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Continuidade e Interrupção de Serviços Públicos Essenciais: Entre o Direito de Crédito e a Dignidade da Pessoa Humana

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O embate entre a dignidade da pessoa humana e direito de crédito dos prestadores de serviços públicos essenciais, como água e energia elétrica, não é um tema novo. Suas consequências, entretanto, tornam-se cada mais agravantes no contexto de enfrentamento do Covid-19, dado o inegável aumento nas desigualdades sociais e a importante função da água como instrumento de higienização para a limitação do contágio. Nesse contexto, a presente coluna busca abordar sinteticamente os entendimentos acerca da possibilidade de interrupção dos serviços públicos essenciais e sua interface com os preceitos constitucionais aplicáveis.

Como discutido na coluna anterior, ainda que o direito humano à água não esteja previsto expressamente na Constituição Federal, o acesso a esse recurso é essencial para a realização de outros direitos fundamentais, como o direito à saúde. À luz desses preceitos constitucionais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidava a impossibilidade de interrupção dos serviços públicos essenciais em razão de inadimplemento do usuário, devendo o prestador do serviço utilizar meios menos onerosos de cobrança dos valores devidos. Esse entendimento era balizado sob possibilidade de utilização de outros meios legais de cobrança, de forma que não seria facultado ao prestador de serviços expor o usuário à situação de vulnerabilidade para coagir a satisfação do crédito. Veja-se:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CORTE NO FORNECIMENTO DE ÁGUA. ESTADO INADIMPLENTE. IMPOSSIBILIDADE. MEDIDA CAUTELAR PROCEDENTE. – O corte no fornecimento de água em prédios do Estado atinge não somente aquele ente da Federação, mas o próprio cidadão, porquanto a inviabilidade da utilização do prédio e a conseqüente deficiência na prestação dos serviços decorrentes atingem diretamente todos os munícipes. – O corte, utilizado pela Companhia para obrigar o usuário ao pagamento de tarifa, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar o adimplemento do débito. – Precedentes. – Medida cautelar procedente (MC 2.543/AC, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/03/2001, DJ 11/06/2001, p. 94).

Importante notar que as dívidas referentes à prestação dos serviços públicos essenciais são de natureza pessoal, vinculando-se, assim, ao usuário do serviço, não à propriedade do imóvel.1

No entanto, o entendimento do STJ acerca da interrupção foi progressivamente mitigado, de forma a torná-la possível, após aviso prévio, diante de inadimplemento de dívida atual. Ou seja, foi possibilitado o corte do fornecimento de água e energia elétrica em face de duas condições cumulativas: a existência de dívida atual e a notificação prévia do usuário. No entendimento do STJ, a possibilidade de interrupção na prestação do serviço, legitimada pelo art. 6, §3°, da Lei n. 8.987/1995, é necessária para impedir o enriquecimento ilícito do usuário. Assim, a erosão da proteção conferida ao usuário foi motivada pelo objetivo de preservação do equilíbrio econômico-financeiro da prestação dos serviços, sob o pressuposto de que uma potencial inadimplência generalizada poderia comprometer a modicidade tarifária, ou mesmo a continuidade dos serviços. Nesse sentido:

CORTE DO FORNECIMENTO DE ÁGUA. POSSIBILIDADE. (…) 2. A Primeira Seção e a Corte Especial do STJ entendem legal a suspensão do serviço de fornecimento de energia elétrica pelo inadimplemento do consumidor, após aviso prévio, exceto quanto aos débitos antigos, passíveis de cobrança pelas vias ordinárias de cobrança. 3. Admitir o inadimplemento por um período indeterminado e sem a possibilidade de suspensão do serviço é consentir com o enriquecimento sem causa de uma das partes, fomentando a inadimplência generalizada, o que compromete o equilíbrio financeiro da relação e a própria continuidade do serviço, com reflexos inclusive no princípio da modicidade. 4. Agravo regimental não provido. (AgRg nos EDcl no AREsp 57.598/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/11/2012, DJe 12/11/2012)

Certamente, como o intuito da interrupção é preservar o direito de crédito, não é idônea a interrupção dos serviços quando essa monta está sendo discutida em juízo, inclusive no que se refere às tarifas aplicáveis.2

A despeito dessa modificação de entendimento, a jurisprudência do STJ ainda comporta exceções à possibilidade de interrupção de serviços públicos essenciais.  É o caso, por exemplo, da prestação de serviços indispensáveis à população, como no caso de instituições escolares e de saúde, sejam os titulares pessoas jurídicas de direito público ou privado.3  A mesma proteção se estende aos casos em que a interrupção possa afetar a saúde e a integridade física do usuário.4 Interpretação diversa poderia não apenas ocasionar danos irreparáveis aos usuários, mas também desvirtuaria a proteção de direitos fundamentais em prol do direito de crédito. Priorizam-se, dessa forma, os preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana e o direito à saúde, ainda que em uma acepção limitada e restritiva.

Em face desses preceitos e em consideração à crescente instabilidade sanitária decorrente das condições excepcionais da pandemia do Covid-19, é difícil conceber a possibilidade de interrupção do fornecimento de água sem que esta ameace a saúde e integridade física do usuário. Justamente, em razão dessas circunstâncias excepcionais, foram codificados em diversos instrumentos regionais e locais a suspensão temporária da possibilidade de interrupção desses serviços, cuja constitucionalidade foi atestada pelo STF.5

Em suma, o contexto atual e as lacunas enfrentadas pela jurisprudência pátria levam à reflexão acerca da necessidade de positivação de normas menos abusivas de cobrança pela prestação dos serviços públicos essenciais, resguardado o equilíbrio econômico-financeiro da prestação dos serviços. O enfrentamento dessa questão é especialmente relevante para grupos em situação de vulnerabilidade econômica, que, na ausência dos devidos instrumentos para garantia da modicidade tarifária, são pressionados pela interrupção a arcarem com valores impraticáveis para sua realidade ou permanecerem sem acesso a recursos fundamentais para a condução de uma vida digna.

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Amael Notini Moreira Bahia

 

Referências

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1. PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE FORNECIMENTO DE ÁGUA E ESGOTO. PAGAMENTO DO DÉBITO DE CONSUMO. OBRIGAÇÃO PESSOAL. EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE LOCAÇÃO NÃO INFORMADO À CONCESSIONÁRIA. RESPONSABILIDADE DO PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL. 1. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que os débitos relativos aos serviços essenciais, tais como água/esgoto e energia elétrica, são de natureza pessoal, ou seja, de quem efetivamente obteve a prestação do serviço, não se caracterizando como obrigação de natureza propter rem, pois não se vinculam à titularidade do imóvel. Precedentes: AgRg no AREsp 45.073/MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 15/02/2017; AgRg no AREsp 829.901/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 11/05/2016AgRg no AREsp 592.870/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 21/11/2014; AgRg no REsp 1.320.974/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 18/08/2014; AgRg no REsp 1.444.530/SP, Rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 16/05/2014. (AREsp 1557116/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/12/2019, DJe 10/12/2019).

2. PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. TARIFA DE ÁGUA. DÉBITO PRETÉRITO. COBRANÇA DE DÍVIDAS DISCUTIDAS EM JUÍZO. CORTE DE FORNECIMENTO DE ÁGUA. IMPOSSIBILIDADE. 1. O Superior Tribunal de Justiça reconhece a legalidade da cobrança da tarifa mínima de água, mas não a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos. Precedentes: AgRg no Ag 1207818/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJe 02/02/2010; REsp 1.119.640/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe 25/11/2009; REsp 1.147.722/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJe 29/10/2009; AgRg no Ag 1009551/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Denise Arruda, DJe 01/10/2008. 2. Não é devida a suspensão do serviço de fornecimento de água por inadimplemento nas hipóteses em que os valores das tarifas estão sendo discutidos em juízo. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg na RCDESP no REsp 964.007/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/08/2010, DJe 24/08/2010).

3. ADMINISTRATIVO ? SERVIÇO PÚBLICO ? AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC ? ACÓRDÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO ? CASA DE SAÚDE ? SERVIÇO ESSENCIAL ? SUSPENSÃO NO FORNECIMENTO DE ÁGUA ? IMPOSSIBILIDADE ? ENTIDADE PRIVADA COM FINS LUCRATIVOS ? IRRELEVÂNCIA ? VIDA E SAÚDE DOS PACIENTES INTERNADOS COMO BENS JURÍDICOS A SEREM TUTELADOS ? CONDICIONAMENTO DA ORDEM ECONÔMICA À PROMOÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA. (…) 2. O corte do fornecimento de água está autorizado por lei sempre que resultar da falta injustificada de pagamento, e desde que não afete a prestação de serviços públicos essenciais, a exemplo de hospitais, postos de saúde, creches, escolas. 3. No caso dos autos, a suspensão da prestação do serviço afetaria uma casa de saúde e maternidade, motivo pelo qual não há como se deferir a pretensão da agravante, sob pena de se colocar em risco a vida e a saúde dos pacientes lá internados. 6. Admitir a suspensão do fornecimento de água a um hospital e colocar em risco a vida e a saúde dos internos, sob o argumento de que se vive em uma sociedade capitalista, é inverter a lógica das prioridades e valores consagrados em um sistema jurídico onde a ordem econômica está condicionada ao valor da dignidade humana. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1201283/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/09/2010, DJe 30/09/2010).

4. PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. INVIABILIDADE DE SUSPENSÃO DO ABASTECIMENTO NA HIPÓTESE DE DÉBITO DE ANTIGO PROPRIETÁRIO. PORTADORA DO VÍRUS HIV. NECESSIDADE DE REFRIGERAÇÃO DOS MEDICAMENTOS. DIREITO À SAÚDE. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido da impossibilidade de suspensão de serviços essenciais, tais como o fornecimento de energia elétrica e água, em função da cobrança de débitos de antigo proprietário. 2. A interrupção da prestação, ainda que decorrente de inadimplemento, só é legítima se não afetar o direito à saúde e à integridade física do usuário. Seria inversão da ordem constitucional conferir maior proteção ao direito de crédito da concessionária que aos direitos fundamentais à saúde e à integridade física do consumidor. Precedente do STJ. 3. Recurso Especial provido. (REsp 1245812/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/06/2011, DJe 01/09/2011).

5. Direito constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Regras sobre a suspensão dos serviços públicos de energia elétrica, água, telefonia fixa e móvel e internet. 1. Ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei distrital nº 4.632/2011, que dispõe sobre a suspensão dos serviços públicos de energia elétrica, água, telefonia fixa e móvel e internet. 2. Descabimento da ADI quanto ao serviço público de distribuição de água, visto que a titularidade desse serviço público é dos municípios, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (ADI 1.842, Rel. Min. Luiz Fux, e ADI 2.340, Rel. Min. Ricardo Lewandowski). (…) (ADI 5877, Relator(a): EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-085  DIVULG 04-05-2021  PUBLIC 05-05-2021)

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