da relação jurídica, variável de acordo com o conteúdo desta última, sobre qualquer pessoa que venha a ocupar alguma situação subjetiva (de direito ou de fato) atinente à coisa”.3 O direito pessoal ou de crédito (também chamado obrigacional), em oposição clássica ao direito real, seria a relação entre pessoas, estabelecida de forma mediata.
Contudo, essa diferenciação tem se tornado a cada dia mais difícil de ser percebida, uma vez que a noção clássica de eficácia erga omnes, segunda a qual o direito real era oponível a todos, deixou de ser característica exclusiva para ser repassada também aos direitos fundamentais, como pode ser lido no art.5, §1º da Constituição: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. A eficácia imediata também não é característica única dos direitos reais, podendo ser encontrada na locação e no comodato, figuras do direito obrigacional.4
Há posicionamento apontando a sequela como principal diferenciação entre os dois ramos. Ela seria “a possibilidade de exercício do direito real com o afastamento de todos aqueles que se contrapõem. O direito de sequela incide independentemente da boa ou má-fé do terceiro contra o qual se opõe o direito real”.5
Adiciona-se a esse difícil debate o comportamento dos dados pessoais que possuem características não só de bens passíveis de serem comercializados, servindo de contraprestação aos serviços oferecidos, mas como aspectos da personalidade do indivíduo que, quando indevidamente tratados podem tornar distorcida a imagem da pessoa no mundo informatizado. Há, assim, aspectos não só de natureza patrimonial, mas também extrapatrimonial. Rodotà já alertava o erro de reduzir a disciplina da circulação de informações a uma lógica unicamente proprietária, desconsiderando outra linha
[…] ligada às consequências sociais e às consequências para o próprio interessado, da circulação de determinadas categorias de informações pessoais e de informações coletadas para finalidade específicas: problema este que dever ser enfrentado considerando-se valores e interesses diversos daqueles puramente proprietários.6
Frente a esse impasse de reduzir o tratamento a apenas uma das matérias, Roberta Maia defende que a titularidade seria além da mera categoria de propriedade, esta sendo espécie daquela. Segundo a autora o posicionamento do legislador foi de
[…] não apenas assegurar o controle dos dados pessoais ao seu titular – o que reflete, de algum modo, a ideia moderna de privacidade –, mas tutelá-los por meio de sua efetiva atribuição à pessoa física a quem estão atrelados, criando com isso um vínculo direto e imediato, antes peculiar aos direito reais. Tal opção serve para demonstrar aos estudiosos do direito civil que, embora os direitos fundamentais tenham expandido o espectro das relações jurídicas que gozam de tutela prioritária, por meio da oponibilidade erga omnes, mesmo antes do advento da LGPD, muitos parecem não ter percebido que o pretenso caráter absoluto de alguns vínculos jurídicos não é mais privativo dos direitos reais.7
Essa leitura mostra-se interessante, pois permite ao titular dispor com mais liberdade de suas informações, ao mesmo tempo que poderá dispor de meios de controle dos dados ligados tanto ao direito real como ao direito pessoal.
O que nunca se pode descuidar é que a pessoa natural não se encontra em posição igualitária frente aos agentes de tratamento e ao mercado de dados contemporâneo. Por melhor que sejam as intenções do legislador na busca de um maior protagonismo, o titular, consequentemente a coletividade, ainda necessitam de constante proteção. Nas palavras de Shoshana Zuboff, nós não somos os clientes do capitalismo de vigilância,8 somos as fontes do superávit, “objetos de uma operação de extração de matéria-prima tecnologicamente avançada e da qual é cada mais impossível escapar. Os verdadeiros clientes […] são as empresas que negociam nos mercados de comportamento futuro”.9
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Referências
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1. Boa parte das reflexões desse artigo vieram a partir da leitura dos textos: MAIA, Roberta Mauro Medina. A titularidade de dados pessoais prevista no art.17 da LGPD: direito real ou pessoal? In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (Org.). Lei Geral de Proteção de Dados e suas repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019; MAIA, Roberta Mauro Medina. A natureza jurídica da titularidade dos dados pessoais. In: MULHOLLAND, Caitlin (Org.). A LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago, 2020.
2. TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERIA, Pablo. Direitos Reais, Fundamentos do Direito Civil, v.5. Rio de Janeiro, Forense, 2020, p.9.
3. GIORGIANNI, Michele, Contributo ala Teoria dei Diritti di Godimento su Cosa Altrui, Milano: Giuffré, 1940, p.166, tradução livre, apud TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERIA, Pablo. Direitos Reais, Fundamentos do Direito Civil, v.5. Rio de Janeiro, Forense, 2020, p.8.
4. OLIVA, Milena Donato. Qual a diferença entre os direitos reais e os pessoais? Rio de Janeiro. 27 ago. 2021. Instagram: @milenadonatooliva. Disponível em: https://bit.ly/2Y5X24O. Acesso em: 30 set. 2021.
5. OLIVA, Milena Donato. Qual a diferença entre os direitos reais e os pessoais? Rio de Janeiro. 27 ago. 2021. Instagram: @milenadonatooliva. Disponível em: https://bit.ly/3D9dal4. Acesso em: 30 set. 2021.
6. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.76.
7. MAIA, Roberta Mauro Medina. A titularidade de dados pessoais prevista no art.17 da LGPD: direito real ou pessoal? In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (Org.). Lei Geral de Proteção de Dados e suas repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 150; também nesse linha: MAIA, Roberta Mauro Medina. A natureza jurídica da titularidade dos dados pessoais. In: MULHOLLAND, Caitlin (Org.). A LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago, 2020.
8. Capitalismo de vigilância para autora é, dentre as várias definições que ela atribui, “uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como matéria-prima gratuita para práticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e vendas”. ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Trad. George Schlesinger. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020, p.7.
9. ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Trad. George Schlesinger. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020, p.21-22.