,

“Diante da relevância do Recurso Especial”: A reflexão de Kafka e o § 2º, do art. 105, da Constituição Federal

lady justice

PROLEGÔMENOS SOBRE A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 125

No dia 15 deste mês, foi promulgada a Emenda Constitucional n. 125, alterando o art. 105 da Constituição Federal, incluindo os §§ 2º e 3º, instituindo, no recurso especial, o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional.

Segundo o requisito instituído, “no recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento”.

Conforme o § 3º, do art. 105, da Constituição Federal, a relevância a que se refere o § 2º resta configurada em (1) ações penais, (2) ações de improbidade administrativa, (3) ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários-mínimos, (4) ações que possam gerar inelegibilidade, (5) hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça e (6) outras hipóteses previstas em lei.

Não se descartando que algumas de suas raízes possam estar na ideia da figura da repercussão geral (Emenda Constitucional n. 45/2004 – atualmente, art. 1.035 do Código de Processo Civil) e embora a discussão desse filtro para o recurso especial tenha adquirido maior relevância com a PEC 39/2021, conhecida também como a “PEC da Relevância”, a proposta é muito mais antiga.

Em perspectiva histórico-legislativo da proposta, pode-se fixar o seu marco inicial a Proposta de Emenda à Constituição 209, apresentada em 23 de agosto de 2012, de autoria dos deputados Rose de Freitas e Luiz Pitiman, cujo texto inicial é idêntico ao atual: “§ 1º. No recurso especial, o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento.”

A justificativa da proposta se assentou no argumento do congestionamento do fluxo de processos em tramitação no Superior Tribunal de Justiça, contrapondo a realidade pela instituição da repercussão geral no Supremo Tribunal Federal. A relevância seria a salvaguarda (em prol do bom funcionamento da Corte) ao “modelo de livre acesso” ao Superior Tribunal de Justiça, afastando-se – transcrevo da justificativa – “questões de índole corriqueira, como multas por infração de trânsito, cortes no fornecimento de energia elétrica, de água, de telefone”.

Embora apresentado substitutivo pelo deputado Sandro Mabel, na Comissão Especial criada para analisar PEC 209/2012, sua aprovação ocorreu em 15/03/2017, sendo remetida ao Senado Federal (PEC n. 10/2017). Apresentado substitutivo, incluindo-se o § 3º (ao lado do agora § 2º) e aprovado pelo Plenário do Senado Federal, retornou-se a Câmara dos Deputados onde recebeu nova numeração (PEC n. 39/2021); aprovada em ambas Casas e promulgada como a Emenda Constitucional n. 125.

A síntese é apertada e pode ser que alguns a considerem como grosseira diante da década de tramitação da proposta. É proposital. Não tenho a proposta de exaurir o tema, quando, na verdade, deixar apenas uma brevíssima reflexão sobre o aperfeiçoamento da justiça – ou do Direito, para quem assim prefira – versus o estabelecimento de barreiras ou embargos ao seu acesso. Franz Kafka é pontual para formular essa provocação.

“DIANTE DA LEI”, DE FRANZ KAFKA

Embora lembrado com frequência por outras publicações, para o Direito, a obra “O Processo”, de Franz Kafka, contém diversos elementos que permitem refletir sobre o nosso sistema de justiça, como é o caso do conto intitulado por “Diante da Lei” (parábola de “O Processo”), o qual sintetizo para poder tecer algumas ideias sobre a Emenda Constitucional 125/2022 e a “relevância” no recurso especial.

A estória estabelece a Lei como um objeto situado em um local transponível, assegurado por um guarda. Certa vez, um “homem simples” (na descrição do conto) pede ao “guardião da Lei” (novamente, da descrição do conto) que lhe concedesse acesso, sendo-lhe surpreendido com a resposta de que não poderia ter acesso à Lei. Insistiu, o homem simples, para que pelo menos lhe fosse permitido acessá-la em momento posterior; o guardião, por sua vez, disse que seria possível, mas não naquele momento. Insistentemente, o homem ali permaneceu na esperança de lhe ser concedido acesso à Lei e, curioso pelo conteúdo daquele local que tanto desejava adentrar, constantemente espiava na esperança de que algum elemento o norteasse. O guardião da Lei, visualizando a situação, advertiu que se o desejo do homem era tamanho, que tentasse, entretanto, aquele era apenas o primeiro de outros tantos “guardiões da Lei”, cada qual mais forte do que o anterior.

Mesmo indignado com a situação, afinal, entendia que a Lei fosse acessível a todos, decide esperar pelo “momento posterior”. Enquanto o “guardião da Lei” lançava indiferença sobre o homem simples que lá estava, este permaneceu anos no aguardo e esperança da autorização para adentrar a porta, inclusive, atingindo a velhice.

Pouco antes da sua morte, com muito esforço, questiona ao guarda: “se todos aspiram a Lei, […] como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”. O guarda, percebendo que eram os últimos suspiros do homem que dedicou sua vida inteira a tentar acessar à Lei, responde: “aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.

SOBRE O § 2º, DO ART. 105, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Não sou contra o aperfeiçoamento legislativo da justiça (seja ela qual for), mediante refinamento da técnica do direito. O que não compactuo são com propostas que visam cercear o seu acesso. Cá, adentramos em uma discussão sobre a diferenciação entre a qualificação da técnica jurídica versus a quantificação de processos e recursos. Penso que o argumento, ou melhor a justificativa do legislador de limitar, criar barreiras ou (e por que não?) “guardiões” para acesso aos Tribunais é, para dizer o mínimo, um grande problematizador para o acesso à justiça brasileiro.

É clara a opção legislativa pela quantificação: a preocupação nunca foi a de aprimorar o recurso especial, mas com vistas ao congestionamento do fluxo de processos em tramitação no Superior Tribunal de Justiça, criar um sistema de filtragem (que é a relevância), para atuar como a salvaguarda do bom funcionamento da Corte, erradicando o “modelo de livre acesso” ao Superior Tribunal de Justiça, impedindo a discussão de – ratificando a transcrição da justificativa – “questões de índole corriqueira, como multas por infração de trânsito, cortes no fornecimento de energia elétrica, de água, de telefone”.

Pelo tempo que tramitou a PEC, penso que, embora a discussão quantitativa tenha guiado a argumentação inicial, poderia ter sido, ainda que paulatinamente, substituída pela qualitativa; qualificar o recurso especial; melhorar o acesso ao Superior Tribunal de Justiça (e não filtrar ou criar balizar). Embora em momento posterior da tramitação da PEC se tenha inserido o (que viria a se tornar) § 3º, do art. 105, da Constituição Federal, a relevância está longe de ser uma qualificação da técnica jurídica. Enfim, não se pode negar: estamos diante de um “novo” recurso especial. Se o “guardião da Lei” criado pela Emenda Constitucional n. 125 será algo positivo ou negativo (e depende, também, o critério que se utiliza para delimitar isso), bem como, a forma que se dará o desenvolvimento da “relevância” do recurso especial, isso só o tempo dirá.

O que você pensa sobre a EC n. 125/2022 e a relevância do recurso especial? Venha conversar comigo nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) ou me mande um e-mail (contato@guilhermechristenmoller.com.br) para continuarmos o assunto desta matéria.

Fraterno abraço e vejo vocês em agosto!

P.S.1: E pensar que tinha gente que achava a Súmula n. 7 do STJ ruim.

P.S.2: Complementação do estudo sobre a relevância do recurso especial

Para evitar tautologia, restringi a minha análise ao problema (ou não; depende do intérprete) da restrição quantitativa criada pela relevância do recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça. Aproveito o momento para indicar alguns textos de colegas e amigos que dissertaram sobre o mesmo objeto do assunto: (1) “Reflexões sobre a relevância das questões de direito federal em recurso especial”, por Prof. Leonardo Carneiro da Cunha;1 (2) “Breves notas sobre o filtro de relevância do recurso especial”, por Prof. Heitor Vitor Mendonça Sica;2 (3) “Notas sobre a nova arguição de relevância em recurso especial”, pelos Profs. Georges Abboud e Matthäus Kroschinsky;3 (4) “O que a relevância no REsp tem a aprender com a Emenda Regimental 54/20 do STF?”, por Prof. Vinicius Silva Lemos;4 (5) “Recurso especial: você não passará!”, por Prof. Luís Gustavo Reis Mundim,5 (6) “A relevância da questão de direito federal no recurso especial será um filtro individual?”, por Prof. Osmar Mendes Paixão Côrtes,6 (7) “O funil mais estreito para o recurso especial”, pelas Profas. Teresa Arruda Alvim, Carolina Uzeda e Prof. Ernani Meyer7 e, para encerrar esta lista exemplificativa, (8) “Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial”, pelos Profs. Dierle Nunes e Cícero Lisboa.8

____________________

Guilherme Christen Möller

 

Referências

________________________________________

[1] CUNHA, Leonardo Carneiro da. Reflexões sobre a relevância das questões de direito federal em recurso especial. ConJur. Publicado em 23 de julho de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3orNgnD. Acesso em 25 jul. 2022.

[2] SICA, Heitor Vitor Mendonça. Breves notas sobre o filtro de relevância do recurso especial. ConJur. Publicado em 18 de julho de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3b9ftfQ. Acesso em 25 jul. 2022.

[3] ABBOUD, Georges; KROSCHINSKY, Matthäus. Notas sobre a nova arguição de relevância em recurso especial. ConJur. Publicado em 20 de julho de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3PD8GKh. Acesso em 25 jul. 2022.

[4] LEMOS, Vinicius Silva. O que a relevância no REsp tem a aprender com a Emenda Regimental 54/20 do STF? JOTA. Publicado em 24 de julho de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3viqd2d. Acesso em 25 jul. 2022.

[5] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Recurso especial: você não passará! Contraditor. Publicado em 22 de julho de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3J4ncIy. Acesso em 25 jul. 2022.

[6] CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. A relevância da questão de direito federal no recurso especial será um filtro individual? Migalhas. Publicado em 19 de julho de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3owl4jf. Acesso em 25 jul. 2022.

[7] ALVIM, Teresa Arruda; UZEDA, Carolina; MEYER, Ernani. O funil mais estreito para o recurso especial. Migalhas. Publicado em 19 de julho de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3zxVMHO. Acesso em 25 jul. 2022.

[8] NUNES, Dierle; LISBOA, Cícero. Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial. ConJur. Publicado em 18 de julho de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3zzTiZq. Acesso em 25 de julho de 2022.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio