INTRODUÇÃO
Na semana passada (desta matéria), foi publicada a Lei n. 14.976, de 18 de setembro de 2024, que altera o art. 1.063 do Código de Processo Civil para dispor sobre a competência dos Juizados Especiais Cíveis nas hipóteses de processamento e julgamento pelo antigo procedimento sumário, previsto no Código de Processo Civil de 1973.
Conforme nova redação “os juizados especiais cíveis previstos na Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, continuam competentes para o processamento e o julgamento das causas previstas no inciso II do art. 275 da Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 [CPC/73]”.
O cenário é, no mínimo, confuso: alteração legislativa em um artigo do Código de Processo Civil vigente que trata da competência para processamento e julgamento das hipóteses de um procedimento extinto, previsto em codificação revogada, em um procedimento especial (?).
Para a matéria deste mês, visando pontuar algumas notas sobre esse cenário, este breve material foi desenvolvido para elucidar a questão, explicar qual é a implicação prática e teórica e, por fim, questionar se a modificação legislativa era necessária.
SOBRE O EXTINTO PROCEDIMENTO SUMÁRIO
Aos que iniciaram o estudo do Processo Civil após 2015, estão acostumados com a sistemática de aplicação imediata do procedimento comum a todas as causas, conforme o art. 318 do CPC/15, excetuando-se as previsões específicas para procedimentos especiais, seja por redação do próprio Código (art. 539 e seguintes do CPC/15) ou por leis especiais (ainda que seja uma faculdade, podemos mencionar o próprio procedimento dos Juizados Especiais Cíveis, Lei n. 9.099/95).
No antigo Código de Processo Civil, Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973, a sistemática procedimental era relativamente parecida, isso porque o que conhecemos por procedimento comum era o antigo “procedimento ordinário” (art. 274 do CPC/73), os “procedimentos especiais de jurisdição contenciosa” eram previstos (1) no próprio Código, a partir do art. 890 do CPC/73 e seguintes, e (2) em leis especiais (novamente, como é o caso do procedimento dos Juizados Especiais Cíveis), entretanto, existia mais uma figura, o “procedimento sumário” (art. 275 do CPC/73).
Em síntese, o antigo procedimento sumário, foi projetado como uma forma “simplificada” e “mais célere” de tramitação processual para determinadas causas, especialmente as de menor complexidade ou de menor valor econômico.
Diferentemente do procedimento ordinário, o sumário objetivava a celeridade na resolução dos litígios, limitando algumas etapas e a simplificação de outras, de forma que a ação proposta sob esse rito deveria observar algumas particularidades (momento da citação, audiência de conciliação prévia ao oferecimento de contestação, fase instrutória “enxugada” e limitações recursais).
Importam-nos as hipóteses de processamento e julgamento pelo procedimento sumário:
(1) em razão do valor da causa (art. 275, I, do CPC/73): quando não ultrapassassem o valor de 60 (sessenta) salários-mínimos (inicialmente, eram vinte);
(2) em razão da matéria da causa (art. 275, II, do CPC/73), independente do valor da causa: (a) arrendamento rural e de parceria agrícola, (b) de cobrança ao condômino de quaisquer quantias devidas ao condomínio, (c) de ressarcimento por danos em prédio urbano ou rústico, (d) de ressarcimento por danos causados em acidente de veículo de via terrestre, (e) de cobrança de seguro, relativamente aos danos causados em acidente de veículo, ressalvados os casos de processo de execução, (f) de cobrança de honorários dos profissionais liberais, ressalvado o disposto em legislação especial, (g) que versavam sobre revogação de doação e (h) nos demais casos previstos em lei.
Como apresentado no cenário procedimental do Código de Processo Civil de 2015, o procedimento sumário foi extinto – sem prejuízo ao regular trâmite das ações propostas e não sentenciadas, conforme § 1º, do art. 1.046, do CPC/15 (tempus regit actum).
O PROCEDIMENTO SUMÁRIO E O PROCEDIMENTO DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
O ponto de conexão para o imbróglio discutido nesta matéria reside na regulamentação do procedimento sumário dentro do procedimento dos Juizados Especiais Cíveis.
Precisamente, no inciso II, do art. 3º, da Lei n. 9.099/95, foi estabelecido que o procedimento especial também teria competência para o processamento e julgamento das ações em razão da matéria previstas no inciso II, do art. 275, do CPC/73.
Portanto, versando sobre essas hipóteses, a adoção ou pelo procedimento sumário ou do procedimento dessa lei especial – que não deve ser confundido ou chamado de “sumaríssimo”, previsto no art. 852-A da CLT – era uma faculdade da parte e de sua estratégia processual, sendo necessário observar que a escolha traria implicações de aceitar as limitações e de cumprir as demais exigências de cada procedimento.
Cabe um breve esclarecimento sobre o argumento da eventual implicação de renúncia ao crédito excedente do valor de 40 salários-mínimos na hipótese de utilização do procedimento dos Juizados Especiais Cíveis nas causas enumeradas no inciso II, do art. 275, do CPC/73.
A questão foi apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça em 2010:
PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. COMPLEXIDADE DA CAUSA. NECESSIDADE DE PERÍCIA. CONDENAÇÃO SUPERIOR A 40 SALÁRIOS MÍNIMOS. CONTROLE DE COMPETÊNCIA. TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DOS ESTADOS. POSSIBILIDADE. MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO. CABIMENTO. […] 3. O art. 3º da Lei 9.099/95 adota dois critérios distintos – quantitativo (valor econômico da pretensão) e qualitativo (matéria envolvida) – para definir o que são “causas cíveis de menor complexidade”. Exige-se a presença de apenas um desses requisitos e não a sua cumulação, salvo na hipótese do art. 3º, IV, da Lei 9.099/95. Assim, em regra, o limite de 40 salários mínimos não se aplica quando a competência dos Juizados Especiais Cíveis é fixada com base na matéria. […] STJ – RMS: 30170 SC 2009/0152008-1, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 05/10/2010, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/10/2010.
Ainda que o proveito econômico da causa ultrapassasse quarenta salários-mínimos, se a sua competência for fundada na matéria, critério qualitativo, não haveria o que se falar de renúncia do crédito excedente, inclusive, nos casos do rito sumário (até sessenta salários-mínimos) – esse posicionamento, vale destacar, parece ter se pacificado, conforme extraído do Recurso em Mandado de Segurança n. 53.602-AL, julgado em 2018.
O ART. 1.063 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A LEI N. 14.976/2024
Diante dessa conexão de competências entre esses procedimentos, quando o legislador processual optou pela extinção do procedimento sumário, projetou-se o art. 1.063 do CPC/15 para regular que, conforme redação original, “até a edição de lei específica, os juizados especiais cíveis previstos na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, continuam competentes para o processamento e julgamento das causas previstas no art. 275, inciso II, da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973”. Ou seja, uma lacuna legislativa pendente de correção desde a vigência do Código de Processo Civil de 2015.
A regulamentação veio quase dez anos depois, por meio da Lei n. 14.976, que optou por modificar a redação do art. 1.063 para “os juizados especiais cíveis previstos na Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, continuam competentes para o processamento e o julgamento das causas previstas no inciso II do art. 275 da Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973”.
Fruto do Projeto de Lei n. 8.728, de autoria da Deputada Laura Carneiro, apresentado em 28 de setembro de 2017, a alteração foi justificada, sobretudo, pela hipótese da alínea ‘b’, do inciso II, do art. 275, do CPC/73 (cobrança e condomínio) e ampliada para toda a parte programática do art. 1.063 do CPC/15, visto que, nas suas palavras, já restaria prejudicado diante de consolidação jurisprudencial.
AFINAL, O QUE MUDA COM A VIGÊNCIA DA LEI N. 14.976/2024?
Em primeiro lugar, após a explicação (ainda que breve) de todos os pontos desta matéria, questiono: será que realmente valia a pena editar uma lei específica para disciplinar um procedimento extinto?
Se a proposta fosse estritamente para esse fim, penso que não; do contrário, caso houvesse esforço para melhor detalhar cada hipótese contida no inciso II, do art. 275, do CPC/73, aperfeiçoando a sua aplicabilidade na Lei n. 9.099/95, sim.
De todo modo, já que a lei foi publicada, não vamos nos debruçar sobre o que poderia ter sido feito de maneira diferente, e sim trabalhar a partir do cenário que temos.
Para a prática, de forma objetiva: penso que nada muda. A referida lei apenas descarta qualquer possibilidade de melhor regulamentação do tema, o que, penso, poderia ter oferecido melhores contornos para a prática daqueles que costumam atuar no procedimento dos Juizados Especiais Cíveis.
Como é o caso das ações propostas para processamento e julgamento conforme a competência do inciso II, do art. 3º, da Lei n. 9.099/95, continua valendo o que está previsto no inciso II, do art. 275, do CPC/73, embora o procedimento sumário esteja extinto.
Nesse ponto, na minha opinião, está o problema para a teoria processual.
Na perspectiva teórica, também de forma objetiva: recapitulando, criou-se uma atmosfera legislativa estranha, visto que, pensando sob a ótica de um professor explicando a competência da Lei n. 9.099/95 ou de quem a ela pretende tecer comentários (ou até mesmo do juiz na sua aplicação), deverá explicar que houve alteração legislativa em um artigo do Código de Processo Civil vigente que trata da competência para processamento e julgamento das hipóteses de um procedimento extinto, previsto em codificação revogada, em um procedimento especial.
Não me parece plausível afirmar que a lei regulou a matéria com a melhor técnica processual que poderia ter sido ou como aparentemente queria o legislador processual em 2015.
Deixo um abraço e aguardo vocês nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) para discorrermos um pouco mais sobre o conteúdo da matéria deste mês e sugestões para as próximas. Vejo vocês em outubro.